GMT “volta” para Goiás como um Sísifo satisfeito, um errante que pode renomear qualquer água como a melhor cachaça e dar o troco nos bandeirantes desavisados

Marcos Carvalho Lopes

Gilberto Mendonça Teles: poeta e crítico literário | Foto: Reprodução

O poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939) dizia que estamos condenados a pendular entre a busca do belo e a do sublime, num caminho inevitável: essa tensão estética moveria o próprio processo autocriação. Quem principia buscando o belo racional, logo precisa lidar com o sublime não-discursivo; quem começa buscando desvendar o silencio informe também precisara criar um caminho para estrutura seu cosmos numa harmonia. Quero usar essa dialética para homenagear o poeta, crítico e professor Gilberto Mendonça Teles (GMT), que completou 90 anos na quarta-feira, 30 de junho.

É fácil colocar o início da produção poética de GMT marcada pelo anseio sublime, mas seria já um equívoco pressupor que a forma não tinha importância. Na temporalidade de Goiás, que se inventava no início da década de 50 um lugar moderno, com uma capital planejada e marcada por prédios que traziam essa marca arquitetônica, se mesclavam esse sentido imitativo de desenvolvimento como marca externa, com certa defasagem quanto a agendas de vanguarda. Neste meio do caminho, se alimentar do que era mais estabelecido era uma forma de buscar se armar para conquistar um reconhecimento que poderia ser estéril ou redundante, se não houvesse uma mutação em que a própria linguagem se dobrasse na busca de si mesma. Outro caminho seria o de ficar preso a intuição e ao gesto moderno, celebrando a ruptura, mas em um discurso que não cultiva formas, mas que cai na busca romântica de autenticidades, sinceridades e espelhos iluminados.

O anseio sublime de GMT teve então a marca dessa tensão, num contexto em que Olavo Bilac (1865-1918) e Raul de Leoni (1895-1926) mantinham-se como modelo: a modernidade goiana era parnasiana (como testemunharam mesmo os de além-túmulo).

Drummond de Andrade, Gilberto Mendonça Teles e Plínio Doyle | Foto: Reprodução

Mas o que resgatar de “clássicos” se o lugar precisava ser inventado como paisagem para a literatura? Se a própria possibilidade de estudo aprofundado tinha seus limites muito estreitos, GMT é marcadamente alguém que não foi se “formar” nos centros sudestinos ou no exterior. Desta forma, sem o universalismo de quem fala em nome da civilização, precisou, em um primeiro momento de sua formação como professor e crítico, superar essa defasagem de modo metódico e cuidadoso. Não podia se dedicar a uma área do estudo da linguagem ou da literatura, mas precisava lidar com tudo que aparecia em suas mãos como alimento para superar os prejuízos de um contexto sem tradição de pesquisa e invenção.

Com uma dedicação extrema, daquelas que se dão quando se combinam a necessidade material e a inquietude de querer aprender, GMT se destacou como professor e ganhou reconhecimento para ser contratado como um dos fundadores das Universidades Federal e Católica de Goiás. Mais do que isso, no início da década de 60 GMT foi nomeado como presidente do Centro de Estudos Brasileiros, um projeto que a Universidade Federal de Goiás criou sob a inspiração utópica do pensador português Agostinho da Silva (1906-1994). O curso de Estudos Brasileiros presidido por alguém que não havia vindo de fora, mas que tinha enfrentado os genus loci e os prejuízos da paisagem e podia ser reconhecido já como encabeçando um projeto de ensino e pesquisa que prometia ser inovar, justamente por reconhecer o Brasil como ponto de partida para o pensamento (na geografia mítica de Agostinho da Silva, o coração do Brasil deveria refletir o progresso que Goiânia — e depois Brasília — anunciavam).

O golpe militar de 1964 rompeu e colocou como suspeito qualquer tentativa de pensar o Brasil. Embora não fosse um revolucionário, GMT não se encaixava numa paisagem em que qualquer tentativa de independência intelectual era automaticamente perigosa e subversiva. Suas posições eram atípicas, acumulou prestígio como docente e, ao mesmo tempo, gerou ciúme (por exemplo, com suas pesquisas pioneiras sobre a poesia em Goiás) e ranger de dentes. Logo foi denunciado, exonerado, aposentado. Mas também ganhou o impulso para sair de Goiás, trabalhando no Uruguai, em Portugal, depois se radicando no Rio, enfim, teve que romper com os vedados termos da indulgência provinciana e suas espirais de autoexigência paralisante, erudição vazia e ressentimento.

A poesia de Carlos Drummond de Andrade

O projeto inicial de GMT era seguir pesquisando a literatura em Goiás (estudando Hugo de Carvalho Ramos), mas, por força das circunstâncias, precisou mudar seu foco e enfrentar criticamente o maior poeta do país, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Isso significava buscar desvendar criticamente e em termos estruturais como aquele poeta, que se afastava tanto do impulso sublime que fazia parte dos anseios inspiradores de GMT, poderia produzir beleza. A busca crítica e estrutural da forma, do segredo da beleza e do gesto estético do escritor de Itabira geraram o livro “Drummond — A Estilística da Repetição” (Editora Batel, 312 páginas), que fez o próprio poeta mineiro se dobrar sobre si mesmo e buscar reinventar seu caminho (para não cair vítima da redundância que esvazia o sentido de qualquer transcendência, como quem aporrinha o criador e inverte a busca teológica em narcisismo repetindo “Jesus Cristo eu estou aqui”).

O trabalho de crítico e professor inverteu também o pêndulo da poesia de GMT, que se dobrou sobre a linguagem, numa busca pela beleza racional. O anseio sublime inicial, que se manifestava já com rigor formal, agora colocava a modernidade e seu anseio de ruptura como estrutura, desvendava seu método e desdobramentos em ícone, signos, símbolos, convenções e transgressões. Catalogar e estudar os manifestos modernos e ao mesmo reconhecer Camões acenando como presença negada.

Este caminho crítico e seus resultados fizeram de GMT um dos maiores críticos literários do país. Como professor, atuando em grandes centros, não se fechou na orientação de sudestinos (e seus temas e problemas), mas abrigou pesquisadores de todas as regiões do país, colaborando com diversos programas de pós-graduação, oferecendo cursos, palestras etc. Assim, GMT como docente formou muitos pesquisadores que ajudaram a institucionalizar os estudos em Letras no Brasil.

Saciologia Goiana e a Odisseia

De certo modo, com a publicação no começo dos anos 80 de Saciologia Goiana, nosso pendular novamente volta ao impulso sublime inicial da paisagem goiana e suas ambiguidades constitutivas. Com ironia, agora o poeta pode colocar Camões no sertão goiano, responder a timidez de pensamento e as estreitezas de espírito, retomar seu projeto crítico numa chave criativa. Pode então (re)inventar Goiás e fazer poesia sem terno.

Essa reinvenção do sublime tem ela mesma seus momentos de tensão menor, como álibis para uma nova mitologia, que encontra o Brasil na Bretanha e coloca a Grécia em Goiás, fazendo a Odisseia ter lugar numa viagem prosaica ou mágica, de recenseador do IBGE ou de poeta-crítico-professor armado com todas as técnicas da palavra que cria mundos.

A Odisseia é uma volta para casa que a modernidade fez perder o sentido espacial. Internalizamos essa busca e seu sentido épico. Isso traz GMT de volta para Goiás como um Sísifo satisfeito, um errante que hoje pode e deve renomear qualquer água como a melhor cachaça e dar o troco nos bandeirantes desavisados: descolonizar é enfrentar a máquina do medo, escrever seu destino com técnica, dando sentido a aproximação entre arte e arete.

Marcos Carvalho Lopes é filósofo, professor na Unilab, desenvolve o podcast filosofia pop (filosofiapop.com.br).