Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Wei qi é um jogo pouco conhecido na cultura ocidental, mas amplamente praticado nos países do Oriente, especialmente no país que hoje se tornou a segunda mais importante potência econômica do mundo, só superada pelos Estados Unidos da América — a China de Xi Jinping.

O que diferencia esse jogo dos praticados no Ocidente, a exemplo do xadrez, é a maneira de se buscar a vitória. Enquanto o xadrez objetiva a vitória total de um dos jogadores, o Wei qi almeja a vitória relativa, aquela em que o jogo termina quase empatado, com uma ligeira margem para o vencedor.

Quem joga xadrez tem diante de si a capacidade do adversário, uma vez que as peças estão todas presentes. O jogador de Wei qi tem de avaliar não só as peças presentes, mas algo mais: os reforços que o adversário pode mobilizar. Resultado: enquanto o xadrez produz jogo, o Wei qi produz flexibilidade estratégica, aquela que conduz à vitória relativa.

“A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, escrito há mais de 2 mil anos, é uma espécie de bíblia que retrata fielmente o modo chinês de lidar com os “bárbaros”. Nesses escritos, o vitorioso se faz não como nós ocidentais estamos acostumados a ver, pelas conquistas que acumula, mas por aquelas que se tornam desnecessárias. A ênfase da obra se centra mais nos elementos psicológicos e políticos do que propriamente no confronto militar. Diz o texto: “Muito melhor do que desafiar o inimigo no campo de batalha é solapar-lhe a moral, ou empurrá-lo para uma posição desfavorável, da qual seja impossível escapar”. Eis aí a essência do estrategista vitorioso na concepção de Sun-Tzu: derrotar sem batalhar, esmagar o Estado inimigo sem que para isso seja necessária uma guerra prolongada.

Mao Tsé-tung com Henry Kissinger, em 1973, na China | Foto: AFP/Getty Images

Outro aspecto que diferencia a cultura chinesa da ocidental é a sua religiosidade. Assim, enquanto a cultura ocidental gerou o mito da criação cósmica, a exemplo do monoteísmo proclamado por profetas judeus, cristãos e islâmicos, na China predominaram os ensinamentos do filósofo Confúcio, em busca da harmonia social. Esses princípios estão expressos numa espécie de bíblia chinesa, que se confunde com a constituição. Desse modo, se o que sempre regeu o Ocidente foi a ideia de progresso, na China confucionista o ideal para uma sociedade é o aprendizado. Aprendizado que se torna a chave para se progredir nessa sociedade. Essa filosofia se cristalizou na burocracia imperial chinesa, constituída por “funcionários-eruditos”, literatos selecionados por meio de concorridos exames feitos em todo o país. Esses funcionários são encarregados de manter a harmonia nos vastos domínios daquele que por milênios foi sempre a figura central do império chinês, cultuada como o símbolo maior de sua civilização: o imperador.

A abertura da China para o mundo

Enfatizo os aspectos acima, porque eles nos ajudam a entender a maneira diferenciada como a China colocou suas pedras no jogo do Wei qi, para jogar no terreno das relações internacionais rumo à abertura de sua economia, iniciada e consolidada ao longo de mais de quatro décadas. O jogo político exigiu muita paciência, estratégia, idas e vindas com a nação mais poderosa do mundo, hoje sua principal parceira no mundo globalizado: os Estados Unidos da América.

Quem nos conta essa história, no livro intitulado “Sobre a China” (Objetiva, 560 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), tem autoridade, conhecimento e experiência para isso. Foi ele um ator bastante dinâmico na construção desse caminho. Falo de Henry Kissinger — de 100 anos de idade, completados no dia 27 de maio —, nome que dispensa maiores apresentações.

O nome de Kissinger é uma legenda no cenário das relações internacionais, pois foi ele o secretário de Estado que iniciou, nos governos dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, a construção de um caminho com a China.

Além do mais, Kissinger continuou a ter influência junto a todos os presidentes que governaram os EUA — fossem republicanos ou democratas. Conhece como ninguém os meandros da política chinesa, país que visitou mais de 50 vezes nestes mais de quarenta anos em que a China se tornou a potência econômica que hoje é. Por isso, Kissinger foi não só o mais hábil negociador dos Estados Unidos com a China, pois além de ter convivido intimamente com os principais jogadores no tabuleiro do Wei qi — Mao Tsé-tung, Zhou Enlai e Deng Xiaoping —, privou do respeito e até da amizade de muitos dirigentes chineses. Dotado de uma sólida formação acadêmica, Kissinger não só entendeu esse jogo, mas também se tornou um hábil jogador no tabuleiro de Wei qi.

Henry Kissinger e Zhou Enlai | Foto: Reprodução

É preciso evidenciar a estratégia adotada por este resenhista para melhor evidenciar a riqueza das análises e experiências contidas nesse livro de inegável fôlego intelectual escrito por Kissinger. Foquei a narrativa nos principais líderes chineses que conduziram aquele país ao excepcional crescimento que tem experimentado há décadas: Mao Tsé-tung e seus mais importantes auxiliares: Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Zhou está inserido na Era Mao; Deng, por si só, representa uma era distinta da anterior. Sem a firme condução desses líderes políticos, a China certamente não estaria no elevado patamar de desenvolvimento em que hoje se encontra.

Império voltado para dentro de si mesmo

A longa tradição histórica do grande país mostra um sentimento que imperou durante milênios naquela nação: o de ser o centro do mundo — o império do meio — voltado para dentro de si mesmo, com a corte se vendo como o centro do Universo, pouco interessada em manter relações com o resto do mundo. O imperador era tido como divino, símbolo da unidade de uma imensa nação que gerava suas próprias riquezas, sem se inserir na teia das relações internacionais.

Para manter essa postura de inflexibilidade frente ao mundo, os chineses dispunham de duas importantes armas para lidar com as constantes imersões estrangeiras de bárbaros em seu território: a capacidade analítica de seus diplomatas e a resistência cultural de seu povo. 

Desse modo, apoiados nos valores de sua civilização de milênios, na qual o tempo é um parâmetro mais que relativo, os chineses mostraram saber esperar o momento certo de agir com vistas à construção do futuro. Perseguir esse caminho requereu imensa sabedoria para se detectar os momentos em que se tem de ceder, para, lá na frente, ganhar.

Os chineses mostraram sua imensa sabedoria no momento em que o colonialismo dos bárbaros ameaçava dominar sua civilização. Exemplos não faltam no livro de Henry Kissinger para demonstrar a sagacidade dos filhos de Confúcio na lida com a cobiça estrangeira em seu território.

Foi assim no momento em que os britânicos avançaram sobre a China. Os líderes chineses moveram peças no tabuleiro de Wei qi em busca de equilíbrio. Eis a solução que o momento exigia: convidar outros “bárbaros para a China e criar competição entre a ganância deles e a dos britânicos, de modo que a China pudesse emergir como o fiel da balança entre aqueles que a dividiam”.

Sedimentada em mais de quatro mil anos, a civilização chinesa manteve-se por cerca de dois milênios extraordinariamente como algo impossível de se imaginar a não ser numa civilização como a deles: um Estado unificado e pacífico ante as constantes ameaças estrangeiras a seu território. A aparente passividade chinesa sempre escondia o jeito de ser daquele povo: a natureza estratégica de quem procura uma pequena vantagem para se tornar o verdadeiro vencedor no tabuleiro de Wei qi.    

Henry Kissinger e Deng Xiaoping | Foto: Reprodução

Souberam superar adversidades sempre mirando a construção do futuro. Foi assim no declínio da última dinastia a imperar naquele país, no século XIX: a Qin. Vale ressaltar que foi nesse período que morreram cerca de 60 milhões de chineses — a população se reduziu de 410 milhões para 350 milhões de pessoas em 1873!

O jeito chinês de ser mostrou mais uma vez sua face em outro momento de adversidades para o país, quando um poderoso e já moderno inimigo se viu capaz de suplantar sua civilização: o Japão. Os chineses cederam os anéis para não perderem os dedos. Mais um movimento no tabuleiro do Wei qi: entregaram Taiwan, pagaram pesadas indenizações de guerra, perderam parte da Manchúria. Enfim, fizeram concessões não só aos japoneses, mas à afilhada Coreia e a outro poderoso e incômodo adversário a ameaçar suas fronteiras: a Rússia.

A aparente fragilidade em momentos difíceis escondia o interesse nacional de uma civilização que soube aos poucos e pacientemente impor seus valores em busca da construção do futuro. O interesse nacional impunha lentas reformas internas em suas instituições. “A presente situação é uma em que, externamente, faz-se necessário que nos mostremos em harmonia com os bárbaros e, internamente, que reformemos nossas instituições.”

Wei Yuan, um hábil diplomata chinês dos tempos imperiais, foi um dos primeiros a perceber que a China tinha de aprender a gramática de um mundo em competição. Para ele, “existem dois métodos para atacar os bárbaros, a saber, estimular países hostis aos bárbaros a realizarem um ataque contra eles e aprender as técnicas superiores dos bárbaros a fim de controlá-los”.

Acontecimentos subsequentes à queda do império, como a Revolta dos Boxers, influenciaram na queda da dinastia Qin e no surgimento da República. Esse movimento ganhou esse nome em razão de seus participantes, membros de uma organização secreta contra a presença estrangeira na China, praticarem o boxe chines. Agregado a isso, não tardaria a derrota dos nacionalistas, liderados por Chiang-Kai-Shek. A retirada desses para Taiwan sinalizava o surgimento de um novo líder, que definitivamente marcaria de modo significativo, com a vitória do comunismo, a rica história da China: Mao Zedong, o grande timoneiro. É dele que falaremos a seguir.

A era de Mao Tsé-tung

Poeta, guerreiro, profeta, frio, calculista, impiedoso até com aliados… Enfim, escolham as características que quiserem para compor a natureza humana de líderes políticos, mas reúnam todas elas na figura de uma única pessoa e vocês estarão diante do líder que foi capaz de unificar a China e lançá-la em uma jornada que por pouco não destruiu sua sociedade civil, mas que foi fundamental para a abertura do grande país amarelo ao mundo moderno: Mao Tsé-tung.

A era Mao Tsé-tung foi, antes de tudo, um insurgimento contra os valores da harmonia universal apregoados pelo confucionismo. Mao atribuía a essa filosofia a causa de a China ser uma nação fraca diante do mundo.

Com Mao Tsé-tung, a China se tornou um ator importante no jogo da Guerra Fria. Fez ele uso não só da ideologia comunista, mas também da percepção psicológica para lidar com forças opostas — fossem internas ou externas. Seu espírito guerreiro tornou o grande país amarelo uma potência militar com poder suficiente para se sentar lado a lado com os dois oponentes da Guerra Fria — a Rússia e os Estados Unidos. Aliás, nesse cenário, o grande timoneiro mostrou todas as suas habilidades estratégicas de exímio jogador de Wei qi, pois soube não só equilibrar seu país diante desses dois bárbaros, mas também detectar o momento certo de se posicionar do lado — sem se curvar perante ela — da nação vencedora, no caso, os Estados Unidos da América.  

Para chegar a esse lance decisivo de se colocar ao lado do vencedor, Mao movia as pedras do tabuleiro do Wei qi com extrema habilidade: ora se posicionando do lado dos soviéticos, ora dos americanos, conforme a situação. Tudo era cautelosamente estudado, com previsão de todas as nuances psicológicas dos adversários. Sabia ele como ninguém explorar a particularidade de cada momento. Estava o grande timoneiro sempre em busca daquilo que todo exímio jogador de Wei qi almeja: o equilíbrio, ou a vitória relativa.

“Se os Estados Unidos atacarem a China com armas nucleares, os exércitos chineses devem se retirar das regiões fronteiriças para o interior remoto do país. Depois, atrair o inimigo, levando-o a se empenhar de tal forma que as forças norte-americanas se verão presas dentro da China”, ouviu do grande timoneiro o então chanceler da União Soviética, Andrei Gromiko. Detalhe: a bravata nunca se concretizou.

Em outra ocasião, no entanto, a China se mostrava aliada dos norte-americanos. Tanto é que rejeitou a proposta soviética de criar, com o Pacto de Varsóvia, forças que contrabalançassem o poder de fogo da Otan na região.

As peças do tabuleiro do Wei qi se movimentavam mais uma vez pró União Soviética, quando o grande timoneiro disse certa ocasião: “o povo chinês não vai se deixar acovardar pela chantagem atômica norte-americana. Nosso país tem uma população de 600 milhões e uma área de 9.600.000 quilômetros quadrados. Os Estados Unidos não podem aniquilar a nação chinesa com sua pilha de bombas atômicas [….] se os Estados Unidos com seus aviões, mais a bomba atômica, lançarem uma guerra de agressão contra a China, então a China, com seu painço, mais seus fuzis, sem dúvida emergirá vitoriosa. O povo do mundo inteiro nos dará apoio”.  

Em outros momentos, a situação exigia cautela na relação de amor e ódio com os americanos. Assim procedia o exímio jogador Mao no tabuleiro do Wei qi. Esse foi o caso, na crise de 1958, com um forte aliado dos norte-americanos — Taiwan. Quanto a isso, passo a palavra a Kissinger, que relata com extrema clareza a estratégia de Mao Tsé-tung no trato com a situação: “Mao inicialmente pediu a seus comandantes que empreendessem o ataque de modo a evitar baixas americanas. Quando esses lhe responderam que dar garantia disso era impossível, ele ordenou que não atravessassem o espaço aéreo sobre as ilhas, que disparassem apenas contra navios dos nacionalistas e que não contra-atacassem nem que o fogo viesse de navios norte-americanos”.   

Muitas outras situações nos relata Henry Kissinger com clareza a respeito do grande timoneiro chinês. São acontecimentos como esses que fazem do livro deste mestre das relações internacionais uma obra grandiosa. Sua concepção exigiu não só imenso fôlego intelectual, mas também o fato de ter vivenciado inúmeras situações que somente homens do porte de Henry Kissinger vivenciaram.

Pode-se claramente perceber toda a sagacidade do grande timoneiro em busca do que é mais caro aos grandes jogadores de Wi qi — a flexibilidade estratégica. Aos olhos do mundo, a figura de Mao Tsé-tung é controversa. Para uns, um líder ditador e sanguinário; para outros, um grande estadista. À luz do julgamento da história, o que não se pode deixar de reconhecer é que, com base numa revisão do passado, dos valores confucionistas, Mao foi capaz de moldar os rumos da sociedade chinesa em direção à construção do futuro. Aliás, foi ele um ator importantíssimo, que fez da China dos dias atuais uma superpotência.

Cabia ao líder comunista tomar as decisões estratégicas que certamente não teriam o alcance que tiveram sem a contribuição de dois importantes auxiliares, tratados, na balança maoísta, ora como aliados mais próximos, ora como em retirada de cena rumo ao ostracismo, sem jamais deixarem de ser fundamentais na operacionalização da abertura chinesa rumo ao mundo moderno: Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Falo do primeiro deles agora, para mais adiante tecer considerações sobre o segundo.

Zhou Enlai e Henry Kissinger

Mais próximo auxiliar de Mao Tsé-tung, Zhou Enlai, foi certamente o líder chinês que Henry Kissinger mais admirou. Deixou essa admiração bastante explicita em seus escritos: “em cerca de sessenta anos de vida pública, nunca encontrei uma personalidade mais carismática do que Zhou Enlai. Baixo, elegante, com um rosto expressivo emoldurando olhos luminosos, exercia seu domínio por meio de uma inteligência excepcional e capacidade para intuir os aspectos intangíveis da psicologia de seu interlocutor”.

Quando Kissinger o conheceu, o então segundo líder mais importante da China já era um veterano. Exercia o cargo de premier há 22 anos e era um fiel seguidor há 40 do grande timoneiro, pelo qual nutria respeito. Embora próximos, havia diferença de estilos entre ambos. Sutilezas que só a experiência de quem viveu tão próximo dos dois — como Henry Kissinger — seria capaz de apontar. Assim, enquanto Mao dominava os encontros, a presença de Zhou inundava esses mesmos encontros. Mao procurava esmagar a oposição, o intelecto de Zhou buscava outra arma: a da persuasão.

Para Kissinger, Mao era sardônico, via a si mesmo como um filósofo que procurava acelerar a história. Zhou se mostrava diferente, pois era penetrante. Via a si mesmo como um administrador ou negociador que procurava, sempre que possível, explorar correntes. Agregam-se às qualidades de Zhou Enlai a polidez, a elevada instrução, o comedimento nos hábitos pessoais e nas posições políticas dentro do panorama do comunismo chinês.

Não restam dúvidas de que a visão voltada para integração com o Ocidente aproximou o premier chinês de Kissinger, de quem se tornou um parceiro e um importante articulador na consecução de propósitos comuns ao grande país e ao ianque americano. Ambos costuraram secretamente a visita do então presidente norte-americano Richard Nixon à terra de Mao Tsé-tung. Além disso, enfrentaram muitas questões delicadas, como a de Taiwan e a Guerra do Vietnã, país vizinho à China. Mais que hábeis articuladores, Kissinger e Zhou Enlai mantiveram um relacionamento que trasbordou as fronteiras do simbolismo e da diplomacia, chegando ao terreno de uma sincera amizade e de admiração mútua. Isso é muito para os padrões chineses de comportamento, pois eles estão acostumados a desconfiar de bárbaros ao longo de seus milênios de história.

A era Deng Xiaoping: abertura chinesa

Na condição de profundo conhecedor de como funcionam os meandros da vida política na terra de Mao Tsé-tung, Kissinger aponta em seus escritos as duras provações pessoais a que muitas vezes eram submetidos líderes tão próximos do grande timoneiro, como foram Zhou Enlai e Deng Xiaoping.

As pedras no tabuleiro de Wei qi podiam oscilar do esplendor do poder ao extremo ostracismo, dependendo do movimento que se fazia. E isso valia tanto para a política internacional quando para a política interna. Tudo se passava como um contínuo zigue-zague em busca do equilíbrio.

Zhou Enlai é um exemplo típico dessas idas e vindas no tabuleiro de Wei qi, que refletiam a anatomia do poder interno na China. Sofreu ele essas vicissitudes. Zhou compreendia bem isso, sem jamais deixar em dúvida sua lealdade ao jogo que jogava o grande timoneiro.

Deng Xiaoping, “o indestrutível”, se viu mais ainda duramente testado nesse jogo e até chegou a ser considerado o homem certo para levar adiante os rumos previamente traçados por Mao Tsé-tung.

Durante esse processo, esse baixinho de gigantesca coragem sofreu não só as amarguras do exílio, mas algo ainda mais doloroso: teve seu próprio filho empurrado do alto de um edifício pelos soldados do Exército Vermelho. Resultado: o rapaz ficou paraplégico. Superar dores dessa natureza fez parte das provações impostas ao indestrutível Deng.

Assim o ex-secretário de Estado americano, Henry Kissinger, se referiu, com enorme respeito, ao grande arquiteto da modernização chinesa: “com o passar do tempo, desenvolvi enorme consideração por esse homenzinho valoroso de olhos melancólicos que havia mantido suas convicções e seu senso de proporção diante de vicissitudes extraordinárias e que, no momento devido, renovaria seu país”.

Alçado à condição de líder máximo do povo chinês, Deng Xiaoping foi em verdade o grande operacionalizador das reformas que conduziram a China à condição de superpotência em que hoje ela vive.

Incentivou enormemente a pesquisa científica, a ciência e a tecnologia, as iniciativas individuais, a meritocracia no serviço público, além de valorizar a competência profissional acima da correção política. Com Deng nasceu uma nova China, moderna, com crescimento econômico extraordinário há décadas. Tudo isso, como resultado da reforma das instituições, do modo de se ver e se inserir no mundo em transformação, das mudanças culturais que fizeram surgir um novo conceito de democracia à la chinesa. Quanto a isso, dizia Deng: “de que tipo de democracia o povo chinês precisa hoje? Só pode ser a democracia socialista, a democracia do povo, não a democracia burguesa, a democracia individualizada”.

Com Deng se inventou um novo tipo de economia, que não rejeita o mercado nem tampouco o poder soberano do Estado na condução do desenvolvimento.  Para ele, “as empresas farão pleno uso das forças de mercado, e o Estado guiará a economia com políticas macroeconômicas. Haverá planejamento onde necessário, mas a futura regulação por planejamento será um recurso, que não será visto como a própria natureza do socialismo.” Dito de outro modo: o Estado chinês não deixaria de ser o que sempre foi — forte —, mas teria um novo parceiro na indução de seu desenvolvimento: o mercado. Resultado: a China acolhe o investimento estrangeiro, principalmente nas Zonas Econômicas Especiais, criadas mediante a ação do Estado no litoral. A partir daí, veio o boom econômico chinês, com crescimento constantemente em média de 9% ao ano há pelos menos trinta anos. Dobrou a renda dos camponeses. Além disso, mediante renovação de incentivos econômicos, elevou a participação privada na produção industrial bruta a patamares próximos de 50%.

A era Deng Xiaoping incentivou com veemência a busca da inovação e do conhecimento nos principais centros de excelência do mundo. Testemunhei isso quando fiz uma visita a uma das melhores universidades dos Estados Unidos — a de Colúmbia, repleta de chineses em todas as áreas de conhecimento.  Não tenho dúvidas de que se Mao foi o timoneiro do longo prazo, Deng Xiaoping foi o grande líder que inseriu ativamente aquele grande país amarelo num mundo que se globaliza cada vez mais.

Existiu um milagre capitalista na China?

Creio que não se deu qualquer milagre no gigantesco desenvolvimento daquele imenso país. O que há décadas o mundo presencia é o resultado de ações da grande política: aquela que toma o passado como referência e constrói o futuro. Grandes homens, aliados ao poder de identidade que faz uma grande nação, são necessários para que isso aconteça.

Sem jamais abdicar da soberania nacional, como confirmam os escritos de Henry Kissinger, a China se apresentou ao mundo não como um Estado-nação, mas com os valores universais de uma grande civilização. Ciente disso, reviu os valores do confucionismo, centrado em si mesmo, e enxergou no momento certo o rumo certo. A China continua crendo no socialismo, só que como uma pedra a mais no tabuleiro do Wei qi: a de ter o mercado não mais como um inimigo, mas como um aliado.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas e mestre em Planejamento. É autor, entre outros, do livro A Construção de Goiás.