Salomão Afiune: “A Justiça não é cega”. O pano cobrindo os olhos “significa que o julgador não deve identificar as partes envolvidas no processo”

Demóstenes Torres

Especial para o Jornal Opção

O juiz aposentado Salomão Afiune dedica seu livro “Causos Jurídicos”, lançado pela Editora Kelps, também “aos alunos da PUC-GO e de outras instituições onde” lecionou. “Foi um senhor juiz”, define-o no prefácio o desembargador Jamil Pereira de Macedo. “Foi um senhor professor”, parafraseio como seu aprendiz na citada Católica — observe o final deste texto.

A capa tem um belo quadro da deusa Themis, aquela com a venda. Já na primeira orelha, Afiune desfaz um equívoco comum em todas as mídias, inclusive as sociais, e na sabedoria popular: “A Justiça não é cega”. O pano cobrindo os olhos “significa que o julgador não deve identificar as partes envolvidas no processo”. Ele entende do assunto, pois imparcialidade é um de seus sobrenomes.

Salomão Afiune: juiz aposentado e escritor | Foto: Divulgação

A obra é disposta em três capítulos, dividindo as histórias conforme acontecidas “No Direito de Família”, “No Direito Civil” e “No Direito Penal”. E que histórias!, tão curtas quanto engraçadas. Desfrute do inteiro teor da primeira:

Separados por uma viagem

“Ao tentar reconciliar um casal em audiência preliminar, no interior do Estado de Goiás, percebi que a mulher, apesar de afirmar que queria a separação, demonstrava o contrário.

“Tratava-se de casamento de mais de trinta anos, com filhos já adultos.

“Resolvi conversar com os cônjuges separadamente e, quando a mulher se viu a sós comigo, disse que estaria contrariada porque seu marido havia levado a amante para ‘Sun Paulo’, e ela, ele nunca levara.

“A esposa, na verdade, não se mostrava magoada pelo fato de ter sido traída pelo marido e, sim, porque a ‘outra’ tivera o privilégio de ter viajado para ‘Sun Paulo’, cidade que ela não conhecia.

“Por fim, ela colocou as mãos na cintura e disse:

“ — Se ele não ficar comigo, neste corpinho que a terra há de comer nenhum outro vai pôr a mão.

“Concedidos alguns dias para os requerentes refletirem, não mais retornaram. Certamente, o marido deve ter levado a esposa para ‘Sun Paulo’, só não sei se continuou com a amante.”

A vontade é reproduzir todos os causos, pois cada um é mais divertido do que o outro.

Jamil Macedo selecionou dois episódios que “retratam o traço de humanidade do autor: ‘Serviço prestado’ e ‘Pagamento em calcinhas’”, ambos do capítulo “No Direito Civil”. Concordo tanto que vou digitar os dois, com leves edições:

1

Serviço prestado

“Contratada para fazer dois vestidos para adolescentes, uma costureira não recebeu pelo serviço, o que a levou a buscar a via judicial. Durante quase uma hora de tentativa conciliatória, as partes permaneceram irredutíveis: a autora não queria as roupas de volta e, sim, o dinheiro, enquanto a requerida, mãe das moças, se recusava a pagar, sob o pretexto de que os vestidos haviam ficado defeituosos. Como o juizado se localizava na região central da cidade, havendo alguns brechós nas proximidades, suspendi a audiência por alguns minutos e me dirigi a uma dessas lojas acompanhado da secretária. Vendemos os vestidos pelo valor que satisfazia a autora. Retornando, foi elaborado o termo, de acordo com a anuência das partes, que saíram satisfeitas.”

2

Pagamento em calcinhas

“Após acidente de trânsito envolvendo dois veículos, o condutor de um deles, inconformado pelo dano, protocolou ação indenizatória contra a condutora de uma picape antiga.

“Em rara exceção, pois a maioria dos motoristas atribui a culpa ao outro, a requerida, durante a audiência, admitiu sua culpa. Disse que aceitava uma composição, porém, não tinha como arcar com o prejuízo em espécie, pois vendia peças íntimas femininas em feira livre. Poderia pagar com calcinhas. E colocou um grande saco sobre a mesa, pedindo licença para exibir a mercadoria.

“A princípio, relutei e achei estranho negociar roupas em audiência, mas como tudo — ou quase tudo — vale por um bom acordo, permiti a mostra do produto. As advogadas e a defensora pública gostaram das peças e até levaram para mostrar à promotora em sua sala.

“Aí, então, o autor, que estava reticente, ‘cresceu o olho’, vislumbrando um bom negócio, aceitou 150 calcinhas para fechar o acordo. Como a requerida tinha apenas 75 peças em seu poder, lhe foi concedido prazo de 30 dias para confeccionar o restante e entregar.”

Os merecidos adjetivos

Salomão Afiune sempre foi assim, com esse nível de humanitarismo, no juizado ou na sala de aula. Incentivava a composição entre as partes muito antes de ela virar lei.

Estudei Direito Comercial com o dr. Salomão por três semestres a partir de 1979, o que me faz concordar com cada adjetivo escrito por Jamil Macedo no prefácio — discordo apenas de seu pedido de desculpas ao reclamar da “memória de alguém que ultrapassou os 80 anos”.

O cérebro de Jamil Macedo continua brilhante como nos tempos de cátedra e de presidente do Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Eleitoral e da Associação dos Magistrados, os três em Goiás. Vê no mestre Afiune: “Postura séria, responsável, serena e alheia a qualquer traço de juizite”; “discreto, atencioso e acessível”; “prestou inestimável serviço à magistratura de Goiás”; “granjeou o respeito e a admiração dos que com ele serviram ou a ele recorriam”; “cidadão respeitável e respeitado enquanto viver”; “profícua atuação”; “sempre procurando ser justo”; “magnânimo”; “buscando a melhor solução para conciliar e pôr fim ao litígio”; “vocação dominante: a solução dos conflitos sociais”; “qualidades desse digno magistrado na difícil tarefa de julgar bem”; “linguagem simples, sem juridiquês”.

Merecedor de cada sílaba mencionada acima, Salomão Afiune é, em si, uma lição de vida. Exerceu praticamente todos os cargos de vulto da magistratura goiana e, após ser professor de Direito por 42 anos, advogado por 10 e juiz por 33, aposentou-se e foi cuidar de uma paixão, a comunicação. Conclui a segunda orelha de seu livro informando: “Cursou Fotografia e, hoje, é acadêmico do curso de Jornalismo da Faculdade Sul-Americana, Fasam”. Agora o leitor se convenceu dos elogios contidos nesta resenha. Que, inclusive, resultou bastante contida.

Demóstenes Torres é advogado e foi procurador-geral do Ministério Público de Goiás.