Identidades transcontinentais no romance “O Xará”, de Jhumpa Lahiri

07 setembro 2017 às 12h03

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Em seu primeiro romance, autora norte-americana, filha de indianos, faz referência direta ao escritor russo Nikolai Gógol

Flávia MF
Especial para o Jornal Opção
“O Xará”, de Jhumpa Lahiri (Biblioteca Azul, tradução de Rafael Mantovani, 344 páginas), aborda, entre tantos temas, o ciclo da vida. Logo no início da narrativa, conhecemos Ashima e Ashoke Ganguli, indianos que se mudam no final dos anos 1960 para a Nova Inglaterra. Das dificuldades de Ashima em se adaptar ao país, longe de tudo que lhe é familiar, ao emprego de Ashoke na Universidade, a história formula suas bases com o cotidiano do casal, as esparsas idas à Calcutá, as dolorosas perdas de amigos e parentes enquanto estavam longe, e expõe a inadequação da existência em terras estrangeiras.
A trama tem, em sua base, os costumes trazidos da Índia. Assim, ficamos sabendo que é tradição que as crianças originárias de Bangladesh ou Bengala Ocidental (chamados bengalis) tenham dois nomes: o nome de criação, usado pelos familiares e pessoas próximas, e o nome bom, que as identifica no mundo externo. A jornada de Gógol Ganguli, filho do casal, começa no momento em que, na maternidade, seus pais aguardam a carta da avó com seu nome escolhido por ela – carta esta que nunca chegou. Ashima e Ashoke decidem, então, registrá-lo com seu nome de criação, Gógol, assim escolhido devido ao apreço de seu pai pelo escritor russo, Nikolai Gógol.
A importância deste nome vem da ocasião que mudou a vida de Ashoke: ao sofrer um acidente de trem e ser um dos poucos sobreviventes, tinha um exemplar de O Capote, livro do autor, que adorava, em mãos. Depois desta experiência de quase morte, decidiu mudar os rumos de sua existência – sob os protestos da família, mudou-se para o exterior com o objetivo de se formar em engenharia e, posteriormente, para trabalhar.
Jumpha Lahiri é eficiente em construir uma trama que analisa, em terceira pessoa, os diferentes personagens da família, aproximando-os ao mesmo tempo em que disseca seus sentimentos e suas vidas individuais. Assim, o foco narrativo muda de Ashima para Ashoke, e dele para Gógol ao longo dos capítulos, permitindo que a passagem do tempo seja interpretada do ponto de vista de cada um destes indivíduos, expondo também seus desafios, vitórias, medos e aprendizados.

Autor: Jhumpa Lahiri
Tradução: Rafael Montovani
Página: 344
Editora: Biblioteca Azul
Trata-se de um romance bem escrito, de estilo suave e fluido. A autora foi vencedora do prêmio Pulitzer de Ficção no ano 2000 com o livro de contos “Intérprete de Males” (lançado em 2014 pela Editora Globo, em tradução José Rubens Siqueira) e parece manter em “O Xará” a temática da complexidade identitária encarada por imigrantes – especialmente indianos –, juntamente com a forte sensibilidade ao apresentar as situações vividas por eles.
Ao acompanharmos Gógol em sua infância, é crescente a sensação de desconforto, ao que o menino se mostra inseguro tanto em relação a seu nome quando a sua identidade. Os dilemas vividos pelo personagem são um reflexo da vivência da própria autora, que é indiana, assina com seu nome de criação e passou pelas mesmas situações de alguém que não se considera completamente inserido em nenhuma cultura, estando deslocada em todas.
A mudança do nome de Gógol para Nikhil mostra o ponto alto de sua intenção de romper com as raízes tão valorizadas por Ashima e Ashoke, assim como com o mundo criado por eles. A exemplo de seu pai, que saiu do país para conceber seu futuro, apesar dos protestos de seus familiares, Gogol também busca seu caminho, afastando-se do que foi traçado por seus pais. Ashoke acaba por viver os dois lados de um mesmo conflito. Esse é apenas um dos vários momentos em que a busca por autonomia repete histórias já protagonizadas.
A identificação com esta fase de afastamento, negação e tentativa de afirmação da própria identidade com a busca de novas referências é muito grande para leitores que passaram por algo similar na adolescência e no início da fase adulta. Os momentos em que renega os pais, venerando, em contrapartida, o estilo de vida da namorada e dos sogros trazem lembranças pessoais que deixam o coração pesado. Resta a reflexão de como o tempo é ardiloso: sempre achamos que existe mais por vir, quando, de repente, sem aviso prévio, ele simplesmente acaba.
Assim como em “O Capote”, conto de seu xará, muitas vezes a vida passa rápido e sem sentido, principalmente se não temos seu bem mais precioso: as pessoas que nos amam e que se importam conosco. Onde encontrar a felicidade? O fato é que não existe uma fórmula certa: por erros e acertos nos transportamos entre escolhas e familiaridades e cada qual se encaixa em um momento da vida. Dessa forma, aprendemos, refletimos. A única certeza é que nada é permanente, tudo é mutável.
Podemos identificar a semelhança da jornada de Gógol com a de Stoner, personagem do livro de John Williams: homens comuns, com alegrias cotidianas e resistência silenciosa e constante aos percalços da vida. Seus defeitos são humanos e suas qualidades não evitam os grandes sofrimentos enfrentados pela humanidade. Não seriam esses os verdadeiros heróis?
Flávia MF é graduada em História, pela Universidade de Brasília (UnB), e em Relações Internacionais, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).