“Flecha”, de Matilde Campilho, representa sofisticação apurada, traduzida em simplicidade e surpresa

14 fevereiro 2023 às 08h16

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Edmar Monteiro Filho
Em meados do ano passado, recebi convite para ministrar uma disciplina sobre o gênero romance no curso de Especialização em Escrita Criativa, da PUCC. A indicação partiu de pessoas muito queridas: Cris e Pedro Marques, ambos professores de literatura. A princípio, o desafio me pareceu grande demais para meus conhecimentos. Pouco havia estudado a estrutura do romance, sua teoria, muito embora sempre tenha sido um grande leitor do gênero. Outro obstáculo seria a inexperiência didática em cursos de especialização. Mesmo assim, fiquei tentado a aceitar o desafio, tendo em vista o enfoque da disciplina, voltada para a criação de textos. Essa estrutura permitiria usar alguma prática adquirida na coordenação de oficinas literárias. Por fim, inseguranças à parte, prevaleceu a ideia de aproveitar a oportunidade de aprendizado.
Como a proposta da disciplina era exercitar a criatividade dos participantes com foco na criação de romances, de pronto as leituras e estudos necessários para a preparação das aulas trouxeram benefícios significativos, que já comecei a exercitar em meus escritos. Mas talvez o mais difícil seja mergulhar nas questões mais técnicas, por assim dizer, para logo esquecê-las, durante o processo de criação. Há que apreender o teórico para fazê-lo desaparecer em nível consciente, porque permitir que o aparato técnico fique evidente no texto literário equivale a deixar à mostra alfinetes e alinhavos em um belo vestido. Claro que a experimentação livre na obra de arte não proíbe exibir o esqueleto das construções, mas não se pode permitir a confusão entre o deliberado e o descuido.

À parte os ganhos para minha atividade como escritor, essa breve, mas intensa experiência, possibilitou ainda o prazer da leitura e releitura de grandes romances, bem como da convivência com o professor Renato, coordenador do curso, dando lições de grande paciência para com minhas deficiências. A turma, pequena, mas participativa, ensinou-me bastante, especialmente quanto à diversidade de olhares em relação ao conteúdo. Eram advogados, jornalistas, professores de letras, publicitários, gente de distintas áreas, que trouxeram seu conhecimento para um debate muito produtivo. Em meio a esse grupo tão heterogêneo, de tanta gente bacana, a querida Ana Carolina — ou Carol Ana, por preferência — ainda me trouxe uma bela surpresa: “Flecha” (Editora 34, 352 páginas), livro da autora portuguesa Matilde Campilho, de 41 anos. Os melhores presentes são mesmo aqueles que nos convidam a pensar.
A leitura das considerações introdutórias ao livro trouxe-me à memória os primeiros versos de “Canção Afirmativa da Dúvida”, do poeta Marcus Lessa: “Há em mim dois poetas / um arqueiro / outro a seta…”. O poema alude à sintonia buscada por meio da arte do arqueiro zen, uma sintonia perfeita, que permitiria manejar o arco e atingir o alvo quase que naturalmente, sem nenhum esforço físico ou mental. O arqueiro, esvaziado de si, torna-se ele mesmo a ação que pratica. A autora se refere às jaculatórias, brevíssimas orações lançadas ao alto como flechas de fé, indo direto do coração do homem ao coração de Deus; sua brevidade é força concentrada, rapidez, precisão: “Num segundo vão da terra ao céu” como “dardo ou flecha despedida”. A definição mais adequada para os mais de duzentos textos que compõem “Flecha” parece surgir da aglutinação dessas ideias: são verdadeiras “jaculatórias literárias”, setas atiradas, mas são também o arco e a flecha do arqueiro, gesto, percurso, alvo fundindo-se num único objeto de enorme e sutil energia.

Esses episódios recortados, descrições sintéticas — os textos mais longos possuem menos de duas páginas — são como encontros fortuitos, meros vislumbres de intenções. São fotos de enquadramento impreciso, soando a distração, incompletude: “Numa casa há muito abandonada, pequenos pedaços de poeira vão voando sobre as coisas”; “Perante a grandiosidade do dia inteiro, Ernesto tira da cabeça o chapéu de couro e encosta-o ao peito”; “O mundo inteiro está coberto de gelo, mas ele não sabe. Ou talvez saiba”.
Passar desatento por essas páginas é enorme desperdício. A potência narrativa concentrada nesses breves flashes é infinita, justamente porque convida a compor estratégias, enredos, cenários, personagens, vidas. Cada um desses fragmentos é o arco, o risco do erro e do acerto, é o alvo e a flecha.
Estímulo aos músculos flácidos da imaginação, “Flecha” representa a sofisticação mais apurada, traduzida em simplicidade e surpresa. É leitura que passa veloz pela atenção, enquanto, imperceptivelmente, o tempo se distende. Que melhor antídoto para toda ansiedade e pressa?
Edmar Monteiro Filho é crítico literário.