Mariza Santana

Hüsün é a palavra em turco para melancolia. E é justamente esse termo que o escritor Orhan Pamuk utiliza para explicar, no livro “Istambul — Memórias e a Cidade” (Companhia das Letras, 400 páginas, tradução de Sergio Flaksman), o sentimento que os Istambullus, como ele diz, têm em relação a sua cidade, principalmente ao longo da década de 1960 e na seguinte, quando ele ainda era um menino, e depois adolescente, que via sua terra natal em preto-e-branco, saudosa de seu passado imperial glorioso (fora a capital dos antigos impérios bizantino, ainda como Constantinopla, e otomano, já como Istambul).

“A hüsün de Istambul não é apenas um estado de espírito evocado por sua música e sua poesia, mas um modo de encarar a vida que envolve a todos nós, não tanto um estado de espírito quanto um estado mental que, no fim das contas, tanto afirma quanto nega a vida”, tenta explicar o escritor sobre esse sentimento que permeia toda uma cidade. É por meio de suas reminiscências a respeito desse local tão importante para história da humanidade que Pamuk disseca a alma coletiva de sua cidade natal. “A hüsün não se limita a paralisar os habitantes de Istambul, ela também lhe concede uma licença poética para sua paralisia”, completa.

Na visão do autor, situada entre o Ocidente e o Oriente, Istambul se mostra nostálgica de seus tempos dourados, e já empobrecida e triste, ao mesmo tempo em que sua elite, antenada com a ideologia secular da República da Turquia de Atartuk, tenta desesperadamente se ocidentalizar. O menino Pamuk conta como foi criado em uma família numerosa, formada pela avó, pais e tios, que moravam inicialmente em um edifício que levava o sobrenome dos parentes.

Orhan Pamuk: o mais importante escritor turco da atualidade | Foto: Reprodução

O autor relata ainda como seu pai e o tio dizimaram a fortuna deixada pelo avô por meio de uma série de negócios malsucedidos, assim como relembra o casamento infeliz dos pais, as brigas de infância com o irmão mais velho e a disputa pelo amor da mãe. Outro ponto pessoal de destaque é a narrativa sobre seu primeiro amor. A moça amada acaba enviada para um colégio suíço pelo pai, que não via futuro no fato de ela se envolver com um jovem, que embora estudasse arquitetura, mostrava talento para a pintura, e poderia se tornar um artista plástico. E assim o romance termina abruptamente.

Misturando, ora eventos pessoais e familiares, ora a análise das influências das obras de os escritores ocidentais sobre a visão a respeito de Istambul, e de escritores europeus e turcos sobre a imagem da cidade, Orhan Pamuk vai criando um caleidoscópio que retrata o cotidiano e o clima melancólico da cidade, vista pelo olhar criativo de um garoto. Ele relembra os incêndios dos yalis (termo turco que designa uma casa que defronta um corpo d’água) de madeira que ficavam junto ao Bósforo, os quais eram acompanhados de longe, como se fosse um espetáculo, pelos moradores de Istambul.

O escritor fala também dos navios que cruzavam o Estreito com suas chaminés emitindo fumaça negra e relembra acidentes náuticos que causaram comoção entre os “Istambullus”. E apresenta ao leitor os bairros pobres, de ruas estreitas e casas velhas construídas com madeira. Nada de pontos turístico hoje muito visitados, como o Palácio Topkapi, as imponentes mesquitas, o Hipódromo e a Torre Gálata, mas as ruínas bizantinas e as antigas mansões otomanas que apresentam claros sinais de declínio.

A Istambul de Pamuk leva uma vida triste, nostálgica, presa nas tradições e em busca da modernidade ocidental. Ela é descrita por meio das memórias de um escritor de 50 anos de idade que sempre morou nela, e, portanto, conhece bem suas ruas, praças, vielas e segredos. Com fome de colecionador, ele foi coletando imagens antigas da cidade, para perceber o quanto o panorama urbanístico havia mudado e perdido, aos poucos, sua essência otomana, para se ocidentalizar. E essas imagens são utilizadas para ilustrar o livro.

Vagando pela cidade, o autor reflete: “Conto as palavras em francês e em inglês nos cartazes e anúncios, nos letreiros das lojas, nas revistas e nos quiosques; esta é de fato uma cidade que se desloca para o Ocidente, mas não está mudando tão depressa quanto fala, e nem consegue honrar as tradições afirmadas por suas mesquitas, pelos seus minaretes, pelos seus chamados à prece, pela sua história. Tudo está formado pela metade, tudo é precário e contaminado”.  

Orhan Pamuk nasceu em Istambul em 1952. Foi o primeiro turco a ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 2006. Atualmente, é o escritor de maior sucesso comercial de língua turca. Em “Istambul”, o leitor acompanha a trajetória do menino criativo, do adolescente melancólico e do jovem que abandona o curso de arquitetura para se tornar escritor. Pamuk é uma figura de proa na Turquia na defesa dos direitos dos curdos e também crítico do crescente autoritarismo do governo de Recept Tayyipi Erdogan.

Mariza Santana é jornalista e crítica literária. Email: [email protected]