Improviso: Kandinsky começa num ponto
10 janeiro 2015 às 11h03

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Exposição em Brasília contempla a vida e influência artística do precursor do abstracionismo

Yago Rodrigues Alvim
“Foi tudo tão grandioso, hoje. E por isso tantas coisas que deixei, aqui, ficaram pequenas, insignificantes até. Meus olhos viram o que de mais bonito pode estar no coração do homem. Meus olhos querem cantar”, escreveu ela. A maravilha tinha cores de Kandinsky.
Fora da capital goiana à capital brasileira, Brasília. Numa galeria, atracou-se no silêncio de Schoenberg e descobrira a vida do artista russo, Wassily Kandinsky. Feito pedra de Drummond, nasceu dum ponto em 1866. E, quase dois séculos depois, sua arte desbravara no Brasil uma exposição-marco, cujas raízes estão, abstratamente, do nome à disposição nas paredes, mostradas pela primeiríssima vez na América Latina.

Mais de 197 mil pessoas já perambularam pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), do Distrito Federal. Não fora só ela, Cynthia Borges. Os olhos da mulher percorrem por textos teatrais e, ainda que pertença a outra arte, sabe bem se maravilhar em textura de tintas reluzentes em telas, preto de xilogravuras, madeira esculpida, ferro em colares, tecidos ancestrais. É que “Kandinsky: Tudo Começa num Ponto” une mais de 150 peças, fazendo varanda, sala e quarto de dormir a quem visita a exposição.
Esse foi o objetivo dos curadores russos Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky ao matutarem o que os brasileiros veriam do precursor do abstracionismo. Itinerante, as obras viajarão um pouco mais: além de virem da Rússia, do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, e de coleções particulares da Alemanha, Áustria, Inglaterra e França, as peças seguem para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte e, por fim, para São Paulo. Ainda dá tempo de correr a Brasília, pois a exposição se demora ali até esta segunda, 12, depois de dois meses aberta ao público.
Os visitantes imergem em cinco blocos, pensados pelos curadores: “Kandinsky e as raízes de sua obra em relação à cultura popular e o folclore russo”; “Kandinsky e o universo espiritual do xamanismo no Norte da Rússia”; “Kandinsky na Alemanha e as experiências no grupo Der Blaue Reiter, vida em Murnau”; “Diálogo entre música e pintura: a amizade entre Kandinsky e Schonberg” e “Caminhos abertos pela abstração: Kandinsky e seus contemporâneos”.
Nas palavras de Evgenia, a maior parte da exposição dedica-se aos pormenores que explicam e completam o conhecimento sobre Kandinsky. “Ao selecionarmos obras para essa exposição, seguimos a biografia do artista até sua partida definitiva da Rússia, em 1922, e recorremos a suas memórias (‘Degraus’), artigos e catálogos das exposições organizadas durante a vida do pintor, especialmente ‘O Cavaleiro Azul’ e o ‘Salão de Izdebsky’. Como isso nos ajuda a entender Kandinsky? A nosso ver, o contexto em meio ao qual Kandinsky se formava como artista plástico é um fator muito importante”, relata a curadora, no catálogo.
O diretor geral da exposição, Rodolfo de Athayde, pincela a fala de Evgenia ao dizer que entender o gênio criativo kandinskiano implica, também, em entender a sensibilidade que marca a arte a partir do século XX. “A exposição apresenta o prólogo desta história enriquecida que é a arte moderna e contemporânea: o modo em que se forjou a passagem para a abstração, os recursos a partir dos quais a figuração deixou de ser a única via possível para representar os estados mais vitais do ser humano e, finalmente, o novo caminho desbravado a partir dessa ruptura”.

Foi este o novo lugar descoberto: a contemplação e ascensão, que vinha nas palavras da assessora Nara Lacerda. O fardo marcava, em preto, as linhas que dificultam se elevar ao céu: o homem em sua constante tentativa de vida – o xamanismo e a espiritualidade que pintava as telas. As formas e as figuras fogem a qualquer impressão do que possa ser abstrato. “Não é abstracionismo, diria Kandinsky, se você avistasse qualquer sinal do figurativo”, disse Nara aos ouvidos de Cynthia.
“Poucos de nós saberíamos isso”, passaria, por certo, nos pensamentos da atriz. E não é por menos. A coordenadora Ania Rodrigues, em uníssono com Rodolfo, ecoa em tais dizeres: “Encontraremos também um Kandinsky poético e lírico, no momento de seu auge criativo, no exato instante das suas descobertas. Este é o grande valor deste projeto e da curadoria de Evgenia e Kiblitsky: uma exposição forte e desafiadora, que teve que ser defendida com muito tesão e paixão pela arte e pelo conhecimento, fruto de um enorme esforço de todas as partes envolvidas, e é dedicada a um público ávido e cada vez mais exigente, como o brasileiro.” Esse é um Kandinsky que os ocidentais desconhecem.
Biografia abstrata
Aos 20 anos, Kandinsky iniciou seus estudos em Direito, em Moscou. Casou-se com sua prima Anja Chimiakina, formou-se e decidiu lecionar. Fora pouca a experiência. Richard Wagner logo o provocara. Após uma ópera do maestro, no Teatro Bolshoi, e uma exposição de impressionistas franceses, ele se mudou para Alemanha, para estudar pintura. Em 1900, adentrou a Academia de Artes de Munique, e teve lições com o já renomado Franz Stuck. Foi, então, que conheceu Gabriele Münter. Três anos depois, já divorciado, se enamorou da moça. Na Europa, vivenciaram a arte. “Kandinsky: Tudo Começa Num Ponto” traz obras da também artista que teve grande influência sobre ele.
A inquietude fora o que uniu Kandinsky e Gabriele e que os unira a outros grupos de artistas também irrequietos. Em 1911, com Franz Marc, criaram um grupo chamado “Der Blaue Reiter” (Cavaleiro Azul). Nesse período, viveu seu momento mais frutífero. Tanto, que, em 1912, publicou “Do Espiritual na Arte” –– a primeira fundamentação teórica de arte abstrata. No ano seguinte, lança um livro de memórias e uma coletânea de poesias, com 55 litografias em preto e branco e cores.
Foi, então, que a Primeira Guerra teve inicio. Assim, Kandinsky voltou para Moscou, sem Grabriele. Lá, não abandonou a arte, ao contrário, fundou 22 museus provinciais. Entretanto, se envolveu com movimentos políticos pós-revolucionários. Em 1917, ele pintou, provavelmente, sua aquarela mais famosa: “Uma Voz Desconhecida”. O caso, por traz da pintura, é belo. Nina Andreevsky o conheceu num encontro fortuito – resultado de um telefonema. Impressionado com a voz da moça, Kandinsky decidiu encontrá-la. A aquarela é uma homenagem a ela, sua jovem segunda esposa.
A ideologia socialista na arte pressionou Kandinsky até que ele voltasse à Alemanha. Suas obras, durante o regime, foram banidas dos museus soviéticos. Na Alemanha, a convite de Walter Gropiuos, participou da Bauhaus que, em 1932, foi fechada sob campanha dos socialistas. Muitas de suas telas a óleo e aquarelas, pintadas entre 1926 e 1933, se perderam. Os nazistas o haviam declarado como “degenerado”.
Aos 67 anos, ele e sua esposa viajaram para a França e viveram próximo a Paris, em Neuilly-sur-Seine. Lá permaneceu até que seu ponto inicial chegasse ao fim. E, não obstante, a morte não o apagara. Kandinsky deixou retas em riscos, pontos em texturas coloridas. Desaguou, da fonte, cobrindo telas. Pintou, sobretudo, a vida: a mais pura abstração.