História de Margarida Rodrigues e sua paixão pelo piano. Goiana emocionou JK

28 abril 2024 às 00h00

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Marina Teixeira Canedo
Especial para o Jornal Opção
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Do Rio para o Cerrado
Como disse Fernando Pessoa no belíssimo e comovente poema “Mar Português”, contido em seu livro “Mensagem”, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Pensando nisso e concordando com o bardo de Lisboa, imagino quão imensas foram as almas de meu pai e de minha mãe. Também eles, como poetizou Luís Vaz de Camões, atravessaram “mares nunca dantes navegados”, deixando para traz as lágrimas de seus familiares e engolindo seu próprio choro. Passaram além da dor, fazendo com que tudo valesse a pena, à procura de um novo mundo. E vieram parar em Goiás.
Esta história foi pontuada por um piano, como um sonho surgido no meio do caminho, não como uma pedra drummondiana, dificultando o caminhar, mas como uma pedra de toque, que enriqueceu nossas vivências. Haverá exageros nesta afirmação? Mas quem, ao vasculhar as memórias afetivas, não toma por amor aquilo que foi dor ou indiferença? Porém, nestas reminiscências, minha memória registra amor, e não estarei enganada.
Para expor evocações sobre nosso piano, o primeiro a entrar na cidade de Inhumas, Goiás, devo principiar pela pianista, sua dona. Seu nome é Margarida Rodrigues da Silva, minha mãe.
Nascida em São Paulo e criada lá e no Rio de Janeiro, foi educada em excelentes colégios, como o Instituto Metodista Bennett, no Rio. Moraram na Quinta da Boa Vista, perto do palácio de São Cristóvão, onde era comum haver uma palmeira imperial nos jardins das casas em que moraram membros da nobreza.
Na adolescência, ela, seus pais, seu avô paterno e nove irmãos embarcaram em um navio para viver novas experiências no Velho Mundo. Passaram dois anos na cidade do Porto, em Portugal, pois seu pai era português e sua mãe italiana.
Foi uma experiência inesquecível, e que gerou histórias incríveis, sempre recontadas por ela. A foto da enorme família no porto de Santos, algo um tanto inusitado, foi capa do principal jornal carioca e da revista “Fon-Fon”. Em sua juventude, estudou piano e canto lírico no Conservatório de Música, em São Paulo.
Meu pai, Cristiano Teixeira da Silva, natural de Sapucaia, Estado do Rio, e criado em uma antiga fazenda de café, estudou no Instituto Granbery em Juiz de Fora (MG), no qual fez também curso de Teologia. Graduou-se em Medicina pela Universidade Federal da Bahia e radicou-se em São Paulo, até seu casamento.
Papai, como médico e como homem, desejou ampliar seus horizontes profissionais e pessoais. Uma pequena semente de bandeirismo começou a frutificar em seus planos e a vontade de penetrar no Brasil recôndito foi-se avolumando. Uma grande aventura em um mundo desconhecido e a construção de uma nova realidade estavam prestes a acontecer.
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Convite do médico James Fanstone
Atendendo a um convite do dr. James Fanstone (1890-1987), médico inglês radicado em Anápolis, e fundador em 1927 do Hospital Evangélico Goiano, para lá foram. O ano era 1939. Foi uma longa e cansativa viagem de trem, atravessando o desconhecido cerrado, com suas árvores retorcidas, levando consigo o filho primogênito e um ingrediente fundamental: sonhos.
Meus pais comprovaram o que Shakespeare já dizia, há mais de quatrocentos anos: “Nós somos do tecido de que são feitos os sonhos”. Estes são uma força motriz que ajuda a construir o mundo, conceito compartilhado por escritores, poetas e cientistas. O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) também tinha fé nos sonhos. Uma frase famosa sua é “toda certeza está nos sonhos”. E esta certeza trouxe meus pais para Goiás.
Depois de um ano em Anápolis, meu pai foi persuadido a morar em Inhumas, para onde o progresso apontava. Os sonhos sempre antecedem os fatos e simulam um futuro promissor. Seu combustível foi a fé em Deus e a esperança, aquele dom esquecido na caixa de Pandora.
Para Goiás vieram e aqui permaneceram para sempre, definitivamente, criando família e estabelecendo fortes vínculos com a sociedade goiana. De cinco filhos, quatro nasceram em Inhumas.
Era a década de 1940 e Goiás era um Estado carente em todos os aspectos relativos ao desenvolvimento material, social e cultural. Ainda não havia chegado a Era JK.
A ida do casal para Inhumas representou um ganho muito grande para o município e região. Papai, como médico “factótum”, pois tinha várias especializações, atendia às necessidades de saúde da população. Inúmeros conterrâneos nasceram com a ajuda das mãos habilidosas de meu pai.
Minha mãe sofreu muito com a mudança brusca em seu estilo de vida e de valores, e seu desejo era voltar.
Impossibilitada, ela deu novo sentido à sua vida, dedicando-se às atividades culturais na cidade por meio do ensino da música e de apresentações musicais e teatrais, estas, juntamente com dona Garcita Soyer Balestra, grande amiga e promotora social.
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Piano atrai a atenção de Inhumas
Na década de 1950 (1954, provavelmente) meus pais compraram um piano Brasil. A chegada desse piano foi um fato inédito e atraiu a curiosidade de todos. Poucos já tinham visto um piano. Muitas pessoas iam à nossa casa conhecer o instrumento e ouvir minha mãe tocar.
Mamãe, devido aos apelos, passou a dar aulas de piano. Fui sua primeira aluna. Muitas moças e meninas, além de mim e de minha irmã, estudaram com ela e também alguns rapazes.
Nossa casa era envolvida pelo som do piano: peças de Chopin, Schubert, Bach, Beethoven e de outros compositores, entremeadas pelos exercícios do Hanon, Schmoll, Czerny, repetidos quantas vezes fossem necessárias. Era a nossa “trilha sonora” diária. Ai de quem fosse batucar no piano! Era bronca na certa.
Além dos estudos diários, havia os cantores, que tinham a oportunidade de cantar, acompanhados por minha mãe.
O piano era levado para o clube local por ocasião dos saraus que mamãe promovia. Afinal, ele era “filho” único.
Durante toda sua vida ela tocou uma de suas músicas preferidas: a valsa “Ao Cair da Tarde”, de Pelagio Valentim, que marcou nossas existências ad aeternum. E, assim, formou-se o gosto musical de muitos jovens inhumenses.
Mamãe era a responsável pela música na Igreja Metodista, tendo criado um excelente coral, que chegou a se apresentar na Rádio Club de Goiânia e em outros eventos. Ensaiou e apresentou missas cantadas, na Igreja Católica, apesar de sermos de uma igreja reformada, e era constantemente requisitada para cantar em casamentos, o que fazia graciosamente, com sua bela voz de mezzo soprano. Acompanhava-se ao órgão, e pelo violinista, professor Hilário.
Enquanto isso, papai dedicava-se à medicina e ao evangelho, como guia leigo da Igreja Metodista.
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Pianista, escritora e oradora
Os préstimos de minha mãe à sociedade foram além da arte. Ela ajudou a organizar a prefeitura, sem nenhum ônus, e o mesmo fez no Ginásio de Inhumas, pertencente à Campanha Nacional de Educandários Gratuitos.
Foi ótima escritora e oradora. Não me esqueço das lágrimas arrancadas ao presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, quando de sua visita a Inhumas, em campanha para o Senado. Seu discurso emocionou o líder mineiro JK.
Em 1964 nos mudamos para Goiânia.
A última homenagem que a Prefeitura de Inhumas prestou à minha mãe foi conceder-lhe a Inhuma de Bronze, menção honrosa, em 1979, em grande evento, patrocinado pelo Gremi, no ginásio local. Foi ovacionada pelo público, por seu brilhante discurso proferido.
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O que aconteceu com o piano
Resta falar sobre o destino do piano. Ele acompanhou toda a trajetória de nossa família. Mamãe, sempre tocando, cantando e encantando a todos. Depois de seu falecimento, em 2003, o piano ficou com uma neta, sendo posteriormente vendido a uma amiga, que o manteve novo e otimamente conservado.
Esse piano foi testemunha de uma época e de uma cidade. Voltou ao seio da família em 2020, quando eu o recomprei, presenteando um de meus filhos com ele, com quem permanece, bonito, lustroso e afinado.
A história de Inhumas e de Goiás fundamenta-se sobre os tijolos que meus pais um dia também assentaram, para erigir esse edifício, a história, em contínua construção.
Marina Teixeira Canedo, crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.
Confira a música Ao cair da tarde