Escritor utilizou o realismo fantástico para tecer críticas à ditadura civil-militar e à chegada das empresas estrangeiras no Brasil

Mariza Santana

O escritor gaúcho Erico Lopes Verissimo (1905-1975) é um dos principais expoentes da literatura brasileira. Sua obra-prima é a trilogia “O Tempo e o Vento” (reeditada pela Editora Companhia das Letras), que relata a história do Rio Grande do Sul, com a participação de personagens marcantes como Ana Terra e Capitão Rodrigo. A obra inspirou filmes e minissérie de TV. Também vale citar os livros “Olhai os Lírios do Campo” (que teve uma novela homônima baseada na obra) e “Clarissa”, entre outros

Entretanto, outra obra de Erico Verissimo — pai de outro grande escritor, Luis Fernando Verissimo —, está completando 50 anos de publicação. O romance “Incidente em Antares” (Companhia das Letras, 440 páginas) foi publicado em 1971 e também inspirou uma minissérie de TV. O que esse livro tem de diferente em relação aos demais escritos pelo literato gaúcho é a forma como foi concebido, principalmente em termos de linguagem.

Erico Verissimo utilizou o realismo fantástico (mais conhecido nas obras do escritor colombiano Gabriel García Márquez) para tecer críticas à ditadura civil-militar, em uma atitude bastante corajosa para a época. Naquela década de 1970, o País vivia os chamados “anos de chumbo”, os momentos mais lúgubres do regime autoritário que se manteve até a meados da década de 1980, quando finalmente o Brasil voltou ao regime democrático.

Em “Incidente em Antares”, o escritor também chamou a atenção para a chegada das empresas estrangeiras no Brasil. Pois se os direitos individuais não eram respeitados naquele momento da história nacional, a economia vivia o chamado “Milagre Brasileiro”, com crescimento expressivo. Inclusive, as autoridades econômicas da época defendiam que o bolo da economia crescesse primeiro, para depois ser dividido — fato que nunca aconteceu. Os pobres continuaram pobres e a desigualdade social ainda é um grande desafio nos tempos atuais — agravada com a pandemia.

Erico Verissimo: escritor brasileiro | Foto: Reprodução

No romance “Incidente em Antares”, Erico Verissimo abordou a temática política de forma corajosa, em um período no qual a censura era predominante. Ele se utilizou da linguagem sobrenatural para denunciar o momento difícil pelo qual passava a sociedade brasileira.

O romance tem início numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, quando a matriarca Quitéria Campolargo, que tinha morrido, desperta do lado de fora do cemitério da cidade fictícia de Antares, junto com outros seis cadáveres, mortos-vivos, todos insepultos como ela. Os coveiros locais tinham aderido à greve geral da cidade, e os mortos ficaram sem enterro.

Indignados, os tais defuntos, já em estado de composição, resolvem reivindicar o direito de serem enterrados, senão ameaçam assombrar os habitantes de Antares. Eles seguem pelas ruas, vasculhando a intimidade de parentes e amigos, e, devido à condição de mortos, podem fazer isso sem temer represálias.

Depois, os mortos-vivos se reúnem no coreto da praça para serem vistos por todos, à espera de uma solução. O cheiro putrefato exalado pelos corpos em decomposição fica no ar. Enquanto isso, são desvendadas as vilanias e as sujeiras, além dos mais bem guardados segredos dos cidadãos de Antares.

O narrador do romance é onisciente, tudo vê e sabe todos os detalhes sórdidos dos integrantes das duas famílias que dominam a região: os Campolargo e os Vacarianos. A rivalidade e luta pelo poder das duas famílias poderosas chegavam às raias da violência.

Entre os mortos-vivos está a matriarca Quitéria Campolargo, que em sua nova fase se vê misturada com defuntos não tão nobres como ela, muito longe de sua antiga condição social de quando era viva. Ao lançar mão do realismo fantástico, Erico Verissimo tece uma crítica social e política poderosa. O livro é daqueles inesquecíveis, que ficam marcados na lembrança do leitor. Ao mesmo tempo, está sempre presente a linguagem tão precisa quanto refinada do escritor.

O interessante é que, 50 anos depois da publicação de “Incidente em Antares”, os brasileiros estão novamente às voltas com ameaças autoritárias. E o pior de tudo, algumas pessoas até se dizem saudosas do regime militar. Tem um ditado que diz: a história deve ser contada, para que os erros do passado não sejam repetidos. Talvez, esse seja mais um motivo para ler (ou reler) essa grande obra literária cinquentenária.

Mariza Santana é crítica literária do Jornal Opção.