HQ une literatura e filosofia para desconstruir a existência de Deus
28 novembro 2015 às 13h16
COMPARTILHAR
“Conclave”, de autoria do historiador Ademir Luiz, é uma daquelas obras que podem ser consideradas irremediavelmente heréticas
Tobias Dias Goulão
Especial para o Jornal Opção
A perspectiva do filósofo grego pré-socrático Demócrito acerca dos deuses era que, não havendo Um Deus Verdadeiro e Imortal, haveria então deuses vulgares. Estes, como os homens, seriam formados por átomos e vácuo e sujeitos à lei da morte. Esta perspectiva pode nos levar a entender o argumento da HQ autoral do professor pós-doutor Ademir Luiz.
Ademir Luiz é doutor em História e pós-doutor em Poéticas Visuais. Polemista de mão cheia e de ímpar erudição afiada, sempre disponibiliza em vários veículos textos de conteúdos culturais, discutindo literatura, cinema, política e outros temas, sendo capaz de variar seus assuntos de Chaves a Felipe Neto, de Harry Potter a Umberto Eco.
Entre suas obras não acadêmicas estão livros como “Hirudo Medicinallis: ou Carta Aberta de Um Vampiro de Brinquedo ao Espectro de Orson Welles” e “Arquivo de Heresias: Ensaios de Crítica Cultural”. Recentemente, como resultado do pós-doutorado, está lançando, em parceria com o ilustrador Rafael Campos Rocha, a história em quadrinho autoral “Conclave”. Nela, todas as conspirações podem ser verdade. Pelo menos, aquelas que Deus fez.
HQ
A história narra a descoberta feita por Iago Cioran de que ele não é um humano comum. Após um acidente que quase causa sua morte, cujas proporções para pessoas normais poderiam significar o fim da existência, ele descobre ser filho de Deus. Sim, ele mesmo, o Todo Poderoso, que comanda o Vaticano, que está por trás da eleição dos papas e da manutenção da instituição de maior sucesso do planeta nos últimos milênios.
Claro que esse tipo de descoberta não é simples de ser assimilada, mas Iago terá, como bom filho de Deus, um período de purificação de 40 dias. E, como os tempos passaram, não será no deserto e sim no Éden. Depois que compreende sua condição, sai do jardim dos céus e volta ao mundo e mais descobertas são feitas.
Um encontro com Thor esclarece outra parte da história. Sim, é o Thor, filho de Odin, que um dia possuiu o Mjolnir e que hoje é um motoqueiro casca-grossa, de jaqueta de couro e que tem por mérito espancar Sansão em bares. Em uma conversa com Thor, Iago descobre que os deuses, todos eles, existem e estão vivos como ele — ou já morreram, assim como ele poderia ter morrido. A questão é que Deus venceu uma guerra contra os outros deuses e, assim, ficou com toda a influência e glória como “O Deus”.
Para finalizar a jornada de Iago, o encontro com seu pai esclarece tudo aquilo que ainda estava solto. Deus é o chefe de um grande negócio que começou há alguns milênios na região do Oriente Médio. Ele, um protojudeu, descobriu que era diferente das pessoas comuns. Não sabe como isso aconteceu, mas quer entender um dia e financia pesquisas para tanto. Enxergando-se diferente dos outros, foi elevado à condição divina pelo povo. Com isso, seu negócio foi crescendo, crescendo e crescendo. Poucos são os que têm ciência desta existência de Deus, entre eles os altos cardeais e outros grupos influentes como os maçons.
Na história, Deus se mostra a seu filho Iago como uma pessoa que, por ser mais poderosa, resistente e com dons especiais, foi elevada ao nível de divindade. Mas pode, como qualquer um, morrer ou ser ferido. Sua vantagem é que, por ser mais forte, consegue sobreviver a muita coisa, recuperar-se e “voltar dos mortos”. Isso ele divide com seu filho que, a partir de então, compreende o plano de Deus na terra e vai viver seu caminho como um além-homem, uma espécie que pode, talvez, ser o ápice da evolução.
Narrativa e pesquisa
A perspectiva colocada na HQ pode dialogar com a exposição de Demócrito sobre os deuses vulgares e também com a perspectiva do evemerismo, teoria que defende o fato dos deuses serem personagens históricos passados, que pela fama de suas histórias que foram potencializadas com o tempo, tornaram-se, então, divindades. Dentro da construção narrativa, o que foi explorado pelo autor na pesquisa do pós-doutorado, o contexto da existência dos deuses não passa de uma amplificação dos fatos cometidos por entes supra-humanos que foram divinizados e se aproveitaram disso para construir grandes estruturas institucionais e terem uma vida boa.
Ou seja, um processo similar a muitas figuras que, ao longo da história, tiveram ações extraordinárias e passaram a figurar um panteão quase divino de novos deuses e heróis (quem sabe só não se tornaram deuses por interferência de Deus). Uma sacada genial e herética, digna de quem já possui um vasto arquivo com heresias para compor uma narrativa fluida e que mexe com questões religiosas, sexo e violência, colocando a mensagem da descrença em forças sobrenaturais em voga, sem preocupações.
A religião, demonstrada dessa maneira, acaba por se revelar uma criação humana, com o único envolvimento inexplicável, sendo uma mutação genética em uma pessoa oportuna para fazer um fato “simples” como esse ser motivo de apoteose. Inserindo isso em um processo narrativo de descoberta, tanto a pessoal do personagem sobre si, quanto a do enredo no qual a Terra e as pessoas estão envolvidas no plano do Deus de Ademir, passamos pela constatação de que esse mundo das divindades apresentado nada mais é que a vitória de uma metanarrativa sobre as demais. Ou seja, o protojudeu que se viu superpoderoso achou em tal característica a oportunidade para se levantar sobre os demais, meros mortais.
Mas além da conotação narrativa da inexistência de Deus, pelo menos como estamos acostumados a ouvir, ainda dá para observar um detalhe no nome do personagem principal e uma pequena mensagem que ele pode passar. Iago Cioran carrega em seu segundo nome a alcunha que nos leva a Emil Cioran, filósofo romeno, radicado na França, filho de um padre ortodoxo, que em sua linha de pensamento sintetizou o mais puro ateísmo de Schopenhauer e Nietzsche, somados a um pessimismo tão agudo que o fazia flertar com a ideia de suicídio.
A obra de Cioran foi de um ateísmo forte, com combates ferrenhos contra a ideia de Deus. Mas mesmo sobre esta ótica, ele ainda admirava a figura dos santos, homens que estavam além do comum, pela renúncia à vida que eles normalmente expressavam e que também foi tema dos escritos do romeno.
Talvez, junto de Cioran, podemos ter um vislumbre do que há no fundo da história do professor Ademir. Para além do choque e da blasfêmia que muitos o acusarão (não sem motivos), devido ao que faz com o tema da religião e a negação completa de seu elemento sobrenatural, ele pode estar, como Cioran em sua oração no “Breviário de Decomposição”, apenas exercendo o seu direito de não crer.
Tobias Dias Goulão é mestre em História pela Universidade Federal de Goiás.