Isaac Alarcão, pintor: entre o físico e o metafísico
06 agosto 2023 às 00h01
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Nonatto Coelho
O exercício da pintura é uma descoberta contínua dos mecanismos que tecem a trama da vida, primeiro para o próprio autor, e depois para o espectador, ou o consumidor do produto.
Como composição esquemática a obra de arte (no caso, falo da pintura) é “tecida” em uma combinação “trivial” de traços verticais, horizontais, circulares e as suas variantes; as combinações desses exercícios mecânicos e mentais, de maneira consciente, ou no modo “automático” — naquilo que habituamos a chamar de automatismo psíquico.
Essa “composição” acontece de forma velada ou explicita, ela, a pintura nasce de uma ideia, isso sabemos através de sua prática…, e na contemporaneidade essa “ideia” acontece de tal modo que pode ser até mais importante do que o próprio objeto de “análise”, na sua singularidade atômica, objetual. A ideia, no mundo da arte contemporânea pode ter uma avaliação distinta do objeto, ela em si pode ser o produto final, dependendo do desejo do criador. É tautologia funcional, um atributo de sua própria significância: arte paravisual.
Mas aqui falo da arte visual de características tangenciais, sem maiores implicações.
Na arte contemporânea a ideia de “valores”, é o conceito que cada indivíduo projeta por sobre o tema; esse não é, em absoluto o dilema da arte, essa “democracia” do olhar é uma conquista inalienável do artista contemporâneo, no qual, acredito ser de seminal importância na epistemologia do multiverso artístico, inerentes da era pós humana, ou atual, como queiramos.
Se situarmos nossas experiências visuais e conceituais na história da arte, partir de períodos que estiolaram — destilaram formalmente na arte do nosso tempo – especialmente no Hemisfério ocidental, a figura humana e suas vizinhanças, estiveram sempre de forma direta ou indireta, como o leitmotiv habitual dos demiurgos. Isso é fator inconteste: “eu te coloquei no centro do universo, para que melhor possa entender o que se passa ao seu redor” teria dito Deus ao Adão, segundo Giovanni Pico dela Mirandola (1463 – 1494), portanto se a arte é uma expressão humana ele reflete e refletirá sua própria identidade, naturalmente.
A passagem de uma concepção teocêntrico da idade média, passando pelo renascimento, até a era cibernética da atualidade, a arte relata na sua iconografia, a fantástica aventura do ser humano. Não podia ser diferente.
Na venturosa tentativa de imprimir, ou revestir o ser humano como sendo sagrado na concepção teocêntrico, ou mesmo de tentar neutralizá-lo, ou negá-lo, a arte, felizmente jamais afastará da sua vocação humanística, por mais dolorosa que a tarefa de sua existência possa parecer.
Em meu ver, mesmo com o surgimento da arte abstrata, não se conseguiu afastar o elemento antrópico contido no núcleo de sua temática.
Visto que a ciência nanotecnologica nos ensinam outras formas orgânicas, concretas, de percepções do microcosmo. Assim, abstração se tornou um segundo tipo de figuração, e sua representação plástica pode ser metáforas visuais da “paisagem” física molecular do corpo humano…
Isaac Alarcão: um grande pintor
Aqui entra em cena o personagem protagonista dessa resenha de intenções literária: o Isaac Alarcão.
Na cidade de Anápolis, no Estado de Goiás, temos um “circuito independente” na tangível geografia da arte brasileira.
Anápolis poderia ser uma segunda capital de Goiás, dada sua importância de natureza humana e industrial polivalente, pulsante…
Uma das principais cidades goianas, com seu polo industrial, e aeroespacial significativo para o país.
Naquela cidade vivem e trabalham uma plêiade de artistas, que colocam Anápolis no mapa onde se produz arte nacional de densidade. E Isaac Alarcão é um deles.
Isaac nasceu em 1951, é um dos grandes pintores Anapolinos que soube aproveitar o incentivo pictórico do professor Oswaldo Torres Verano (1908 -1986), o criador da primeira escola de arte em Anápolis.
A cidade é hoje um dos principais redutos de artistas do Estado de Goiás.
Mas para o momento quero dizer da obra desse jovem de 72 anos de idade. Inúmeras linhas de raciocínio norteiam a obra pictórica de Isaac.
Em algumas fases de seu trabalho, a temática teve um forte apelo social, uma denúncia plasmada em imagens que apelam para a sensibilidade filantrópica do espectador, construída em cima um expressionismo contido, impresso na alma flagelada de personagens “mal nourri”, murchos, subjugados, segregados pelos descasos de políticas públicas dessa nação espoliada.
O artista é comedido em suas palavras e gestos, quase tímido, mas quando ele se enviesa por temas políticos sociais, sua mensagem é direta, gritante, indisfarçável, sem subterfúgios, perturbadoras.
Mas as várias facetas iconográficas do pintor, não evita incluir um gostoso surrealismo onírico, levemente teatral, são como fábulas visuais inventadas na imaginação lírica de Alarcão, onde, uma dosagem equilibrada de tons claros, mesclam com os tons escurecidos, em cores suaves, “aromáticas” e harmônicas…
Na fase mais recente do pintor, ele revisita os nossos ambientes rurais, sem perder sua paleta tradicional de cores.
Nostálgico, ele recria nas suas pinturas, uma atmosfera de completa paz para o deleite de nossas retinas contemplativas.
O Isaac Alarcão paisagista é a antítese da sua própria fase de pinturas engajadas, de teor político.
No momento de sua maturidade artística, o exímio pintor se emancipa do sagrado direito de pintar o que bem te apraz, ante à qualquer possível questionamento de natureza conceitual. Ele persegue a beleza estética e consegue a graça.
Seu domínio técnico é impecável, sua pintura nunca abstraiu, ou aventurou de fora da figuração, quando muito, a sua arte viajou nas asas metafísicas da imaginação, dos sonhos, nesse sentido eu vejo uma espécie de abstração na alma sonhadora do pintor Isaac Alarcão.
Seus quadros são janelas que se abrem, e descortinam em poesias, as vezes ácidas como em sua fase de crítica mordaz social, ou nas construções de cenários festivos, risonhos, por vezes edênicos. É puro prazer retiniano.
Acompanho a pintura de Isaac Alarcão desde o início dos anos 80, e passado sua fase dos flagelados expressionistas, que aliás, acho sua fase mais interessante, ele exerce a pintura pela pintura, sem sobressaltos, ou nenhum elemento intencional que venha produzir rupturas de natureza conceitual do setor. É um senhor pintor, que trata a pintura respeitosamente de “senhora” com muito carinho.
Nonatto Coelho é artista plástico e pesquisador.