Gilson Cavalcante: a irreverência em forma de poesia
22 março 2023 às 11h16
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Hélverton Baiano
Especial para o Jornal Opção
Eis o poeta em estado puro: doente, com diabetes, Parkinson e outros males maldosos, brincava com seus parceiros internados na enfermaria do hospital. Três dias antes de morrer, postou um vídeo no Instagram, onde aparecia com soro, fazendo agachamento e falando loas aos internos. Este era Gilson Cavalcante, um poeta brincante até na hora da morte
O poeta Gilson Cavalcante nos deixou em 14 de março de 2023, coincidentemente no Dia Nacional da Poesia, depois de 68 anos e quatro meses e pouco fazendo furupas com as palavras, para dar sentimento e encher de significado nossas vidas. Nascido em Porangatu, no Norte de Goiás, em 5 de novembro de 1954, Gilson era um poeta em tempo integral e viveu sem muitas regras num espaço onde comia os limites pelas beiradas, temperando com metáforas malinas o amálgama da construção dos seus sentimentos.
Conheci e passei a conviver com ele no final da década de 1970, quando migrou do curso de Geografia para o de Jornalismo, na Universidade Federal de Goiás, onde eu já cursava e calhou de cair na minha turma, por augúrio dos deuses da escatologia que nos guiava e nos guiou a vida toda. Foi um achado para as nossas não buscas e passamos a viver encambetados e encangados, fazendo latomias. Gilson era uma pessoa doce, amável e de fácil convivência, portanto. Não gostar dele era difícil e assim fomos construindo uma amizade sem medida. Como já existíamos em poesia, foi um passo para a gente pensar em algo que unisse nosso desejo de mostrar os versos que confeccionávamos.
Daí veio nosso primeiro livro, uma parceria, um se sustentando no outro, eu muito mais nele, porque sempre o considerei muito mais poeta que eu, naquela busca por botar a cara pra fora e também de dar a cara a tapa. Nasceu o “69 poesias dos Lençóis e da Carne”, em 1983, icônico em Goiás, merecendo até mesmo elogios da grande diva da nossa poesia, Yêda Schmaltz. Ela quis conhecer esses poetas que vieram com uma ousadia que considerou interessante. A poesia nem era lá essas coisas, eram os primeiros passos, mas impetuosa, insolente, irreverente e intrépida, onde Gilson dizia:
Aluga-se
uma vagina
já que o corpo é pão.
Alimento tua fome
e te empresto
algumas doses
de gonorreia…
Ficamos amigos de Yêda e passamos a admirá-la como pessoa também, porque a poeta/poetisa já tinha nossa admiração e reverência. O “69” trazia na capa as fotos dos autores dentro do numeral seis e do numeral nove, insinuando uma casta indecência. Lembro-me que fomos fazer o lançamento em Porangatu, mas, assim que vazou alguma informação sobre o livro, o lançamento foi boicotado por representantes da casta elite da cidade. Foi um aprendizado e serviu para fortalecer a irreverência que tomava conta da gente, e olha que vivíamos a ditadura civil-militar, nos estertores, mas vivíamos. Nossa insolência poética e de atitudes era parte de um posicionamento político, que ingenuamente a gente tinha. Ele era comunista e chegou a militar certa feita no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Mas nunca foi um arraigado, um militante ferrenho.
Gilson Cavalcante fez parte também no efervescente movimento artístico que movimentou a década de 1980 em Goiânia, com muitos concursos de poesia falada, dos quais ele e eu participávamos e que tinha em Pio Vargas um dos grandes ganhadores desses certames. Nós beliscávamos alguns. Eu ganhei o Gremi de 1980 na área de contos e Gilson ganhou o mesmo concurso, se não me engano em 1982, na área de poesia. O Gremi era o grande festival de música, literatura e artes plásticas de Goiás na época. Detalhe da nossa convivência: onde havia espaço a gente chegava mandando versos pro ar.
Em 1989, Gilson se mudou com a família para Palmas, Tocantins, no início de tudo no Estado que era recém-criado. Lá trabalhou como jornalista e chegou a ser secretário de Comunicação do governo do Estado, nunca deixando a militância de atrevimento na poesia. Numa de suas incursões de volta a Goiás, ganhou, em 2011, a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, da União Brasileira de Escritores-Seção de Goiás com a Prefeitura de Goiânia, na área de poesia, o maior prêmio literário do Estado, com o livro “A Morfina Flor de Morfeu”, que foi publicado logo depois. No Tocantins, ganhou outros prêmios e teve publicados os livros premiados.
Sua bibliografia traz ainda “Lâmpadas ao Abismo”, “Re/Inventário da Paisagem”, “Poemas da Margem Esquerda do Rio de Dentro”, livro contemplado com menção especial no concurso literário nacional Prêmio Cidade de Juiz de Fora (MG), em 20202, “O Bordado da Urtiga”, prêmio Bolsa de Publicações Maximiano da Matta Teixeira, 2008, da Fundação Cultural do Tocantins, e “Anima Animus — O decote de Vênus” (2009), “Bonsai de Palavras” (hai kais). Em 2011, recebeu o Troféu Goyases, no campo da poesia, honraria da Academia Goiana de Letras (AGL). Depois, um vieram “A Arte de Desmantelar Calendários”, “O Amor Não Acende Velas” e, recentemente, um mês e pouco antes de morrer, lançou o livro “Descompássaros”, também de poesia.
Doente, com diabetes, Parkinson e outros males maldosos, brincava com seus parceiros internados na enfermaria do hospital. Três dias antes de morrer, postou um vídeo no Instagram, onde aparecia com soro, fazendo agachamento e falando loas aos internos. Este era Gilson Cavalcante, um poeta brincante até na hora da morte.
Para resumir esse poeta supimpa, irreverente e gostoso, vai aí o poema Na Garupa do Que Me Ocupo, do livro “A Arte de Desmantelar Calendários”:
nasci pra gritar
mas ando desfiando
as cordas do silêncio.
Tudo que me viola
é poesia e canção.
Tome aqui meus acordes
de galopes, lamentos, abioios e ladainhas e o
mugido dos bois de minha terra.
Na garupa do que me ocupo
o vento pelas crinas do cavalo doido do tempo
em que Alceu Valença me invade
em sotaque áspero, agudo e lírico.
Mais uma vez vou gritar
pelo meu nome
para reconhecer meu papagaio do futuro.
Vivo a excelência dos maduros
pelos licores da carne.
Hélverton Baiano é poeta, prosador e jornalista.