A Cia Theatral Gradiva adapta e encena “Huis Clos” no Centro Cultural Martim Cererê

“Nada de grelha. O inferno... são os outros”, ensina Sartre em “Huis Clos”, texto encenado pela Cia Gradiva
“Nada de grelha. O inferno… são os outros”, ensina Sartre em “Huis Clos”, texto encenado pela Cia Gradiva

Yago Rodrigues Alvim 

Garcin — Pois é.
O Criado — Pois é.
Garcin — Então é assim…
O Criado — Então é assim.

Aos poucos, Saint Louis Blues ressoa nos tijolos das paredes. Huis Clos: espaço fechado, cercado por tais quatro paredes. Os outros. O Criado, Garcin e as damas Estelle e Inês. Não há estacas, grelhas, funis de couro: o inferno são eles.

Renato M. Lucas, diretor da peça
Renato M. Lucas, diretor da peça

Entre os seres humanos, em uma vida de desencontros, só se chega perto de si por meio da diferença. É o que sugere o diretor do espetáculo “Huis Clos — Entre 4 Paredes”, Renato Mendonça Lucas. Quando estudante, no Colégio Aplicação, no final da década de 1970, Renato conheceu a peça do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, por indicação de Reinaldo de Montalvão de Moraes Cunha, a quem a montagem é dedicada “in-memorian”. Por questões de “reminiscência adolescente”, aos poucos a lembrança foi agregando paixões de outras pessoas e, juntos, tornaram possível a concretização do espetáculo que ganha os palcos no último final de semana de março.

Em 6 de maio de 2012, Renato criou a Companhia Theatral pertencente ao Gradiva Centro Cultural, uma instituição que administra o Núcleo Freudiano de Psicanálise em Goiânia. Há um ano e meio, o processo de “Huis Clos” se iniciou. A peça é dedicada a Márcia Marina, a criadora do Núcleo Freudiano, em 1985. O diretor sublinha que “não se faz nada sozinho” e conta sobre como esse “entre-ter-se” ganhou forma. Amigos de Aplicação, Renato se sentiu honrado em convidar Deusimar Gonzaga para a preparação dos atores.

Os outros

O ator, artista plástico e professor Cris Martins interpreta O Criado. É ele quem apresenta o inferno aos três condenados. Um inferno diferente do que o próprio Garcin imaginava. Cris Martins disse sobre a parte da alma humana que o Criado tem, apesar de não fazer referência ao humano. “Um personagem irônico, sem prazer sádico”.

Cris Martins (também assina a assistência de direção) ressalva que o emocional presente nas falas e a aprendizagem das coisas simples é que criam a vida. “O que mais me chama atenção é quando o personagem Garcin nota que o criado não tem pálpebras, que ele não pisca. Ele aproveita para contar sobre a importância que tem o simples piscar: 4.000 interrupções, ao longo do dia, para fazer vida existir”, exemplifica.

As psicanalístas Ione Faleiro e Priscila Borges estreiam como atrizes
As psicanalístas Ione Faleiro e Priscila Borges estreiam como atrizes

“Quando você apronta, você paga a conta depois. E eles estão pagando a conta no inferno”, comenta o jornalista, publicitário e psicanalista Paulo Faria, que vive o personagem Garcin, em “Huis Clos”.

Para Paulo Faria, a reflexão maior é a percepção que se tem, a descoberta do que ele, Garcin, fez na terra. “Se o ser humano não perceber o que fez, ele não consegue fazer uma virada existencial.” Quando se vive em sociedade, com os outros, é necessário fazer “concessões”, é necessário perceber seus limites e, quando não se respeita esse limite, se está propício a diversas reações. Paulo Faria se doou enquanto corpo, enquanto voz e emprestou-se (e empresta-se) pessoalmente para o personagem. Garcin o impacta nas contradições: “Um pacifista, um libertário, um progressista, que ele não é”. Garcin não se reconhece, ao menos, não até chegar ao inferno.

Renato comenta que a peça é guiada pela psicanálise; uma perspectiva freudiana. Sobre o processo de construção de personagem, a atriz e psicanalista Priscila Borges, que vice Estelle, disse que “é impossível ensinar como é se faz isso”. Com experiências em entregar sorrisos às crianças, Priscilla foi, ou ainda é, palhaça (uma vez que se não pode perder um personagem, ainda mais um tão íntimo como o palhaço). Em sua estreia, Priscila enfrenta e se entrega ao personagem e aos outros.

Seguindo os passos de Priscila, Ione Faleiro vive sua estreia como a personagem Inês. “Eu pego algo da Ione para dar à personagem”, comenta sobre o caminho de criação de Inês. E, assim, foi se construindo e, como disse Ione, até no dia de apresentação estará em construção a personagem. Para ela o mais intrigante e que chama sua atenção é a persistência de Inês em mostrar, a todo o momento, a realidade, o motivo de estarem ali. “Ela [Inês] atormenta os outros com aquelas verdades. O tempo inteiro ela traz uma tocha, uma fogueira ardente.”

O texto, tão conhecido, é uma peça em que esses três personagens são condenados a quatro paredes. Para Renato Lucas, o “céu é minimalista” e o inferno é todo luxuoso, o “muito”. Nesse lugar, totalmente diferente do que se imagina, ecoa a tão recorrente frase de Sartre: “O inferno são os outros”. Naquela sala, o palco do Centro Cultural Martim Cererê, o texto dramático “profundo”, como disse o diretor, vai além do significado, está no significante impactante para a plateia, que participa (in)diretamente, talvez, nesse tocar o desconhecido e, assim, se conhecendo. Depende, apenas, da resistência.

 

Sem controle do mercado, público e privado, diretor e atores são livres para criar

“Total” foi a resposta de Renato Lucas sobre a liberdade que se tem para fazer arte com o apoio, parcerias, e não com o atar-se às leis de incentivo. A realidade teatral artística, a burocracia das leis de incentivo, engessa e corta as asas de diretores e atores que querem voar pela capital. Um dos apoiadores disse a Renato para “brilharem”. “Eu quero ver vocês brilharem.” Assim, outros nomes estão no apoio a essa realização. Além do Núcleo Freudiano de Psicanálise em Goiânia, a Zema, o Café Coreto e a Academia Sérgio Borges, de Anápolis, apoiam o espetáculo.

Diretora de artes e produções audiovisuais, doutoranda em Edu­ca­ção Física, em camisa preta estampada com padronagem branca, Denise Cambotta acompanhou a entrevista e os caminhos do espetáculo. Ela está na produção executiva. O texto e a interpretação intimista ganham as luzes de Rodrigo Assis, conhecido como Horse. Aos poucos, com os diálogos entre Renato e Rodrigo, fora se afinando a iluminação.

A artista plástica, gráfica, “artista multimídia”, disse o diretor, Ana Cristina Rocha Lima concebeu o figurino da peça. O cenário tem peças pesadas e antigas. As antiquarias, encontradas em lojas pouco conhecidas e espalhadas pelas ruas de Goiânia, preenchem o espaço entre as quatro paredes e compõe o luxo idealístico de Renato.
No som, Roberto de Souza. Além do Blue de Saint Louis, as músicas que cadenciam o espetáculo foram pensadas por Renato, Cris e por Ana Paula Osório. São três canções que fogem as indicações musicais do texto, escolhidas e substantivadas por Renato como “segredos”. A identidade visual do espetáculo vem d’óleo sobre tela, arte feita pela artista plástica Yara Di Lala. A dramatis personae em fundo de vermelho mais claro ao mais escuro.

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Entre demasiados suspense e segredos, de porquês por estarem ali trancafiados, condenados, entre as metáforas de filosofo francês, construções artísticas por psicanalistas, naquela entrevista, entre taças de meio vinho, meia luz, fumaça de charuto, os quereres de perguntas, de espalhá-las pelo palco do Teatro Júlio Vilela, no fim de um mês que traz o “outono das tardinhas silenciosas, das magníficas noites voluptuosas”, como escreveu a “exaltada” poetisa Florbela Espanca, foi crescendo em mim a curiosidade e a vontade de reviver as indagações de Sartre, que vibram por Renato, Paulo, Cris, Priscila e Ione. Vontade de inércia, de reflexão e tensão, tão íntima, vontade de provar “Huis Clos — Entre 4 Paredes”.