Goiás: um Estado com fortíssima influência das expressões culturais negras
14 novembro 2015 às 11h54
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Samba, congadas, capoeira, práticas religiosas de matriz africana e demais saberes e memórias são heranças da população negra
Fernando Bueno Oliveira
Especial para o Jornal Opção
A cultura brasileira resulta de uma síntese de influências étnico-raciais, sendo não perfeitamente homogênea, mas sim um mosaico de diferentes vertentes culturais. Sendo assim, podemos considerar os alcances de raízes lusitana, indígena e negra, as quais deixaram suas marcas no âmbito da música, da culinária, do folclore, do artesanato e das festas populares. As regiões brasileiras receberam maior ou menor “grau” dessa variedade cultural: por exemplo, os estados da região Norte receberam fortes influências indígenas, enquanto diversas localidades da região Nordeste tiveram suas formações culturais baseadas na dinâmica africana e, outras, como o que ocorre no Sertão nordestino, tiveram suas constituições culturais resultantes de uma histórica mescla de características lusitanas e indígenas, com menor participação africana. No Sul do Brasil, as influências de imigrantes italianos e alemães são evidentes, seja na língua, culinária, música e outros aspectos. Grupos étnicos como árabes, espanhóis, poloneses e japoneses contribuíram também para as formações culturais brasileiras, embora de forma mais limitada.
Em Goiás não foi diferente, ou seja, as vertentes culturais goianas resultam da história do homem no Planalto Central, desde a chegada de seus primeiros habitantes, os indígenas, perpassando pela colonização por portugueses e seus descendentes paulistas, pela atuação de indígenas e africanos escravizados e pela consolidação da chamada cultura caipira.
A historiografia goiana nos conta que, após a febre pelo ouro, a sociedade goiana passa a ser constituída por negros escravizados e forros, por decadentes exploradores de ouro, por portugueses e seus descendentes, muitos desses enviados para exercer cargos políticos e religiosos e, pela presença indígena, os poucos que resistiram ao extermínio do colonizador. A construção de Goiânia foi efetivada pelas mãos de migrantes que saíram de suas cidades trazendo consigo traços culturais e identitários. Dentro do território goiano têm-se expressões dessas culturas, grupos que se espacializam, migrantes que recriam seus costumes formando a heterogeneidade de práticas culturais.
A marcante presença da população negra desde o início da colonização do interior brasileiro possibilitou que a cultura goiana herdasse grande parte de seus saberes, de suas memórias e de suas práticas. Dessa forma, as expressões culturais negras tais como o samba, as congadas, a capoeira, além das práticas religiosas de matriz africana, assumiram posições de destaque na composição cultural goiana. A respeito dessas manifestações culturais em Goiás é que falaremos a seguir.
O samba se consolida no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Sua origem é fortemente relacionada com o espaço, com o corpo e com a dança acompanhada de pequenas frases melódicas. Essa manifestação cultural dos negros era, originalmente, reconhecida como suburbana, marginalizada e até perseguida pela elite ocupante do núcleo central carioca. Em 1935, as escolas de samba foram legalizadas e oficializadas para os desfiles de rua. Em Goiânia, o processo migratório foi fundamental para a existência do samba/carnaval, pois trouxe o carnaval de rua que é recriado principalmente por migrantes do Rio de Janeiro e Minas Gerais e por goianienses que com eles tiveram contato. Apesar de haver certa negação do carnaval como cultura e tradição de Goiânia por parte de segmentos da cidade, ele é real e forte dentre os goianienses que se identificam com as práticas carnavalescas.
Já a congada é um ato de manifestação cultural surgida no Brasil a partir da recriação de elementos portugueses e africanos do catolicismo negro aos moldes de cada região brasileira. As festas de devoção a Nossa Senhora do Rosário, incluindo a reverência a São Benedito e Santa Efigênia, realizadas por Reinados e Irmandades Negras e acompanhadas por Congadas (também denominadas de Congados, Reis Congos ou somente Congos) constituem uma expressão cultural conhecida no Centro Oeste, no Sudeste e estados do Nordeste brasileiro.
Os congadeiros rememoram e recriam os significados desta expressão cultural que é composta por pessoas negras, brancas e de outros pertencimentos étnico-raciais. Em Goiás, as congadas ocorrem na cidade de Catalão, Goiandira, Pires do Rio, Goiânia, dentre outras. Segundo o mapeamento elaborado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, as congadas acontecem nas Vilas João Vaz, Santa Helena e Abajá, no Residencial Itamaracá e no Setor Campinas.
A Roda de Capoeira, por sua vez, foi registrada como bem cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no ano de 2008 e recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO em novembro de 2014. A origem e história da capoeira é ainda assunto de debate sendo comumente defendida a ideia de que se trata de uma expressão cultural afro-brasileira que ritualiza movimentos de artes marciais, jogos, dança e música. A capoeira começou a ser difundida em Goiás por duas academias pioneiras fundadas em Goiânia: o terreiro de Capoeira Angola e a Academia de Capoeira Regional. Hoje, a capoeira é considerada uma das manifestações culturais negras mais populares praticadas por diferentes grupos em Goiás: os participantes formam uma roda e revezam tocando instrumentos musicais como o berimbau, cantando e fazendo a luta ritual em pares no centro do círculo, movimentando diferentes espaços urbanos de Goiânia e do interior.
As práticas religiosas de matriz africana também estão presentes em diferentes localidades de Goiás. Segundo a indicação de alguns pesquisadores, no Brasil ocorreu um movimento de reinterpretação das práticas africanas, ou seja, como as práticas religiosas de matriz africana foram sendo marginalizadas, para que se mantivessem, passaram por um processo de ressignificação. Nesse sentido, na cidade de Goiânia, o candomblé, por exemplo, foi formado em meio a um clima de “medo da macumba”, o qual pode ser observado na imprensa religiosa goianiense das primeiras décadas do século XX. Assim, elementos do candomblé já se faziam presentes desde o final da década de 1940 quando a umbanda chegou à capital. Conforme apontam as pesquisas, o conhecido João de Abuque, negro, migrante nordestino e de poucos recursos financeiros, foi o responsável por fundar o primeiro terreiro de candomblé goianiense. Os terreiros de candomblé que existem atualmente em Goiânia são chefiados, em sua grande maioria, por filhos e filhas ou netos e netas e santo do pai João de Abuque.
Diante de tais manifestações culturais existentes pelo Brasil e, especificamente, em Goiás, podemos considerar que a identidade negra está arraigada à história de seus antepassados [pela memória coletiva], a exemplo das contínuas referências à Zumbi do quilombo dos Palmares, especialmente ao longo do mês de novembro (considerado o mês pela consciência negra). A identidade negra brasileira se forma pela ciência da posição de subalternidade de grande parte dos negros brasileiros, mas admite a valorização de sua raça, em seus mais diversos aspectos, evidencia a sua atuação social e política junto ao (re)direcionamento de políticas públicas e considera o legado dos povos negros para a cultura brasileira e, especificamente, a goiana.
Fernando Bueno Oliveira é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidade Estadual de Goiás (UEG).