Ganhador do 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto Freyre, pesquisador fala sobre o papel de um dos maiores intelectuais brasileiros no processo de apresentação de um País que, apesar de plural, era moderno

Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção

Gustavo Mesquita, mestre em história
pela Universidade Federal de Goiás, venceu o 6º Prêmio sobre Gilberto Freyre | Foto: Divulgação

Gustavo Mesquita é um dos mais promissores jovens pesquisadores brasileiros em ciências humanas. Atualmente finalizando doutorado em História na Univer­si­dade de São Paulo (USP), ele venceu o 6º Concurso de Ensaios sobre Gil­berto Freyre com sua dissertação de mestrado apresentada na Uni­versidade Federal de Goiás (UFG), com orientação do professor Noé Frei­re Sandes. Com o título “Gil­berto Freyre e o Estado No­vo: Região, Nação e Mo­dernidade”, o trabalho será publicado pela Editora Global. Nesta entrevista Gustavo Mesquita fala sobre a importância do prêmio, a vida, a obra e algumas das po­­lêmicas envolvendo Gilberto Frey­re, a recepção de suas ideias pelos movimentos negros e sua conturbada relação com Florestan Fernandes, tema de sua tese. Pela visão privilegiada de Gustavo Mes­quita, pesquisador tanto de Freyre quanto de Florestan, poderemos esclarecer postos de um dos maiores “duelos de titãs” do cenário intelectual brasileiro.

Você venceu o 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto Freyre. O que significa esse prêmio de repercussão nacional em sua trajetória intelectual?
Ainda não tenho uma noção clara o suficiente sobre o significado deste prêmio em minha trajetória. Certo é que meu trabalho teve o reconhecimento da comissão julgadora. Foi reconhecido como o melhor trabalho entre os inscritos no concurso. O que me dá mais orgulho é pensar que se trata de uma dissertação de mestrado, desenvolvida no âmbito da Universidade Federal de Goiás instituição na qual cursei a graduação e o mestrado em His­tória. A meu ver, isso reforça a convicção de que a pós-graduação, e a universidade pública como um todo, são fundamentais para o desenvolvimento social do País, em termos do acesso democrático à educação, ciência e reflexão crítica. Aí está o significado mais relevante que vejo sobre minha participação no 6º Con­curso Na­cional de Ensaios. Falo da imensa importância que a universidade pú­blica teve para minha formação intelectual, o que resultou na conquista do prêmio. Sobre sua repercussão nacional, acho que a passagem do tempo me ajudará a entendê-la melhor.

O ensaio premiado se intitula “Gilberto Freyre e o Estado Novo: região, nação e modernidade”, que deve ser lançado pela Editora Global. O historiador Noé Freire Sandes, seu orientador durante o mestrado, chama atenção para o fato de que seu trabalho aborda uma questão pouco discutida entre os estudiosos da obra de Gilberto Freyre: a relação entre o sociólogo e o governo Vargas. Em linhas gerais, quais seriam essas relações e como elas aparecem na obra de Freyre?
Depois que Vargas e seus correligionários deram o golpe de Estado, em 1930, Freyre acompanhou o então presidente da província de Pernambuco, Estácio Coimbra, em seu exílio para a Europa. Eles haviam estabelecido relações políticas cada vez mais estreitas na década anterior. Freyre era o chefe de seu gabinete quando a revolução estourou. Astutamente, embarcou junto com Estácio em um navio rumo ao autoexílio europeu. Desembarcou em Portugal, onde começou a pesquisa histórica, antropológica, sociológica e geográfica que três anos depois resultaria no livro “Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal”. Assim começam de modo intenso as relações de Freyre com o regime instaurado por Vargas. Foram doze livros escritos entre 1933 e 1945, quando o regime finalmente caiu. Freyre apresentou uma interpretação da sociedade brasileira diferente do que havia sido pensado por outros intérpretes. Afirmou a vantagem mundial da nossa mestiçagem, ao contrário de representá-la por um viés negativo. Apontou para o futuro buscando processos decisivos em nosso passado: a diversidade étnica, cultural e regional do País precisava ser valorizada. O impacto dessas ideais sobre a elite dirigente do Estado Novo foi enorme. A maioria dos ministros, dos secretários dos Ministérios, dos intelectuais e o próprio presidente da República rapidamente reconheceu o projeto de Freyre e iniciou uma política cultural que valorizava o folclore e outras tradições populares, aquelas mesmas que o sociólogo estudou em sua obra. Os usos de seu pensamento não acabaram aí. Também a visão do Estado Novo diante da questão das disparidades regionais foi influenciada por livros como “Nordeste” e “Região e tradição”, e uma nova divisão regional foi realizada pelo recém-criado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para solucionar aquele problema.

Minha pesquisa sobre as relações de Freyre com o Estado Novo revelou um amplo pacto político para a modernização do Brasil, sem que as tradições fossem apagadas de nossa memória. Bem ao contrário desse possível esquecimento, juntos criaram uma identidade nacional poderosa até mesmo em termos mundiais, pois, além de unir o povo à nação, permitia a apresentação do Brasil moderno ao mundo, como um equilíbrio de antagonismos de raça, de classe e de região. Esse processo foi pensado por Freyre em “Casa-grande & Senzala”, continuado em “Sobrados e Mucambos” e divulgado, sobretudo, nos Estados Unidos, com suas conferências acadêmicas e textos em revistas internacionais a respeito da originalidade da cultura brasileira. Acredito que sejam essas relações as que o professor Noé apontou como questão ainda pouco discutida pelos historiadores.

Um dos focos de sua pesquisa são as relações de Gilberto Freyre com outros intelectuais brasileiros, tais como Agamenon Magalhães, José Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda, José Olympio e Gustavo Capanema. Como Freyre se posicionava nesse cenário?
A amizade com certos intelectuais era essencial para que Freyre se inserisse com mais rapidez no mercado de postos públicos, este espaço por onde os intelectuais foram cooptados pelo regime. O sociólogo Sergio Miceli, em “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil”, expôs de forma geral como se deu a cooptação dos intelectuais pelo aparelho de Estado. Muitos assumiram cargos de confiança e de direção nas instituições mais importantes do País e o prestígio veio como recompensa. Com Freyre não foi diferente. Ele contou com o apoio de alguns de seus amigos para isso. O sociólogo não assumiu cargos de direção no governo federal, como foi o caso de Carlos Drummond de Andrade e de outros intelectuais, mas atuou diretamente na criação de instituições técnicas, dependentes da centralização do poder, como o hoje conhecido Instituto do Patrimônio His­tórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o IBGE. Fla­grei nos arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Con­tem­porânea do Brasil (CPDOC), da Fun­dação Getúlio Var­gas (FVG), onde fiz pesquisas para a dissertação, negociações em torno do financiamento estatal das viagens de Freyre para o exterior (países da A­mé­ri­ca Latina e da Europa). Eram viagens a serviço do go­verno brasileiro, negociadas em cartas confidenciais entre o ministro da E­du­cação, Gus­tavo Capanema, e o próprio so­ciólogo. Ta­manha evidência me mostrou um caminho pelo qual eu encontraria mais pis­tas sobre a colaboração de Freyre com o Estado Novo. Sua atuação junto ao IPHAN e ao IBGE se mostrou apenas a ponta do iceberg.

Depois de seguir adiante com a pesquisa nos arquivos do governo e de alguns intelectuais, descobri que o sociólogo havia colaborado, de modo mais amplo, com a ideologia do nacionalismo, tão preciosa para o regime quanto para ele próprio. Pude, então, investigar ainda mais sua rede de intelectuais no Brasil, ou seja, aqueles com quem ele partilhava um projeto em comum. A colaboração com os intelectuais vinculados ao Estado Novo se mostrou a nota mais característica nas relações de Freyre com os outros intelectuais. O caso de Agamenon Magalhães foi uma exceção à regra: tratado como comunista pelo governo de Per­nam­buco, Freyre passou por muitos atritos com Agamenon e terminou preso por isso em 1942. O conflito entre eles não teve trégua nem mesmo quando o Estado Novo chegou ao fim.

Você analisa a transição de Gilberto Freyre do antiliberalismo ao conservadorismo. Esse processo possui um marco de ruptura, pessoal, político ou intelectual, ou foi um processo lento e gradual?
A transição de Freyre para a ala conservadora começou quando a ditadura dava os primeiros sinais de crise. Foi mesmo um processo gradual. O sociólogo deu várias conferências na Bahia em 1943 para um público, digamos, diferente da elite intelectual vinculada ao regime, até então sua parceira inquestionável. Escutaram suas palavras a favor da liberdade civil alguns estudantes universitários, interventores do Nordeste (inimigos de Agamenon Maga­lhães) e militares de alta patente. A presença de Nelson Werneck Sodré na conferência de Salvador foi marcante, pois resultou em muitos artigos na imprensa de sua autoria a respeito da influência de Freyre sobre os baianos. A oposição do sociólogo à ditadura crescia cada vez mais. Ele teve habilidade ao se afastar gradualmente de um presidente que enfrentava dificuldades para se manter no poder. O clímax desta história se deu em 1945, na Praça da Liberdade, Recife, lugar onde um grande protesto contra o regime estava acontecendo. Freyre era uma das lideranças dos manifestantes. Acontece que a polícia pernambucana, atendendo às ordens de Agamenon, cercou os manifestantes e tentou agredi-los com armas de fogo. Um manifestante caiu morto ao lado de Freyre. Esse acontecimento marcou definitivamente a passagem do sociólogo para a oposição ferrenha ao Estado Novo. O processo teve desfecho com sua e­lei­ção para deputado federal pela UDN. Na Constituinte de 1946, surpreendentemente, Freyre assumiu um discurso mais reacionário politicamente, defendeu posições mais conservadoras e atuou em prol da criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, ainda hoje existente no Recife.

A primeira biografia de Gilberto Freyre foi lançada em 1944, escrita por seu primo Diogo de Melo Meneses, com direito a prefácio apologético de Monteiro Lobato. Quem é o Gilberto Freyre que emerge desse livro? Como essa figura se distingue do apresentado em trabalhos de referência mais recentes, como “Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos”, de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, de 2005?
A primeira biografia sobre Freyre o representou como principal cientista social do País, alguém que teria as melhores ferramentas para conduzir a sociedade brasileira pelas águas turvas da modernidade. Ou seja, Freyre, segundo seu primeiro biógrafo, seria herói nacional capaz de fazer nossa travessia do passado, cheio de vícios, mas com virtudes preciosas, para o futuro pleno de brasilidade e originalidade. O futuro teria sido projetado por Freyre para marcar a contribuição do Brasil para o mundo contemporâneo. Daí Monteiro Lobato ter dito na biografia que o futuro seria o que Freyre dissesse. Muito longe dessa heroicização absoluta e exagerada, o livro da historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke narrou momentos decisivos na trajetória do jovem Freyre, antes da década de 1930. Ela se preocupou mais em narrar os trajetos intelectuais do sociólogo em suas viagens para Estados Unidos e Europa, quando tinha apenas vinte e um anos de idade. Sem sombra de dúvida, os dois livros são muito diferentes. O trabalho de Maria Lúcia nos mostra o quanto a História se desenvolveu de lá para cá.

Embora tenha um pecado de origem, por dizer que Freyre era um vitoriano – pois de vitoriano seu pensamento nada tinha –, o livro de Maria Lúcia se mantém como uma boa fonte de estudos. Eu mesmo conheci aspectos novos do movimento regionalista em Pernambuco nos anos 20 e 30 lendo o livro, sem falar nas discussões sobre a passagem de Freyre pelas clássicas universidades inglesas, como Oxford e Cambridge, quando a Inglaterra re­ssurgia depois da I Guerra Mundial. O livro é muito melhor que a primeira biografia porque a pesquisa documental foi feita de forma séria, com análise crítica das fontes.

Outro estudo biográfico, entretanto, é visto atualmente pelos historiadores como mais esclarecedor do que o de Maria Lúcia. Estou falando de “Gilberto Freyre: uma biografia cultural”, publicado em 2007 pelos uruguaios Enrique Rodríguez Larreta & Guillermo Giucci. O brilhante insight desses autores, ao revelarem que os diálogos de Freyre com escritores e críticos literários norte-americanos, tanto da New Poetry quanto dos imagistas, quando, jovem, estudava nos Estados Unidos, criou novas possibilidades para entendermos os meios pelos quais Freyre desenvolveu uma prosa ao mesmo tempo literária e científica, estética e conceitualmente original. O jornal “Folha de São Paulo” promoveu um interessante debate entre os biógrafos no final de 2007. O choque hermenêutico ente as biografias foi o assunto da polêmica. Esse choque diz respeito justamente às origens da linguagem de Freyre. Ora, a ousadia de sua linguagem é um dos maiores segredos de sua obra, e ainda está à espera de maior compreensão.

Gilberto Freyre foi, inquestionavelmente, um dos maiores intérpretes da história do Brasil | Foto: Divulgação

Gilberto Freyre tinha uma grande preocupação com o aspecto estético de sua escrita. Construiu um estilo ensaístico muito característico, comumente chamado de “escrita sensorial”. Em sua avaliação, qual a dimensão de Gilberto Freyre enquanto escritor? Ele tem lugar no cânone literário brasileiro?
Há um antigo consenso de que o estilo de Freyre se aproxima mais da arte que da ciência; é mais prosaico do que explicativo; mais romântico que realista. As biografias contemporâneas de Maria Lúcia e Enrique & Guillermo enfocaram, cada um à sua maneira, a formação de Freyre como escritor, mais que sociólogo, uma formação à altura da complexa composição de romances históricos. É bem conhecida a crítica segundo a qual “Casa-grande & Senzala”, “Sobrados e Mu­cambos” e “Nordeste”, para ficarmos com os livros mais conhecidos de sua lavra, pertencem à categoria de romance histórico. Os livros então mais parecem romances sobre a vida privada na Colônia e no Império, devido à transmissão de lembranças, imagens e sentimentos pelas figuras de linguagem usadas pelo autor.

A técnica de exposição livre, às vezes literária, outras vezes científica, característica do ensaio, foi bastante utilizada por ele em outros livros, como “Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife”, de 1934, ou então “Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil”, de 1939, ou ainda “As­sombrações do Recife velho: algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense”, de 1955. Freyre surge nas obras citadas como ensaísta que não abria mão de sua técnica, de sua linguagem. Houve o contrário disso. Polímata, ele se lançou nas artes do desenho, da pintura, da fotografia, da poesia e do romance, combinando-as com as Ciências So­ciais. Seus livros trazem uma prosa que seduz o leitor, sugando-o para o encanto estético de suas histórias. Com tamanho ecletismo podemos dizer que sua obra tem lugar no cânone literário brasileiro. Basta pensarmos no marco do regionalismo, cujas obras mais marcantes foram escritas nos anos 30 e 40, por escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz, além de Freyre. l

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Gilberto Freyre é um dos intelectuais brasileiros mais respeitados internacionalmente. Apesar disso, já houve campanhas, tanto em vida quanto após sua morte, para bani-lo de nosso cenário intelectual. O que motivou essa reação tão belicosa?
É preciso esclarecer este ponto nebuloso. A emergência das universidades brasileiras nos anos 30 e a posterior ascensão dos chamados sociólogos profissionais, capitaneados por Florestan Fernandes, implicaram tentativas de superação dos intérpretes do Brasil, especialmente dos que não se inseriram na universidade. O grupo de Florestan, aguerrido e enraizado na Universidade de São Paulo, criticou tanto a forma quanto o conteúdo da obra freyriana em importantes livros e revistas das décadas de 50 e 60. Isso mesmo, a obra inteira foi atacada.

Freyre seria um aristocrata mais preocupado com a manutenção do status quo do que com a democracia. Por trás da reação crítica estava a luta dos sociólogos paulistas por uma nova interpretação das relações entre negros e brancos no Brasil, contrária à ideia de harmonia racial. Essa luta assumiu uma rígida fórmula estrutural-funcional, em decorrência das tentativas de os sociólogos explicarem que os negros, depois da Abolição, continuaram sendo uma minoria excluída da democracia. Começaram, a partir desta luta, a constituir um projeto diferente para o País: o entendimento do racismo e os direitos civis dos negros, tal qual acontecia nos Estados Unidos. Um forte choque entre projetos foi o que aconteceu depois que os militares assumiram o poder em 1964. Tanto é que a obra-prima de Florestan, “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, foi publicada no mesmo ano do golpe militar. Florestan foi o primeiro a afirmar neste livro que Freyre seria o ideólogo da democracia racial brasileira. O País viveu tempos de violência e repressão até meados dos anos 80, e Freyre foi associado pelos sociólogos acadêmicos ao autoritarismo dos militares. Sua obra era pouco lida e discutida nas universidades brasileiras, até que um movimento contrário começou a tomar forma no horizonte dos intelectuais.

A despeito dessa má vontade, nos últimos anos tem havido um resgate sistemático da imagem e do pensamento de Gilberto Freyre. Diversas pesquisas acadêmicas foram realizadas ou estão em andamento. Livros, artigos e estudos biográficos de fôlego foram lançados. O que motivou essa revitalização?
Como disse anteriormente, creio que essa discussão está assentada em diferentes tradições intelectuais da História e das Ciências Sociais feitas no Brasil. O marco de referência para a revitalização foi o espetacular ensaio de Ricardo Benzaquen de Araújo, “Guerra e Paz: Casa-grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30”, publicado em 1994. “Guerra e paz” renovou a leitura que há décadas a maioria dos leitores universitários fazia da obra-prima de Freyre. Repensou não só o lamarckismo e a hybris na visão do sociólogo sobre a sociedade colonial, como apontou de maneira pioneira algumas consequências de “Casa-grande & Senzala” para a ideia que os homens de 1930 faziam sobre nossa mestiçagem. O país havia se livrado do flagelo da ditadura militar e encontrava-se numa democracia em crescimento na primeira metade dos anos 90. O livro, nesse contexto, permitiu uma grande mudança no eixo de reflexão dos pesquisadores e estimulou a renovação historiográfica. As novas perguntas passaram a ser mais diversas, contemplando desde as origens do estilo original e da forma ensaística do sociólogo, aos efeitos políticos de suas ideias para a construção nacional. Antes mesmo dos anos 90, Elide Rugai Bastos fez em sua tese de doutorado uma leitura interna dos livros de Freyre, lançando luz sobre suas principais ideias. Organizou e analisou em linguagem acadêmica um conjunto de temas candentes, comuns à sequência composta por “Casa-grande & Senzala”, “Sobrados e Mucambos” e “Nordeste”. A tese de Elide foi outra contribuição para os novos estudos freyrianos, dando-lhes sentido político: a debilidade das famílias burguesas em ascensão nos anos 30. O problema é que a tese foi publicada em livro só em 2006. Ambos os livros são simplesmente leitura obrigatória para os especialistas na obra freyriana e recomendável para quem apenas tem interesse em saber mais sobre o assunto. Eu mesmo tenho atuado mais na segunda corrente, mas admiro muito a linguagem de “Guerra e paz”. Soube que Ricardo faleceu recentemente. É uma perda grande demais para o pensamento brasileiro. A vida, contudo, tem de seguir. Inclusive é uma vontade minha investigar a influência de “Casa-grande & Senzala” sobre a modernização de Goiás durante os anos de chumbo da ditadura militar. Espero um dia poder realizar essa vontade.

Um dos mais importantes intelectuais brasileiros contemporâneos de Gilberto Freyre foi Florestan Fernandes, seu atual objeto de pesquisa. As relações entre Freyre e Florestan são objeto de muita especulação. Variam de declarações de respeito mútuo até suspeitas de boicote deliberado. É possível esclarecer isso? A partir de seu ponto de vista privilegiado, como vê essa questão?
Tenho uma leitura sobre essa polêmica que alguns podem discordar. Um baluarte do pensamento brasileiro nos anos 50, Freyre precisava ser demonizado por Florestan e seus discípulos para que seu modelo científico de Sociologia ganhasse força. Mas Florestan não era ingênuo e respeitava a obra freyriana até certo ponto. No livro “O Imperador das Ideias: Gilberto Freyre em questão”, organizado por Joaquim Falcão, foram reveladas cartas em que Florestan convidou Freyre para participar das bancas de doutorado de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Mas o sociólogo de Apipucos recusou ambos os convites em tom respeitoso. Parece que não tinha interesse em responder às críticas dos acadêmicos da USP.

Sinais de respeito mútuo como esses existiram além dos anos 60, muito embora a influência da obra freyriana continuasse a diminuir nas universidades, então o lugar privilegiado da reflexão científica da Sociologia. A perda da influência acontecia só nas universidades, é bom ressaltar, porque Freyre aumentou seu poder político depois do golpe militar. Foi convidado para ministro da Educação, mas recusou. Aceitou fazer parte do Conselho Federal de Educação e a partir das diretrizes do Conselho continuou a exercer influência sobre a educação brasileira. Assim chegamos aos marcos de referência mencionados anteriormente, ao longo das décadas de 80 e 90, quando a obra de Freyre recebeu outros olhares.

Gilberto Freyre e Florestan Fernandes estudaram a cultura negra no Brasil. Grande parte do movimento negro sempre teve grandes reservas ao pensamento de Freyre, destacadamente quanto a sua noção de democracia racial. Florestan, por outro lado, costuma ser festejado. O que distingue a visão de cada um sobre o tema? Há algum ponto de convergência ou são absolutamente díspares?
Há um olhar interessante sobre essa questão no livro mais recente da historiadora Elizabeth Cancelli, “O Brasil e os outros: o poder das ideias”. Ela estudou a formação dos pensamentos de Freyre e Florestan ao mesmo tempo. Fez isso de maneira brilhante, por meio dos diálogos intelectuais de ambos os pensadores com correntes de pensamento internacionais. Diálogos intelectuais são responsáveis pela formação de qualquer pensador, pela forma final assumida em seu pensamento ao recriarem as ideias nas quais acreditam. Com os cientistas sociais não é diferente. Diferentes redes intelectuais se expandiam no mundo inteiro durante a II Guerra Mundial. Freyre se formou em diálogo com uma, Florestan com outra. Ambas se desenvolveram, antes da guerra, mais nos Estados Unidos que na Europa.

A rede de Florestan era estritamente científica, sociológica, composta pelos líderes da Escola de Chicago, como Robert Park, Franklin Frazier, Herbert Blumer, entre outros. Florestan se formou lendo as obras desta escola mais que qualquer outra coisa. Sua formação chegou ao ponto alto com a leitura de “An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy”, publicado em Nova York, em 1944, por Gunnar Myrdal. Estas obras davam um sentido para a questão racial completamente diferente do sentido que Freyre pensava e desejava para o Brasil. Que sentido é esse? Estou falando do antirracismo, de uma agenda liberal e antirracista que buscava a integração do negro no mercado de trabalho. Florestan selou um pacto com os desenvolvimentistas norte-americanos, os quais criaram a agenda liberal, e a introduziu no Brasil. Freyre havia se formado a partir de diálogos intelectuais diferentes dos de Florestan, muito mais artísticos e literários. O pensamento de um sobre o negro é água, o do outro é óleo, diametralmente opostos. Não se misturam e não encontram pontos de convergência. Aprofundo esse tema em minha tese de doutorado, sob o título de “Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil, 1941-1964”.

Seria te colocar numa fogueira perguntar qual dos dois está certo?
Sua pergunta de fato me colocou na fogueira, pois não há qualquer margem para consenso em nenhuma instância do País, nem entre nossos ativistas atuais, nem entre nossos governantes, muito menos entre nossos intelectuais. O negro ainda sofre discriminação?

Acredito que sofra. Continua sofrendo de forma não-explícita. Florestan estava parcialmente certo em seu estudo do caso particular do Sudeste em termos de Brasil, visto que a região, sobretudo o estado de São Paulo, foi a parte do país em que a industrialização se processou mais intensamente. Vertiginosamente, diria eu. Penso que a maioria dos negros não tinha as mesmas condições que os brancos para competir pelos melhores postos de trabalho depois da Abolição. Mas é preciso cuidado para não vitimizarmos os negros, ou seja, vê-los apenas como oprimidos, uma minoria populacional incapaz de participar da vida social e da cultura no Brasil.

Um dos erros de Florestan foi exagerar nesse aspecto, embora sua análise tenha certo grau de verdade. Pois havia no fim do século 19 e no começo do 20 uma elite negra cujo surgimento se deu ao longo do oitocentos. Sabemos muito pouco sobre o discurso e a ação dessa elite. Houve durante um momento o apagamento de sua história. Um dos primeiros a criticar a interpretação de Florestan, Ianni e Fernando Henrique Cardoso foi o historiador Sidney Chalhoub, em “Visões da liberdade”, de 1990. Ele disse, em resumo, que a teoria do escravo-coisa, do escravo ceifado de discurso e de ação, é insuficiente para entendermos a história negra no Brasil. Então é preciso reconhecermos os exageros do grupo da USP, inspirados que foram em reflexões norte-americanas sobre o problema do negro em terras estadunidenses. Freyre, por sua vez, continua atual. Excetuando sua ideia de que não há discriminação racial entre nós, sua interpretação de nossa cultura híbrida, da formação da família patriarcal e das tradições brasileiras, ainda explica muita coisa.

*Ademir Luiz é escritor, doutor em História e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)