Edmar Monteiro Filho

Gilberto Freyre analisa a ascensão dos jovens bacharéis aos cargos políticos no Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, como sinal de uma tendência ampla, que qualifica como “vitória dos moços”. Afirma Freyre que os “velhos capitães, ouvidores, juízes, ‘homens bons’” iam se retirando das posições proeminentes na sociedade brasileira, atendendo aos reclames de um sistema que tinha como paradigma o imperador D. Pedro II, coroado aos quinze anos de idade. E conclui que “com a ascensão social e política desses homens de vinte e trinta anos foi diminuindo o respeito pela velhice, que até os princípios do século XIX fora um culto quase religioso”.

Penso que o diagnóstico lúcido de Freyre pode ser ilustrado em nossos dias tanto pelo descaso dos asilos quanto pelo uso de eufemismos como “melhor idade”, que oculta um processo de mercantilização de uma faixa etária que há pouco tempo era considerada depositária de sabedoria. Fingimos cuidados e atenção, disfarçando nossa incapacidade de acatar a experiência consolidada em tempos nos quais somente o novo merece crédito.

Schmuel I. Agnon: Prêmio Nobel de literatura de 1966 | Foto: Reprodução

A representação clássica do homem idoso como depositário do saber da comunidade, atuando como conselheiro e juiz, reforça as ideias da existência como oportunidade de aprendizado e da necessidade de se aconselhar com o passado para decidir o futuro. A progressiva desvalorização dos mais velhos pode ser vista como parte do processo de transformação das sociedades ocidentais, em curso acelerado desde a Revolução Industrial e que abrange aspectos econômicos, comportamentais e ideológicos. A produção de bens e ideias não mais atende a uma certa demanda, mas cria demandas artificialmente para que a novidade possa surgir de modo ininterrupto e acelerado. Tal processo cria a ilusão de que a novidade vale por si mesma e que o saber se mede pela quantidade de informações acumuladas.

As diferentes sociedades sofreram cada qual a seu modo o impacto desse processo. Algumas desapareceram, outras se adaptaram e outras encarnaram esse embate terrível entre as tradições e a sede de mudança que a modernidade impôs. Para a comunidade judaica da Europa, as transformações mundiais tiveram resultado especialmente doloroso, tanto no que diz respeito à sobrevivência das suas milenares tradições quanto para sua existência física. São essas as questões que servem de pano de fundo para “Hóspede Por uma Noite”, romance do prêmio Nobel de literatura de 1966, Schmuel I. Agnon.

Repetindo a história do próprio Agnon, o protagonista do livro é um erudito judeu que emigra para a Palestina nos primeiros anos do século XX e que acaba retornando à sua terra Natal, na Polônia, alguns anos após a Primeira Guerra. Ao invés da comunidade bem estruturada e próspera, fiel à religião e aos costumes judaicos que deixara ao partir, o que o viajante encontra é uma terra devastada pelos combates, pelas perseguições antissemitas e pela descrença. As casas estão em sua maior parte abandonadas ou destruídas, a maioria da população morreu na guerra ou nos pogroms; já não se praticam os ritos religiosos e ninguém mais espera pela misericórdia divina para colocar fim ao sofrimento e à ruína generalizada; a velha casa de estudos, onde o personagem vivera longos períodos de aprendizado, jaz esquecida e vazia. Desafiado por um dos moradores da cidade, o visitante aceita a chave da casa de estudos e se propõe a reabri-la e fazer com que recobre sua antiga glória como local de iluminação para a comunidade.

A partir desse enredo, Agnon promove um desfile de personagens e situações que ilustram de modo doloroso o processo de desagregação e secularização de um povo assediado pelo ódio racial e pela violência da guerra. Numa linguagem que contrasta a voz ancestral da sabedoria judaica com as questões cotidianas de uma comunidade que luta para reencontrar sua identidade, “Hóspede Por uma Noite” é um relato especialmente trágico quando se imagina que foi composto às vésperas do Holocausto.

Crença e descrença, fuga ou resistência ao mal: são essas as questões essenciais tratadas neste livro magnífico. Inspirando-se na figura do velho judeu que luta para convencer um mundo destruído de que a fé é possível, vale sonhar com um tempo em que a fraternidade e a alegria possam ser, ao invés de meros hóspedes por uma noite, moradores definitivos dos corações humanos.

Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]