Hélverton Baiano e o riso cordelizado entre a herança popular e a ironia moderna
13 novembro 2025 às 18h08

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A literatura de cordel, nascida da oralidade e da memória coletiva, sempre foi um território de resistência simbólica no Brasil. É nesse terreno fértil, entre o sagrado e o profano, que se inscreve a obra Cordéis de Bugigangas e Geringonças, de Hélverton Baiano — poeta cuja voz ecoa a tradição nordestina sem abrir mão de uma consciência crítica e de uma verve profundamente atual.
Desde cedo, o autor confessa ter sido tocado por essa arte rítmica e rimada. “Sou poeta de cordel desde que me entendo por gente”, afirma ele, rememorando as feiras, os folhetos e os cantadores que o formaram. Seu pai, embora não poeta, fora tropeiro — figura errante e observadora — que lhe transmitiu a cadência da fala popular e o gosto pela declamação. É dessa confluência entre a herança oral e o impulso da escrita que nasce a poética de Hélverton Baiano: uma voz que mantém a métrica como guia e a ironia como lâmina.
O livro publicado pelas Edições Consorciadas da União Brasileira de Escritores de Goiás (UBE-GO), em parceria com a Contato Comunicação, não é apenas uma coletânea de folhetos: é uma celebração da vitalidade do cordel enquanto expressão literária legítima e sofisticada, mesmo quando travestida de humor e simplicidade. Cada mote apresentado, rimado em sextilhas e redondilhas perfeitas, revela um domínio formal que dialoga com a tradição sem jamais se submeter a ela.
No poema “Leiloei meu coração / Mas não achei pretendente”, o autor brinca com a dor amorosa e com a economia dos afetos, transformando o lirismo em sátira. A venda do coração, aqui, não é metáfora romântica, mas ironia pungente diante da mercantilização dos sentimentos. A comicidade nasce justamente da dor, e é nesse ponto que o cordel de Hélverton Baiano se aproxima da filosofia popular do riso — não o riso banal, mas o riso que revela a nudez da condição humana.
Já no mote “As igrejas abriram crediário / Pra vender Jesus Cristo a prestação”, o poeta atinge um tom de crítica social mordaz e corajosa. A sátira, herdeira direta de Gregório de Matos e Zé Limeira, expõe a mercantilização da fé e a hipocrisia de certos discursos religiosos contemporâneos. O humor serve de espelho e de denúncia: por trás da irreverência, há uma lucidez ética. Trata-se de uma poesia que, embora enraizada na tradição do cordel, alcança o estatuto de crítica cultural.
Em outro mote, “Eu já tive nas mãos o meu destino / Mas agora não sei pra onde vou”, o poeta se despoja da máscara burlesca e revela a vertente melancólica do homem que envelhece com o tempo e as desilusões. O ritmo popular cede espaço à elegia disfarçada, e o leitor percebe o eco de um sujeito lírico que, entre a risada e o desalento, reconhece sua finitude.
Contudo, é na seção das “Limeiradas” que Hélverton Baiano se mostra em sua plenitude criadora. Inspirado em Zé Limeira, o chamado “poeta do absurdo”, o autor entrega-se à vertigem do nonsense, misturando figuras históricas e anacronismos delirantes — “JK dançou rancheira / Na festança dum ricaço” — em versos que rompem deliberadamente a lógica narrativa. O absurdo, aqui, não é mero artifício cômico, mas crítica à racionalidade utilitária e à própria ideia de coerência no mundo moderno. A Limeirada, como exercício poético, é também uma libertação: a palavra que, liberta de amarras, revela o poder criador da imaginação popular.
O título do livro — Cordéis de Bugigangas e Geringonças — é, por si só, uma metáfora do Brasil profundo. “Bugigangas” e “geringonças” são restos, sobras, quinquilharias do cotidiano que a poesia transforma em arte. O poeta recolhe da oralidade e do ridículo os elementos que a cultura erudita descartaria, e com eles compõe sua tapeçaria verbal. A estética do excedente, do fragmento e do improviso revela, em Hélverton Baiano, não um mero repentista, mas um artista consciente do valor literário da cultura popular.
Do ponto de vista acadêmico, a obra pode ser lida à luz da tradição da poesia oral, do humor popular e da crítica sociocultural. A métrica rigorosa e o uso recorrente de motes e redondilhas posicionam o autor na linhagem dos cordelistas clássicos, mas a ironia e o tom reflexivo aproximam-no da contemporaneidade. Sua linguagem, ora crua, ora inventiva, mantém o ritmo da fala do povo sem perder densidade literária — um equilíbrio raro entre o riso e a filosofia.
“Baiano goianizado”
Nascido em Correntina (Bahia), em março de 1960, Hélverton Baiano é filho de Helvécio Crisóstomo da Silva e Zenilda Neves da Silva. Desde a adolescência reside em Goiânia (GO), onde exerce a profissão de jornalista e se consolidou como uma das vozes mais singulares da poesia popular do Centro-Oeste. Com 16 livros publicados e participação em diversas antologias regionais e nacionais de contos, poesias e crônicas, o autor é membro da União Brasileira de Escritores de Goiás (UBE-GO) e da Academia Goiana de Letras, ocupando a Cadeira nº 13.
Entre suas obras destacam-se: 69 Poesias dos Lençóis e da Carne (1983), É Sassá Canagem (1989), Confecção de Poesia (1992), Lavra de Laivos (1994), História de Correntina (1996/2006), Perfil e História de um Ramo da Família Magalhães (2000), Caminhos de André (2001), Algemas de Algodão (2002), Paraíso Profano (2009), Sapituca no Furdunço (2011), Bacondê dê lê lê (2012), Poemas de Vida Fácil (2019), Expedição Abissal (2022), Falo de Amor a Esses Ouvidos Moucos – Poesia Impossível (2024), Bramuras (2025) e o recente Cordéis de Bugigangas e Geringonças (2025), lançado pelas Edições Consorciadas UBE-GO/Contato.
Seu percurso literário é também marcado por numerosos prêmios: 1º lugar no Gremi de Contos (1980), 2º no Concurso de Contos da Academia Anapolina de Letras e Artes (1981), 3º no 5º Concurso de Contos de São Bernardo do Campo (1984), 1º no Concurso de Trovas do Sesc-GO (1986), 2º no Concurso Nacional de Contos do Fesqui (1988), 2º no Concurso Estadual de Poesia do Sesc-GO (1988), além de premiações sucessivas nos concursos Sesi Arte Criatividade (2002-2004) e nas Bolsas Hugo de Carvalho Ramos da UBE-GO (2013 e 2015), com as obras Bramuras e Encanto Perverso. Tais distinções confirmam o reconhecimento de sua produção literária por pares e instituições culturais.
A escrita de Hélverton Baiano reafirma que o cordel é, antes de tudo, uma arte da inteligência e da liberdade. Sua poesia resgata o humor como resistência e a rima como memória, sem perder o vigor crítico que desestabiliza o senso comum. Em tempos de discursos homogêneos e de superficialidade midiática, sua obra reacende o valor da palavra viva — a poesia que nasce da estrada, da feira, da conversa e do espanto.
Há, em cada verso, uma lucidez disfarçada de brincadeira. E é justamente essa discrição — essa forma de ser culto sem parecer erudito, e crítico sem parecer moralista — que faz de Hélverton Baiano um dos nomes mais relevantes da poesia popular contemporânea. Sua obra, que nasce do chão e se eleva pela arte, devolve à literatura brasileira o que ela tem de mais essencial: o riso que pensa e o verso que pulsa.
