Maria Estela Guedes
Especial para o Jornal Opção
De Lisboa, Portugal

Retrato de Herberto Helder por João Dionísio
Retrato de Herberto Helder por João Dionísio

Herberto Helder (1930-2015), falecido a 23 de março, vinha construindo a sua vida, ou a sua obra, desde há largos anos, com viva atenção às relações da Poesia com o mundo venal que nos asfixia. E porque era muito sensível ao que podia ser considerado comercial, criador de vínculos manipuladores, recusou prémios valiosos em prestígio e valor monetário e furtou-se à vida mundana que televisão, rádio e jornais propiciam.

Mesmo na relação com instituições académicas se mantinha à distância, e selecionava as que certamente lhe pareciam mais idóneas, caso de um recente colóquio na Sorbonne, com cujos organizadores por exceção colaborou. Não quer isso dizer que fosse uma pessoa difícil; não, era afável, conversador e mesmo carinhoso com os amigos. Apenas se furtou a exibições, à falsa glória gerada pelos meios de comunicação de massa.

Acrescentando a isto a sacralidade em que mergulham os poemas, unidos ao símbolo, ao sinal alquímico, ao andamento musical dos longos versos livres, às formas crípticas de dizer, tornou-se um poeta de culto.

A sua importância é enorme junto dos mais novos que ele, que ora o imitam sem querer ora, querendo-o, tentam afastar-se o mais possível, para alcançarem voz própria. Porém o seu impacto não se cinge aos poetas, alcança também outros artistas, plásticos, músicos e outros, que o tomam como tema de exposições, vídeos, filmes.

Internamente e no Brasil, é facto cada vez mais pacífico o de o autor de “A colher na boca”, “Última ciência”, “A máquina lírica” e tantas outras obras ser um dos mais altos poetas de sempre a manejar uma língua que nos últimos tempos queria só dele, já não o português, sim o herbertianês.

Por isso a sua escrita mais recente pode causar algum sobressalto a quem abra pela primeira vez “A faca não corta o fogo”, “Servidões”, ou “A morte sem mestre”, obras duras, de voz áspera, contrastando com os livros de juventude e maturidade – “O amor em visita”, “Poemacto”, “As musas cegas”, “Cobra”, “O corpo o luxo o obra” – luxuriantes, luxuosos, de beleza estonteante. Beleza dos corpos, ele é um poeta do vivo, do erotismo, daquilo que é biológico.

Herberto não é só autor de poesia. Ele publicou prosa também, dispersa alguma, outra concentrada em “Photomaton & vox” e num livro de referência para a narrativa portuguesa mais inovadora, “Os passos em volta”, de 1963. E há também a considerar as versões de textos alheios, alguns deles poesia étnica, nas colectâneas: “As Magias”, “Ouolof”, “Poemas ameríndios” e “Doze nós numa corda”, publicadas nos anos 80 e 90.

Se bem que seja lento o movimento de assimilação da poesia, sobretudo em língua que não é a materna, a sua obra está a caminho de ser conhecida em muitos países. Conta com edições brasileiras de várias obras e saíram traduções em Itália, França, Espanha, Reino Unido e em outros países. Universidades portuguesas e estrangeiras vão incluindo o poeta nos cursos de literatura, promovem encontros sobre a sua obra e o seu estudo entre mestrandos e doutorandos. Os livros sobre ele vão-se somando, em Portugal e fora de fronteiras, desde o primeiro, de 1979, “Herberto Helder, poeta obscuro”, meu.

A partir de 1973, data de edição dos dois volumes de “Poesia Toda”, Herberto Helder começou a reunir todos os livros de poesia em um só, com títulos diversos, pois se trata sempre de inéditos, dada a anexação do último, saído isoladamente. Um deles, “Ou o poema contínuo”, dá a entender que os seus poemas, além de serem um só, não têm princípio nem fim limitantes.

Neste domínio, “Poemas completos”, de 2014, é a obra dele ainda disponível nas livrarias. Com tiragem reduzida em cada edição, sendo esta única, os seus livros esgotam-se depressa e os mais antigos, nos alfarrabistas, começam a custar pequenas fortunas, o que reforça a imagem de culto prestado a este sacerdote da palavra que só pedia, apesar de ateu: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro!”.

Maria Estela Guedes é escritora portuguesa, atualmente Investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa