O poeta e crítico escreveu “A Poesia em Goiás”, “Saciologia Goiana” e um notável livro sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade

Eurico Barbosa

Foi por volta de fevereiro ou março de 1952. Fazia, pois, treze ou catorze meses que Pedro Ludovico Teixeira voltara ao governo de Goiás, no qual ficara de 1930 até 1945 e fora sucedido por Jerônimo Coimbra Bueno, democraticamente eleito em 3 de outubro de 1946. Goiânia, a nova capital goiana por ele idealizada e arrojadissimamente empreendida, contava já com 50.000 habitantes, exatamente a população máxima prevista no projeto de sua construção.

Naquele primeiro trimestre do segundo ano da segunda metade do século, encontrava-me eu à procura de um emprego, para poder estudar sem o sacrifício do meu pai, modesto comerciante em Morrinhos. Cursava o segundo ano do Curso Científico no Ateneu Dom Bosco. Acabara de ficar desempregado, pois uma tentativa de ser balconista vendedor no Bazar Oió — grande e moderna livraria recém-instalada — resultara em fracasso: os dois proprietários, Otelo e Olavo Tormin, de vez em quando me flagravam a ler os livros ali expostos à venda. Não era, evidentemente, um bom vendedor, por isso me despediram, justa e sumariamente.

Gilberto Mendonça Teles: professor de literatura, poeta e crítico literário dos mais refinados | Foto: Reprodução

Na busca de emprego falei com o deputado Celestino Filho, representante de Morrinhos na Assembleia Legislativa. Pouco depois ele me comunicava a existência de uma vaga no Departamento Estadual do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para a obtenção do cargo interino bastaria apenas passar bem por um teste.

Celestino Filho deu-me uma carta de apresentação a um categorizado funcionário do Palácio das Esmeraldas — Juruena di Guimarães; “di” com “i”, ele fazia questão de frisar. Era uma pessoa interessante: bem-humorado, brincalhão, inteligente, permanentemente a fumar um charuto. Foi o pioneiro da crônica na imprensa goiana. Durante vários anos cronista da “Folha de Goiaz”, depois de “O Popular”, ou vice-versa, a crônica sempre com o título geral “De Binóculo”. Postumamente sua produção foi reunida em livro, que lamento não possuir, nem encontrar. Juruena logo de cara começou a me chamar de “Pica-Pau”, certamente por eu ser muito magrinho. O teste a que me submeteu foi apenas a redação de uma carta. Daí a uma semana comunicou-me minha aprovação e no dia seguinte comecei a trabalhar no Departamento Estadual do IBGE, sediado onde hoje é o Tribunal de Contas do Estado.

Gilberto, Ramos Jubé e Barros Boquady

Ali conheci Gilberto Mendonça Teles. E também Antônio Geraldo Ramos Jubé, o grande poeta cujo nome, com as iniciais A. G. e o sobrenome Ramos Jubé eu via frequentemente nos nossos jornais. E ainda, para completar o meu privilégio, Jesus Barros Boquady, que daí a poucos anos se evidenciaria bom poeta e excelente jornalista. Vejam que coincidência: na mesma repartição pública três dos maiores poetas goianos.

A. G. Ramos Jubé

Gilberto redigia semanalmente um boletim intitulado Periscópio, com registros bem-humorados sobre os companheiros de trabalho, que lhe devotavam estima e admiração, por sua cordialidade, polidez e inteligência. Para grande surpresa minha, não faz muito tempo ele me revelou que conserva no seu arquivo pessoal todos os números do “Periscópio”, uma das inúmeras provas do seu excepcional espírito de organização e método, um tanto inusitado entre intelectuais. Disse-me inclusive que tenciona fazer uma ediçãozinha deles.

Quase cotidianamente Gilberto me dava a conhecer suas produções poéticas. Era-me dado então conhecer seu aprendizado constante da técnica versífica, estudioso infatigável que era da literatura em geral e da poesia em particular, numa familiarização a cada dia mais íntima com a métrica, a cesura, os alexandrinos, os decassílabos, os hexassílabos, os sonetos, as regras e as formas todas do gênero. Dotado de agudo senso crítico, analisava as escolas literárias, abalizando-se progressivamente sobre os antigos e os modernistas, identificando-se muito com a chamada geração de 45.

A Poesia e Goiás: um dos livros referenciais de Gilberto Mendonça Teles

Por essa época, algumas das suas produções apareciam nos jornais de Goiânia e em alguns poucos do interior, como “O Liberal”, de Morrinhos, e a “Tribuna de Mineiros”.

Durou apenas sete meses e alguns dias nosso convívio no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Busquei o jornalismo, minha grande vocação e que exerci intensamente, tanto no jornal como no rádio, durante cinco anos. Obviamente, saía do IBGE sem jamais imaginar que 38 anos depois voltaria a trabalhar naquele mesmo prédio, com as responsabilidades de exercer o controle externo da administração estadual como conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Mas no mesmo ano em que me profissionalizava jornalista Gilberto e eu estávamos juntos na Faculdade de Direito da Rua 20. Dois anos depois, publicava ele seu primeiro livro de poesias, “Alvorada”¹.

No ano seguinte, 1956, a segunda obra gilbertiana no gênero — “Estrela D’Alva”, Prêmio Félix Bulhões da Academia Goiana de Letras (AGL). Com relação ainda a esse ano de 1956, Gilberto liderou a formação do Grupo Os Quinze, amantes da literatura que pretenderam sacudir a poeira, o mofo e a situação marasmática em que se achavam os escritores goianos a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Democratizado o Brasil, nossos homens de letras pararam de escrever e foram se dedicar, em sua maioria, à atividade política. Eis como Gilberto Mendonça Teles registra a emergência e a efêmera duração de Os Quinze: “A primeira grande repercussão positiva desse incidente literário (Gilberto está se referindo a uma quente polêmica gerada pela afirmação do professor Zechi Abrão, feita durante solenidade no Jóquei Clube de homenagem da Associação Brasileira de Escritores-seção de Goiás, a vários escritores cuja estreia literária acontecera naquele ano de 1955, de que em Goiás não há literatura) foi o fortalecimento do grupo Os Quinze, o primeiro grupo literário a publicar o seu manifesto em Goiás. Este grupo foi inicialmente dirigido por Regina Lacerda, em cuja casa se fez a primeira reunião. Assumimos depois a sua presidência. A primeiro de janeiro de 1956 foram convocados os seguintes escritores para membros de Os Quinze, escolhidos na maioria os elementos da nova geração: Regina Lacerda, A. G. Ramos Jubé, Elísio de Assis Costa, Jesus Barros Boquady, Gilberto Mendonça Teles, Edison Alves de Castro, Maria Ivone Rodrigues, Raimundo Rodrigues, Irorê Gomes de Oliveira, Eurico Barbosa, Benedito Odilon Rocha, Frei Nazareno Confaloni, Jacy Siqueira, Minerval Benedito de Oliveira e José Leão. Sob a direção de Regina Lacerda, A.G. Ramos Jubé e Gilberto Mendonça Teles, o grupo Os Quinze fez circular em novembro de 1957 o único número do jornal ‘Poesia’, onde aparece um rodapé de crítica assinado por Oscar Sabino Júnior e um artigo — ‘Linguagem e Poesia’ — em que revelamos a nossa identidade com os poetas da Geração de 45, escrevendo que vivemos quase inteiramente presos à geração de 45, cujos princípios ligeiramente modificados continuam a inspirar os poetas da atualidade”.

Aliás, é também o que se vê no artigo de fundo do jornal, escrito por A.G. Ramos Jubé e que foi o manifesto de Os Quinze. O grupo teve, entretanto, duração efêmera, dispersando-se a maioria dos seus elementos: uns tomando rumo da prosa; outros do jornalismo; outros desaparecendo. Dois ou três continuaram o trabalho poético, dominando na atualidade. Em 1958, outro livro de Gilberto é premiado, desta vez pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos. É o volume de poesias intitulado “Planície”. Vem a seguir “Fábula de Fogo”, Prêmio Leo Lynce, da União Brasileira de Escritores-seção de Goiás, editado em 1961. Em 1962 é publicado “Pássaro de Pedra”, que ganha o Prêmio Álvares de Azevedo, da Academia Paulista de Letras.

O poeta e ensaísta

A produção poética de Gilberto Mendonça Teles se vê intercalada por dois ensaios de 1964 — “Goiás e Literatura” e “A Poesia em Goiás”. Este último, trabalho extraordinário de pesquisa e análise, vitoriou-se em marcante concurso promovido pela Universidade Federal de Goiás, cujas inscrições terminaram no dia 30 de setembro de 1962 e o julgamento se deu em novembro, dois meses depois, portanto. São da Comissão Julgadora estas apreciações:

“O sr. Gilberto Mendonça Teles, em mergulhos de investigação e pesquisa, traça-nos, em prosa sóbria e bem concatenada, o quadro da poesia goiana, desde os seus primórdios no século 18 até os dias que correm.

“Não se pode negar ao sr. Gilberto Mendonça Teles a seriedade manifestada na pesquisa de aspectos e fatos da nossa poesia, buscando em arquivos e raridades bibliográficas os elementos indispensáveis à ilustração do seu livro. Cumpre-nos afirmar, à oportunidade, que o serviço prestado pelo autor às nossas pobres letras provinciais é muito importante, sobretudo se considerarmos a originalidade de que se reveste o seu esforço. Além do mais, vale esclarecer que ‘A Poesia em Goiás’ (Estudo/Antologia) é um ensaio oportuno, fadado a completar uma grande lacuna até agora existente, mesmo se considerar o trabalho em si, não se atentando para as suas altas qualidades literárias e técnicas.”

Colemar Natal e Silva: fundador da Academia Goiana de Letras, do IHGG e da Universidade Federal de Goiás: o homem-civilização | Foto: Reprodução

A essas considerações da Comissão Julgadora parece-me justo e oportuno aduzir que Gilberto não apenas analisa e projeta o desenvolvimento da poesia em Goiás, mas oferece também um painel grandioso de fatos culturais significativos de vários períodos da nossa História.

Já que acabo de lembrar uma promoção da Universidade Federal de Goiás, um parêntese para um registro que também se me afigura justo fazer nesta oportunidade. É o que diz respeito ao tributo de reconhecimento que os goianos devemos, todos, à figura histórica de Colemar Natal e Silva. Fundador da Academia Goiana de Letras (AGL) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, foi o criador e maior propulsor da UFG. Instalada em 1960, já no ano seguinte estavam criados o Instituto de Bioquímica, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, o Colégio Universitário, a Escola de Economia e Veterinária, o Instituto de Industrialização Farmacêutica, o Instituto de Belas Artes, o Centro de Estudos Latino-Americanos e o Centro de Estudos Brasileiros. Neste último havia dois Cursos — o de Estudos Brasileiros e o de Estudos Goianos. Foi Gilberto Mendonça Teles, professor concursado da UFG, o escolhido para dirigir o Centro de Estudos Brasileiros. O exercício de suas funções acabou por ser determinante de uma das clamorosas injustiças do governo militar instalado no Brasil em abril de 1964: a exoneração e posterior aposentação de Gilberto pela violência e onipotência do AI-5. Tenho em meu arquivo o relatório com que o general Riograndino Kruel concluiu o IPM de que fora encarregado com a finalidade de justificar o afastamento, melhor dizendo, a deposição do governador Mauro Borges. Vejam como o general definiu o órgão dirigido por Gilberto:

“A Universidade Federal de Goiás tomou a si a tarefa de formar os líderes revolucionários, através de um pequeno ISEB, o Centro de Estudos Brasileiros, que doutrinava os jovens e os formava aptos à ação subversiva. Sentindo que a frequência ao Centro era pequena (10 a 15 alunos) e circunscrita à capital do Estado, foram organizados os chamados Cursos de Realidades Brasileiras, sob o patrocínio do Departamento Cultural da UFG, que expedia os diplomas e orientado por uma equipe de professores comunistas que adquiria experiência através de atuação pessoal no Centro de Estudos Brasileiros. O curso era constituído de um pequeno número de conferências, habilmente selecionadas e estava em condições de ser desencadeado, a pedido, em qualquer ponto do território goiano, sempre ministrado por comunistas notórios.”

A essas injustiças e a crimes terríveis conduzem a deformidade ideológica, a má índole e o mau caráter de golpistas ambiciosos do poder ilegítimo e totalitário.

Retomando o fio do arrolamento da obra literária de Gilberto, devo dizer que a fecundidade e a regularidade da produção do homenageado continuaram, e certamente continuarão, e me aconselham a não esgotá-la neste pronunciamento, para que não seja muito longo. Limito-me a registrar que a infatigabilidade e o talento de Gilberto Mendonça Teles deram à literatura brasileira após 1964 os volumes de poesia “Sintaxe Invisível” (1967), “A Raiz da Fala” (1970), ganhador do Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras; “Arte de Amar” (1977), Prêmios Banco Bandeirantes, da Sociedade Brasileira de Cultura e Brasília de Poesia; “Poemas Reunidos” (1978), depois intitulado “Hora Aberta” (1986), “Saciologia Goiana” (1980) cuja terceira edição de 2001 apresenta a obra aumentada; “Cone de Sombras” (1995), “Sonetos” (1998), “Caixa de Fósforos” (1999) e “Álibis”.

Em 1969, Gilberto publicou “La Poesia Brasileña en la Actualidad”, em Montevidéu e em 1984 “Plural de Nuvens” na cidade do Porto, Portugal. No gênero ensaios deu-nos “O Conto Brasileiro em Goiás” (1969), “Drummond — A Estilística da Repetição” (1970), “Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro” (1970), “Camões e a Poesia Brasileira” (1973), “Retórica do Silêncio” (1979), “Estudos de Poesia Brasileira” (editado em Coimbra, Portugal, 1985), “A Crítica e o Princípio do Prazer” (1995). A “Escrituração da Escrita” (1996) tendo a coautoria de Klaus Muller-Bergh. Universitas of Ilinois at Chicago. Madrid (2000).

Não estenderei o rol com as inúmeras antologias e obras feitas em colaboração².

Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Mendonça Teles e Plínio Doyle: o poeta de Itabira admirava a crítica literário do intelectual goiano | Foto: Reprodução

A consagração de Gilberto Mendonça Teles como um dos nomes mais importantes da literatura nacional exprime-se não somente por meio da crítica, como também pelas já numerosas teses de mestrado ou doutorado sobre a sua obra.

Seu prestígio entre os escritores é também refletido pelos votos obtidos por ele na Academia Brasileira de Letras. A chamada Casa de Machado de Assis tem muitas singularidades ao longo da sua história. Esta, por exemplo: João Neves da Fontoura era o maior orador do País nas décadas de 1920 e 1930. Mas não era autor de nenhum livro. O espertíssimo amigo dele, jornalista Assis Chateaubriand, comunicou-lhe um dia que ia fazê-lo membro da Academia Brasileira de Letras. João Neves objetou — não tinha obra alguma publicada. Chatô, o Rei do Brasil, assegurou-lhe o êxito da empreitada a que se propunha. E, realmente, em breve estaria a comunicar ao grande tribuno sua eleição para a ABL. A eleição de um orador sem livro. É verdade que muito mais tarde João Neves da Fontoura veio a publicar suas memórias, em dois alentados volumes e excepcionalmente bem escritas. A Academia chutou erradamente, mas fez o gol. Um gol legitimado pela arbitragem do tempo.

Gilberto Mendonça Teles³ não necessita do título de acadêmico da tradicional ABL para o reconhecimento do valor da sua obra literária, como já provado nas linhas volvidas. Mas já ali obteve 18 votos. Não se elegeu por apenas um voto. Isso demonstra como sua posição nas letras nacionais é destacada.

Eurico Barbosa é escritor e pesquisador da história do Brasil e de Goiás. É membro da Academia Goiana de Letras.

Notas

¹ Livro cujo cinquentenário a Academia Goiana de Letras (AGL) homenageou. O artigo de Eurico Barbosa faz parte da homenagem.

² “Meu tempo para esta palestra despretensiosa é de apenas vinte minutos.”

³ Gilberto Mendonça Teles completou 90 anos no dia 30 de junho de 2021.