A força das palavras de James Baldwin
02 dezembro 2017 às 09h59
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Escritor americano, negro e gay numa sociedade racista e homofóbica, foi um dos mais sagazes de seu tempo; sua literatura mostrou engajamento, mas foi além
Sexta-feira passada fez 30 anos da morte de um dos escritores mais sagazes da literatura americana, James Baldwin (1924 – 1987). O documentário “Eu Não Sou Seu Negro”, lançado no começo deste ano, dá mais ou menos o tom de sua capacidade de debater assuntos espinhentos, como o racismo, em alto nível, raramente perdendo a frieza.
O filme se baseou num roteiro que Baldwin havia escrito para outro documentário intitulado “Remember This House”, que ele mesmo dirigiria, sobre a morte de seus três amigos, vítimas do ódio racial nos Estados Unidos, Medgar Evers (1963), Malcolm X (1965) e Martin Luther King Jr (1968). Mas não deu tempo, Baldwin acabou falecendo antes. Trinta anos depois, o diretor haitiano Raoul Peck reaproveitou o texto, catou vídeos de entrevistas, debates e depoimentos do escritor nova-iorquino e fez o documentário.
A tese geral de Baldwin é a de que pretos e brancos precisam se entender. Um não tem de querer matar o outro. Uma vez que os brancos têm o poder, as ferramentas de poder, a descrição das leis, os homens da lei, o dinheiro, as estruturas sociais, as políticas de educação, os governos, tudo está com eles desde sempre, eles é que precisam analisar o ódio contra os negros e sua dificuldade de aceitá-los num projeto de nação.
Assistindo ao filme, quem não consegue compreender a tese de Baldwin só por meio dos argumentos que puxam referências históricas e de convívio, basta ouvir as palavras, enquanto vê imagens de negros sendo espancados ou humilhados por brancos passando na tela. A sensibilidade encarrega de mostrar a força da obra. A falta dela fará emergirem falsos silogismos em torno de tatibitates e raros contra-argumentos que mereçam ser ouvidos.
Ritmo
O debate no documentário de Raoul Peck se refere ao conflito racial nos Estados Unidos, mas serve também para certos pontos da discussão similar no Brasil. Baldwin, no entanto, vai além do conflito, e é um dos autores mais emblemáticos quando o assunto gira em torno de diferenças. Era negro e gay numa sociedade racista e homofóbica.
Sua literatura tem qualidade para estar acima de qualquer engajamento, mas carrega a voz desses grupos. Seu livro “Giovanni”, com protagonista homossexual, é considerado por alguns críticos como um dos 500 romances mais importantes de todos os tempos.
Ao pousar acima do engajamento, o que permanece de mais grandioso em seus romances é a música como instrumento de conscientização. Todo poeta sabe o quanto a poesia pode ser persuasiva, se o ritmo dos versos forem altivos. Na vida, cada um tem seu ritmo, e à medida que vai adquirindo experiência sensível, vai compreendendo o significado dos códigos sociais e que tipo de música se toca, que tipo de dança se dança.
A música, a musicalidade, a sonoridade, tudo isso é muito usado no interior da prosa de vários autores. A literatura de Baldwin nos faz perceber a importância disso para a ordenação de nosso próprio interior. Não importa se o leitor é negro ou não, mas, em sendo, a identificação com o blues e o jazz pode ser o passo para a conscientização de que suas raízes continuam oferecendo uma seiva poderosa.
Outros autores negros semelhantes, no tocante ao ritmo e à conscientização, são Ralph Ellison, Alice Walker e Toni Morrison (Prêmio Nobel de Literatura). William Faulkner, um dos maiores autores americanos de todos os tempos, branco, também guiava sua literatura pela marcação do ritmo do Sul.
A música, a musicalidade, a sonoridade, tudo isso é muito usado no interior da prosa de vários autores. A literatura de Baldwin nos faz perceber a importância disso para a ordenação de nosso próprio interior”
Diferenças
No romance “Nessa Terra Estranha”, Baldwin cria uma música triste saindo do ritmo das frases, cuja tonalidade jazzística o leitor logo percebe. A narrativa começa mostrando um Rufus Scott – protagonista e narrador – acabado, decaído, perambulando pelas ruas noturnas de Manhattan, e sentindo a desgraça de seu mundo.
Músico de jazz, que toca na noite de Nova York, Rufus fala do ritmo dentro do qual o negro nasce. Ele quis fugir desse ritmo. Na verdade, quis fugir de sua condição de negro. Atravessou o país para servir a Marinha americana no Pacífico. Mas logo quando voltou descobriu o valor de sua gente, deu-se conta da beleza que seria, não fosse a opressão do poder dominador dos brancos.
Enquanto narra, está em desgraça, mas sete meses antes, havia conhecido uma loira, Leona, num bar no Harlem. Foi quando tocou pela última vez. Na ocasião, era primavera. Ele estava agora em um outono a caminho do inverno. Viu em Leona um dos párias do Sul, uma mulher casada que fugiu do marido por causa dos maus tratos. E a levou para uma festa.
Ele gostava dela por uma estranha identificação entre os marginalizados. Gostava de “seu sorriso doce e triste de pária branca”, dizia. Obviamente, isso diz alguma coisa da ideia de amor entre as diferenças de Baldwin. Mas a construção dessa narrativa mostra uma singularidade, uma maneira de ver o mundo peculiar. Se os negros não podiam se misturar aos brancos pelo topo do poder, pelas barreiras que os impediam de chegar lá, pelo menos podiam fazer isso pela base da marginalidade.
Em todo caso, Baldwin não é romântico. Sua literatura expõe as fraturas das relações humanas e o fardo da memória racial, com os rancores fincados na alma. Durante o sexo com Leona, quando os dois gozam, elementos da consciência negra, ou o clamor do choque étnico, surgem com um tom áspero na narrativa. Rufus sente jorrar dentro dela “o suficiente para cem pequenos mestiços”, e lhe diz: “Não sei o que irá dizer ao seu marido quando voltar para casa com um nenezinho preto.”
Há uma violência brutal nesse súbito pensamento de Rufus, no decúbito do sexo, que nos joga para a realidade imediata. As relações nunca são fáceis, muito menos quando há diferenças montanhosas a serem vencidas. Nem Baldwin conseguiu subir tão alto para vencer essa barreira. Refugiou-se em Saint-Paul-de-Vence, na França, onde morreu no dia 1º de dezembro de 1987. Nos últimos anos, o conflito racial aumentou nos EUA. Mas a literatura (como música) de Baldwin permanece como uma luz.l