Termo comumente associado à Will Eisner ganhou força entre o fim dos anos 80 e começo dos 90, com o surgimento dos selos Vertigo, da DC Comics, e das editoras Image e Dark Horse, tornando-se sinônimo de um estilo específico de publicação de história em quadrinhos

V de Vingança (versão em português para V for Vendetta) | Foto: Reprodução

Dani Marino**
Especial para o Jornal Opçao

Entre os embates que costumam ocorrer no meio acadêmico e no universo dos quadrinhos, alguns dos mais comuns são: graphic novels vs. histórias em quadrinhos, história em quadrinhos é arte gráfica vs história em quadrinhos é literatura vs história em quadrinhos é um gênero específico de arte (9ª arte), história em quadrinhos como objeto de estudo vs fonte de informação e histórias em quadrinhos facilitam o acesso a determinados temas e têm menor valor que a obra original vs histórias em quadrinhos instigam o interesse pela obra original, complementando-a.

Quando se trata das ciências humanas, principalmente quando nos referimos à arte, é apenas muita ingenuidade querer encerrar qualquer objeto dentro de um conceito que funcione como uma fórmula matemática capaz de fornecer a solução a um problema, o que significa que muitas dessas questões irão permanecer por aí por um longo tempo. No entanto, em relação às graphic novels, dois autores podem nos dar pistas sobre as razões que levaram à popularização do termo em detrimento do uso de gibi ou história em quadrinhos.

Em “A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista”, de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, os autores narram a tal “estetização do mundo” ao longo das últimas décadas, assinalando que este processo atingiu a produção não só de objetos de consumo de uma forma geral, mas principalmente a artística. Um exemplo clássico de como a assimilação de conceitos de arte aconteceu em todas as esferas de nossas vidas é a famosa lata de sopa Campbell’s, ilustrada pelo artista pop Andy Warhol nos anos 60, anunciando tendências que podem ser observadas até os dias de hoje: banalização da arte e “gourmetização” de artigos que têm valor atribuído de acordo com critérios estéticos (era da imagem) em vez de funcionais.

Exemplo clássico de assimilação de conceitos de arte: a famosa lata de sopa Campbell’s

“Após a crise de 1929, os industriais tomam consciência da importância da estética no sucesso comercial dos produtos de grande consumo. Surgem as primeiras grandes agências de estética industrial, que vendem seus serviços às empresas numa época em que a aparência dos produtos fabricados em grande escala tinha uma importância bastante secundária, comparativamente ao preço de custo.”(LIPOVETSKY; SERROY)

Tendo sido assimiladas por todas as esferas da vida, as HQ não ficariam de fora desse processo. Muito embora essa intenção de elevar artigos de cultura pop a status de arte tenha sido mais fortemente observada a partir dos anos 80, o termo “graphic novel”, comumente associado à Will Eisner por sua obra A contract with God , já era utilizado antes mesmo desta publicação. No entanto, foi entre o fim dos anos 80 e começo dos 90, com o surgimento dos selos Vertigo, da DC Comics, e das editoras Image e Dark Horse que a ideia ganhou força e passou a ser sinônimo de um estilo específico de publicação de história em quadrinhos.

Capa de Sandman, sucesso do gênero | Foto: Reprodução

No final dos anos 80, as grandes editoras registraram uma enorme queda no número de vendas das HQ de super-heróis. Alguns autores atribuem isso ao fato de que os leitores haviam crescido e as histórias, voltadas para o público infantil, já não agradavam mais. Títulos como Monstro do Pântano e Watchmen – ambos escritos por Alan Moore – tinham feito tanto sucesso e eram tão diferentes dos demais quadrinhos da DC, por isso, a editora resolveu lançar um selo cuja criação ficava a cargo do escritor, não do editor. Nascia a Vertigo sob a direção de Karen Berger, o que fez com que várias obras com as quais ela esteve direta ou indiretamente envolvida passassem para o novo selo, mais adequado à temáticas mais “maduras”, como, além dos já citados Monstro do Pântano e Watchmen, Sandman, de Neil Gaiman (publicado entre 1988 e 1996), Patrulha do Destino e Homem-Animal, de Grant Morrison, Shade, the Changing Man (publicado entre 1990 e 1996), de Peter Milligan e Chris Bachallo, e Hellblazer, título mais longevo da Vertigo, tendo alcançado incríveis 300 edições.
Uma das marcas dessa época foi a constante troca de equipes narrativas, trazendo histórias fechadas, desenhadas por artistas diferentes. Porém essa estrutura não ia ao encontro dos interesses empresariais, que eram a favor de manter as histórias enquanto fossem rentáveis, em vez de fornecer-lhes um final claro.

O sucesso de Sandman como uma série de ficção, sem personagens previamente conhecidos, indicou à DC qual seria o caminho a seguir após o término do contrato com Gaiman. Isso pode ser notado nas séries: The Invisibles, de Grant Morrison (publicado entre 1994 e 2000), Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon (lançado entre 1995 e 2000) e Transmetropolitan, de Warren Ellis e Darick Robertson (publicado entre 1997 e 2002, tendo migrado do Selo Helix, voltado para ficção científica)

“Onde Moore, Morrison e Gaiman tinham utilizado técnicas literárias para expandir os limites do tema aceitável para os quadrinhos mainstream com nuança e lirismo, a segunda onda de criadores britânicos, que incluía Ennis, Ellis e (mais tarde) Mark Millar, usou uma abordagem mais visceral, cinematográfica. Preacher foi moldado na mitologia cinematográfica do oeste norte-americano (John Wayne é um personagem recorrente), e a arte de Dillon está particularmente fundamentada na vida áspera, suja e difícil da tradição do faroeste.” (DANNER;MAZUR)

Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon (lançado entre 1995 e 2000) | Foto: Reprodução

A Marvel também apresentou algumas inovações em títulos como Fantastic Four: Unstable Molecules. Escrita por James Sturm e com arte de Guy Davis, essa história é ambientada nos anos 60 com abordagem realista, sem os artifícios de ficção que teria transformado os integrantes do Quarteto em super-heróis. Nela é explorada a dinâmica das relações entre os personagens.

Outra aposta da Marvel foi a reinvenção de um personagem obscuro dos anos 70 pelas mãos de Jonathan Kethem: Omega the Unknown (2007-2008). Lethem usou a relação entre a mitologia do super-herói e a alienação de sua infância: Omega é mudo e telepaticamente ligado a um menino de 12 anos, cujos pais são androides.

Porém, essas inovações não visavam apenas alcançar o público adulto que havia deixado de ler as HQ de super-heróis, mas, principalmente, penetrar em um ambiente que até então era destinado apenas a obras literárias: as livrarias. Ou seja, o termo graphic novel não era só atribuído às HQ que possuíam um melhor acabamento em relação aos gibis vendidos nas bancas, passou a ser atribuído a qualquer obra em quadrinhos que atendesse certos requisitos para poder ter um ISBN e, dessa forma, poder ser consumida por adultos preocupados com possíveis associações da leitura deste tipo de produto à uma mentalidade infantil.

HQ Daytripper, dos gêmeos Bá e Moon, indicada como “book of life”, de leitura obrigatória para o ingresso na Universidade do Tennessee, nos EUA | Foto: Reprodução

A possibilidade de se ter um ISBN garantiu também que muitas HQ entrassem nas escolas através – de editais públicos – e nas faculdades, inclusive como objeto de estudos acadêmicos. Prêmios como World Fantasy Award, que concedeu, em 1991, o troféu de melhor obra literária de ficção a Sandman, com a adaptação de Neil Gaiman para a obra de Shakespeare, Sonhos de Uma Noite de Verão, a indicação da HQ Daytripper, dos gêmeos Bá e Moon, como “book of life”, de leitura obrigatória para o ingresso na Universidade do Tennessee, nos EUA, e o sucesso do projeto Graphic MSP de Mauricio de Sousa, não deixam dúvidas de que as editoras acertaram com essa jogada de marketing que tem tudo para continuar firme e forte por bastante tempo ainda.

De qualquer forma, essa tentativa de legitimar as HQ como obras literárias ou obras de arte por meio do uso do termo graphic novel, é considerada por muitos estudiosos do assunto como algo prejudicial aos quadrinhos, uma vez que pretende separar e classificar as HQ em rótulos dedicados aos apreciadores do que era considerado “alta cultura” dos consumidores de “cultura de massa”, como se essa distinção pudesse afirmar que uma é mais valiosa ou “digna” que a outra, quando, na verdade, estamos falando de histórias em quadrinhos.

Beatriz S. Carvalho, em sua dissertação de mestrado sobre o processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos, elenca vários autores dos Estudos Culturais, da Sociologia e da Comunicação que corroboram a ideia de que graphic novel é na verdade um formato ou um suporte onde vários gêneros narrativos podem ser publicados. A pesquisadora acredita que é possível identificar seu processo de valorização na medida que “instâncias que antes os desprezavam, passaram a reconhecer seu valor e importância no espectro cultural mundial” (CARVALHO, 2017, p. 3). Este reconhecimento se deu a partir de um longo processo, porém, três obras se destacam como alavancas responsáveis pelo atual status dos quadrinhos:

“1986 foi o ano, como nenhum outro, que trouxe obras que marcariam e modificariam o que se compreendia por quadrinhos até então, com trabalhos mais politizados e recheados de crítica política e social. Dentre estas obras, está a “tríade de 1986: Batman: O cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons, e Maus, de Art Spiegelman.” (CARVALHO, 2017, p. 100)[1]

Ainda de acordo com Carvalho, “foi graças ao reconhecimento de Maus e à invasão das graphic novels no mercado, que os quadrinhos perderam o estigma de entretenimento barato e sem valor cultural” (CARVALHO, 2017, p.21), favorecendo assim, a solidificação de um processo de aceitação de que “a história em quadrinho constitui um campo de produção cultural específico, que pouco tem a ver com o da literatura ou das artes plásticas, como comumente se disseminou” (CARVALHO, 2017, p. 21)

Maus, de Art Spiegelman

Mesmo que um melhor acabamento seja destinado às obras entendidas como graphic novels do ponto de vista da qualidade editorial, isso não deveria ser o principal critério para a atribuição de valor, já que uma melhor apresentação física do produto não denota necessariamente uma maior qualidade estética e/ou narrativa. Tenho certeza que leitores assíduos de HQs são capazes de citar obras cujas características estéticas e narrativas superam sem problemas algumas graphic novels enaltecidas como obras de arte, ou seja, para estes leitores, o rótulo pouco importa, afinal estão interessados em seus conteúdos muito mais do que na forma em que são entregues. Na verdade, tenho para mim que esses leitores vorazes devem estar bem insatisfeitos com essa história de graphic novel, já que uma das características típicas de produtos “gourmetizados” é o alto preço em relação ao que de fato eles entregam: paga-se preço de obra de arte por um produto produzido em escala industrial.

“O fato de mais de uma obra ser designada como tal (graphic novel) não faz de todas as outras obras que recebem essa denominação como pertencentes ao mesmo gênero. Seria o mesmo que dizer que uma revista em quadrinhos de super-heróis e outra de terror fazem parte do gênero “revista em quadrinhos” simplesmente por terem sido publicadas por meio do mesmo suporte editorial.” (CARVALHO, 2017, p. 123)

No entanto, o mercado editorial encontrou um nicho ao qual não tinha acesso antes da venda nas livrarias, o que significa um aumento do alcance do produto. Se por um lado os leitores fiéis de HQ não ficam felizes, por outro, os compradores esporádicos e colecionadores não podem reclamar. Mesmo assim, se observarmos as principais características dos objetos do embate “graphic novel e quadrinhos são coisas diferentes”, veremos que, no fim, é tudo história em quadrinhos. Não é?

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Livros: A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista, de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy / Quadrinhos: Uma arte global, de Alexander Danner e Dan Mazur.

CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos. Dissertação de Mestrado. ECA/USP, São Paulo, 2017, p. 100.

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**Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial – ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Iluminerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.