A carnavalização da arte sempre convida ao objetivo artístico ser alvo de sérios problemas: a burrice é um deles

Performance “La Bête”, de Wagner Schwartz

Márwio Câmara
Especial para o Jornal Opção

É algo, no mínimo, abismante pensar que, em pleno século 21, haja pessoas que não conseguem diferenciar uma performance artística com pornografia, sexualidade, pedofilia ou seja lá qual termo querem deferir para o último caso do Museu de Arte Moderna (MAM), no Ibirapuera, em São Paulo. Polêmica conferida por uma menina tocar o pé de um homem completamente nu, em apresentação feita pelo artista Wagner Schwartz.

É entendível que, expor uma criança para um tipo de performance como essa, possa soar chocante para muitos, sobretudo para os mais conservadores, porém antes de qualquer alarde ou censura baseada em achismos — muito característico hoje em dia nos comentários proferidos nas redes sociais — temos que ser orientados ou (re)educados sobre o conceito de “corpo” ante a uma proposta estético-artística como esta. E, certamente, a mãe que estava ao lado da filha, durante a exposição, tinha consciência do que àquilo se tratava.

Como vivemos numa sociedade onde a demonização do corpo humano é latente, é claro que vamos sempre julgar, levando para o lado pejorativo da coisa ao invés de entender o que não está sendo, de fato, entendido (ou melhor, visto). Lembrem-se que “Isto não é um cachimbo”, para recuperar à memória a intervenção debochante de René Magrett acerca do que seria “realidade” e “representação” dentro de uma perspectiva semiótica vinculada ao objeto artístico. Ou mesmo um mictório de louça e uma roda de bicicleta que passaram a se tornar obras de arte, com o vanguardismo de Marcel Duchamp.

A polêmica em torno da performance, intitulada de “La Betê”, que abriu o 35º Panorama de Arte Brasileira, é um fenômeno psíquico bem característico à cultura do homem civilizado. Por que o índio vê o corpo humano de forma distinta de nós? Lembrem-se das cartas assinadas pelos primeiros europeus que adentraram em nossas terras ao falarem sobre os nativos.

Entendo a questão delicada que envolve uma criança participar de uma perfomance que haja nudez, mas a mesma estava com um adulto responsável (a mãe) e consciente de tudo, pelo que me pareceu. Obviamente que a criança, dentro das suas limitações comuns da idade, não vai entender direito ou fidedignamente o que ali se passa, mas havendo o mínimo de “orientação” de quem a insere dentro daquele contexto, há necessidade de tanto alarde, como, por exemplo, um abaixo-assinado para o fechamento do museu ou mesmo de chamar o artista de pedófilo?

Nossa sociedade moderna colocou a condição do corpo como fruto de objeto stricto sexual ou erotizado. O corpo, além da apreciação sensual, é visto com um vínculo execrado de carga ou espírito de culpa. Mas toda verdadeira arte provoca, lembrem-se! E este caso não é inédito dentro da própria história da arte e da nossa humanidade. O problema está na descontextualização daquilo que se supõe informar.

Um homem destituído de “civilização” dentro de um contexto estético é uma maneira de nós enxergarmos o corpo dentro de uma outra atmosfera que se difere a dos nossos olhos (e da nossa mente). Orientação é tudo para qualquer tipo de coisa. Só não podemos colocar uma performance, com propósitos específicos, dentro do mesmo parâmetro de pedofilia, exploração ou incentivo sexual, porque uma mãe deixa que a sua filha toque no corpo do artista.

De fato, trabalhar com a carnavalização da arte sempre convida ao objeto artístico ser alvo de sérios problemas: a burrice é um deles.

Quantas vezes eu tenho que dizer que “isto não é um cachimbo”?

Márwio Câmara é escritor, jornalista e crítico literário. Autor de “Solidão e outras companhias” (Editora Oito e Meio).