Fraudes “inocentes”: livro de John Galbraith tem muito a dizer sobre a crise das Lojas Americanas
08 março 2023 às 10h51
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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
A falência das Lojas Americanas e a privatização da Celg podem ser explicadas por um pequeno-grande livro que um dos maiores sábios norte-americanos, o grande John Kenneth Galbraith, escreveu no início dos anos 2000, quando estava com 98 anos. Pequeno de tamanho (84 páginas), mas grande na conhecimento, o livro “A Economia das Fraudes Inocentes” é leitura obrigatória para aqueles que desejam entender o atual momento nacional sob a luz de um dos maiores sábios, oriundo do maior templo da academia americana: a Universidade de Harvard.
Fraudes nada inocentes na maior estatal goiana
O episódio que ora passo a narrar aconteceu na década de 1990, antes da implantação do Plano Real. Naquele momento, os balanços da empresa ainda apresentavam uma situação absolutamente ilusória, que foi desmascarada com o país vencendo a inflação.
A nova realidade expressa pela estabilidade econômica descortinou os inúmeros investimentos superfaturados que a contabilidade escondia em uma conta que o Plano Real extinguiu: a de Resultados a Compensar. De repente, esses “investimentos” improdutivos transformaram-se em esqueletos pagos com a venda do principal ativo da empresa: a Usina Hidroelétrica de Cachoeira Dourada.
Marconi Perilo recebeu a Celg com o compromisso de recuperar as finanças de uma empresa falida, que se viu, de uma hora para outra, sem a Usina de Cachoeira Dourada. Os fatos mostravam uma realidade que a contabilidade escondia ante a conivência técnica de certos atores.
Ciente dessa realidade, que mexeu com os brios da classe política e de alguns técnicos da empresa, sempre ávidos em adular a diretoria, denunciei, na coluna semanal que escrevia para um jornal local, algo que se mostrou verdadeiro: os balanços da CELG escondiam fraudes (quero crer) imperceptíveis para a maioria da população, que não dispunha de instrumentos técnicos para analisar o caos em que se encontrava a maior estatal goiana.
A repercussão da denúncia levou a Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa a convocar o então contador da empresa para dar explicações. Esse, completamente desprovido de documentos e competência técnica, passou a atacar-me. Como fui citado nominalmente, solicitei, a meu dileto amigo, deputado José Nelton, algo que jamais me foi concedido: o direito de resposta.
A minha não convocação era, de certa forma, compreensível, pois, com as informações que eu tinha em mãos, poderia, este escriba que vos fala, destruir os frágeis argumentos do contador e da diretoria da época. A verdade nua e crua é exatamente esta: os donos do poder celgueano não queriam colocar à luz do Sol algo tão manipulado como eram os balanços da Celg.
Moral da história: a contabilidade criativa constrói a realidade que os donos do poder procuram acobertar.
O escândalo que hoje presenciamos das Lojas Americanas demonstra, mais uma vez, que a contabilidade, quando não usada de maneira ética, torna-se um poderoso instrumento, que é capaz de acobertar gigantescas fraudes como foram os bilhões de reais surrupiados por empresários que optaram pelo caminho mais fácil do capitalismo sem risco:não competir para extorquir empresas públicas e privadas.
O professor John Kenneth Galbraith militou, em grande parte de seus 70 anos de trabalho, em dois mundos diferenciados: o da academia e o da política. Tanto em um campo como no outro, o talento de Galbraith deixou sua marca. Na política foi um destacado auxiliar do presidente Jonh Kenneth, bem como um embaixador de expressão nos Estados Unidos e na Índia. Ele também foi um destacado diretor do Banco Central dos Estados Unidos. Na sua rica e diversificada vida profissional, esse importante assessor do governo Jonh Kennedy foi editor da revista Fortune. Na academia, Jonh Kenneth Galbraith foi um eminente professor da Universidade de Harvard. Com uma carreira tão diversificada, ele ainda encontrou tempo para escrever dezenas de livros, alguns dos quais já se tornaram clássicos.
“A economia das fraudes inocentes”
Quando se lê esse título, o autor chama, de imediato, a atenção dos leitores para o contraditório implícito no próprio título: como uma fraude pode ser considerada inocente? Como a inocência pode ser fraudulenta? Quem lê esse pequeno-grande livro entende que, por trás dessas fraudes inocentes, existe um mundo de hipocrisia que induz empresários a fraudarem sem sentir culpa. Vejamos alguns exemplos de fraudes inocentes das quais tanto nos fala o autor.
Primeiro: PIB, o felicitômetro dos ricos”
Quem definiu o mais famoso indicador da economia como sendo o “felicitômetro dos ricos” foi o professor Edmar Bacha, que deve ter bebido na fonte dos escritos de Galbraith.
O crescimento do PIB reflete, de imediato, no aumento da renda, do emprego e dos produtos e serviços. A fraude implícita nesse conceito se expressa não na soberania do consumidor, mas, sim, dos produtores. Sendo assim, o PIB mensura o bem-estar objetivo dos bens produzidos, contudo jamais mensurará o bem-estar subjetivo mensurado pelo nível da literatura, da educação do teatro, enfim, de coisa que faz bem ao invisível da alma.
Galbraith enfatiza que grandes da cultura mundial floresceram seus talentos em regiões de baixo crescimento econômico. “A arte de Florença,,a maravilhosa criação urbana que é ´Veneza, William Shakespeare, Richard Wagner e Charles Darwin têm origem em comunidades com um PIB muito baixo.” Certamente, para chegar a tal nível de excelência, esses notáveis criadores não estavam inseridos na filosofia de que o tempo é dinheiro.
A necessidade de vender e controlar o consumidor difere-se do mundo do ócio criativo inerente à construção da verdadeira cultura. E de tudo que se disse, podemos concluir que o crescimento econômico se torna uma fraude inocente? Eis a resposta: o crescer economicamente se atrela ao lado material da vida, a construção da alma expressa em mundos como o das ciências e das artes. Uma nação rica necessariamente não é uma nação feliz. O discurso político do crescimento econômico não implica na busca da felicidade de todos.
Por essa razão, O PIB constitui-se em uma fraude inocente que induz a população a acreditar que o crescimento da economia promove a felicidade de todos, e não só a de alguns que dominam os meios de produção e o controle dos gostos dos consumidores. Nesse sentido, a sabedoria de Galbraith nos ensina que “medir o progresso social exclusivamente pelo volume de produção determinada pelos produtores ̶ o aumento do PIB – é mais do que uma pequena fraude”.
Segundo: a mudança do poder nas empresas
A nova realidade imposta pela globalização da economia vem refletindo diretamente na mudança de perfil de quem deve, de fato, exercer o poder nas empresas. Em um ambiente turbulento, mudanças no meio externo das organizações requerem sólidos conhecimentos inerentes a uma burocracia composta por administradores dotados de uma educação elevada, cujo contexto são necessários inteligência, esforço e especialização. Em um ambiente assim, os proprietários das empresas estão perdendo espaço para os tecnocratas dotados de expertises, com técnicas mais condizentes para lidar com um ambiente que muda constantemente.
Uma maneira de camuflar a perda de espaço dos proprietários expressa-se nos Conselhos de Administração presididos pelos proprietários, mas habilmente controlados pelos tecnocratas. Em situações como essa, o rei reina, mas não governa. Eis aí a materialização visível de uma fraude inocente. Quanto a isso, ensina, o autor, que “a ilusão da administração empresarial é nossa mais sofisticada e — mais recentemente — uma das nossas mais evidentes formas de fraudes”.
Nesse contexto, o escândalo dos milionários salários e a participação nos lucros dos executivos, como foi o caso da empresa de energia Enron e da falência das Lojas Americanas, evidenciam a face de empresários que se apropriam de lucros exorbitantes às custas da falência das empresas.
Creio que podemos encerrar a ideia da pouca influência do Conselho de Administração no contexto em que o poder está com os administradores, como evidenciado pelo autor, sobre o assunto, pois, no entender de Galbraith, “O Conselho de Administração é uma entidade adorável, que se reúne com indulgência e respeito fraternal, porém inteiramente subordinada ao poder real dos administradores.”
Terceiro: o perverso mundo das finanças
O mundo das finanças produz fraudes nada inocentes. Um bom exemplo desse tipo de fraude se dá no momento que o preço pago por furtos, mudanças ambientais que a empresa não prevê, mas que a companhia tem arcar com os custos.Nesse contexto, a fraude inocentemente aceita é sempre a mesma: redução drástica do quadro funcional, ou seja, daqueles que menos culpa têm pelos eventuais erros. Em situações como essa, a corda invariavelmente arrebenta do lado mais fraco. Nesse sentido, a perversidade financeira alia uma melhor perspectiva financeira com um certo número de demissões.
Falência das Americanas e reestatização da Eletrobrás
Creio, ao findar os estudos de Galbraith, podemos apontar alguns aspectos que revelam que a falência das Lojas Americanas se constituiu em uma tragédia mais que anunciada ao longo dos anos, em que os fornecedores foram sendo paulatinamente asfixiados em prol do aumento da lucratividade. E isso só ocorreu porque o poder estava, verdadeiramente, na mão dos administradores, que distribuíam bônus milionários aos executivos. Essa distribuição de bônus milionários só foi possível pelo fato de a administração ter o amplo domínio da empresa. Sendo assim, a aparente legalidade das fraudes inocentes legalizava a imoralidade dos bônus milionários.
O escândalo de 20 bilhões de reais fere a reputação de Jorge Paulo Lehmann, Beto Sucupira e Marcel Teles. Na condição de apologistas da boa gestão, o grupo 3G terá sérios problemas a encarar, pois, como em uma típica briga de cachorro grande, terá de enfrentar a ira dos grandes bancos que lhe emprestaram verdadeiras fortunas.
Como se não bastasse, o governo Lula confrontar-se-á com um enorme desafio político para reverter a privatização da Eletrobras, cujo controle acionário encontra-se nas mãos do grupo 3G. Reestatizar a empresa holding do setor elétrico nacional, todavia, é uma questão de soberania nacional!
Trechos do livro de John Galbraith
1 — “Nos últimos anos, as remunerações aos executivos ,assim aprovadas ,chegaram a milhões de dólares anuais, conforme já se disse, num ambiente em que fazer dinheiro não é algo malvisto.” ( Autor critíca a ganância dos executivos.)
2 — “O poder na empresa está com a administração—uma burocracia que controla suas funções e compensações, que podem chegar às raias do furto. Isso fica totalmente evidente e em ocasiões recentes tem sido chamado de “ o escândalo das empresas” (O exagero dos bônus dos executivos.) Esta é , sem dúvida, a mais conhecida das fraudes inocentes. ( Autor critica executivos que estabelecem suas próprias remunerações.)
3 — “ Quanto maior o número de dispensados,melhor parece a perspectiva financeira. Ninguém é demitido,mandado embora;em vez disso, há uma edificante alusão a ir cuidar da família,do lazer,das alegrias domésticas.” ( Autor aponta para o lado eufemístico da demissão. É o tal negócio: a corda sempre arrebenta do lado mais fraco).
4 — “A ilusão da administração empresarial é nossa mais sofisticada e—mais recentemente—uma das mais evidentes formas de fraude. […………..] O proprietário, o acionista, em geral são reconhecidos,até aplaudidos ,mas não têm,evidentemente, qualquer papel executivo. ( Mais uma fraude inocente apontada pelo autor: o rei reina, mas não governa).
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros que versam sobre o assunto energia ,política e literatura.