Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

“Disse o Senhor a Satanás: eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a tua mão. Jó 1:12.”

A lenda do Doutor Fausto surgiu na Alemanha, na Idade Média, inspirada na vida real de um alemão muito bem-sucedido, cujo grande sucesso em todos seus empreendimentos levava o povo a crer em um pacto entre ele e o diabo.

Não demorou para que essa lenda, que tanto povoava o imaginário popular, saísse da esfera comum e entrasse para as páginas da literatura.

Coube ao grande escritor inglês Christopher Marlowe (1564-1593), comumente elevado à mesma categoria de Shakespeare (1564-1616), escrever um drama teatral — “A Trágica História da Vida e da Morte do Doutor Fausto”, baseado na popular “História do Dr. Johann Faustus”. O sucesso foi muito grande e a peça foi encenada Europa adentro.

Pertencente a uma geração de escritores brilhantes e à escola romântica, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), considerado o mais importante escritor alemão, baseando-se também na antiga lenda, escreveu o seu “Fausto” (Autêntica, 574 páginas, tradução de João Barrento), que se tornou sua obra-prima, seguida por “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, seu famoso romance. Ainda na infância, Goethe assistiu à apresentação da peça de Marlowe.

A atração que o tema exerceu sobre os escritores fez com que, no século XX, outro grande escritor germânico se debruçasse sobre a instigante história e escrevesse seu último grande livro, publicado em 1947. Trata-se do notável escritor, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1929, Thomas Mann (1875-1955), autor de “A Montanha Mágica”. Seu livro, “Doutor Fausto”, apesar de diferenças de conteúdo, mantém o elo do pacto diabólico.

Em 1890 o escritor e poeta irlandês Oscar Wilde (1854-1900) lança seu único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, também na esteira da influência do icônico “Fausto”, de Goethe. Dorian vende sua alma ao diabo em troca da juventude e beleza eternas.

“Fausto”, de Goethe, é uma tragédia, dividida em duas partes, que foram escritas em épocas distintas. Além de ser uma peça teatral, foi idealizada em forma de poema. É uma obra de dramaturgia e de poesia, saída da pena do grande poeta e dramaturgo alemão.

O tema, macabro e divino, humano e sobrenatural, permanece como assunto de interesse da humanidade, que tenta desvendar os mistérios que há entre céu e inferno e entre o homem e o poder soberano de Deus. É a ingente luta maniqueísta, que procura manter a soberania das forças do bem e não ser suplantada por Satanás e suas hostes que, no entanto, saem-se como vitoriosos nas histórias fáusticas.

O ponto nevrálgico da peça e sobre o qual ela se desenvolve, do começo ao fim, é o pacto feito entre Doutor Fausto e Mefistófeles. Um pacto de sangue. Fausto é um intelectual, versado em Filosofia, Medicina, Jurisprudência e Teologia, uma formação ecumênica e enciclopédica, propiciada às elites de sua época. Sua sede do saber levou-o aos domínios da magia “para ver se por força da mente tanto mistério se abre à minha frente.” Um homem respeitado, em torno de 50 anos de idade, mas insatisfeito com a vida que levava. Queria mais, muito mais. O trato com o diabo prometia-lhe 24 anos de vida plena nos quais todas as suas vontades seriam satisfeitas. O acordo entre eles foi feito dentro do concerto universal entre Deus e seres angélicos, com Mefistófeles. Diante das queixas de falta de novidades, do demo, o Criador lhe pergunta se já conhecia Fausto, o doutor, ponto de partida para a procura de seu novo entretenimento.

Fausto é um Jó às avessas

Relato semelhante é encontrado no Livro de Jó, no Antigo Testamento. Homem reto e temente a Deus, muito rico em bens e graça, o Senhor coloca Jó à mercê de Satanás, dizendo a este: “Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem”. Seus sete filhos e três filhas morreram; ele perdeu todos os seus bens, seu corpo ficou coberto de chagas, mas Jó não perdeu a fé. Tudo lhe foi sobejamente restituído.

O Livro de Jó é considerado por muitos teólogos não como uma história verídica, mas como uma parábola de grande riqueza poética, na qual se questiona o poder sapiencial divino e sua onisciência, o senso de justiça e a submissão do homem. Nada acontece sem o conhecimento de Deus e sua aquiescência.

Goethe: o William Shakespeare da Alemanha | Foto: Reprodução

Os problemas metafísicos estão presentes em “Fausto”, e é dentro desta orientação que se desenvolve a tragédia. Fausto é Jó às avessas. Aceita as condições de Satanás, desde que suas vontades sejam realizadas. A procura pelo domínio do conhecimento e do poder leva Fausto a consequências funestas. Ganha juventude, amores, conquistas sexuais, fortuna e poder político, mas atrás de si deixa um rastro de morte e destruição. A mentira e o engano são as armas usadas por Mefistófeles. Satanás, claro, é o rei da mentira.

Uma sociedade consumista como a nossa e eternamente insatisfeita, cujos anseios pelo novo e cujos objetivos são continuamente superados em curto espaço de tempo e substituídos por outros, personifica bem os valores do Doutor Fausto. “Fausto” representa a insatisfação humana e a busca desesperada pelo prazer, não importando o preço a ser pago. Nada diferente do mundo contemporâneo ou ad aeternum.

Para o diabo, tempo e espaço não representam obstáculos. Para satisfazer a Fausto, Mefistófeles promove o encontro dele com Helena de Troia, personagem mitológica e que supostamente viveu há 800 anos a.C.  Ele usufrui da deusa da beleza e tem com ela um romance e um filho.

A Fausto tudo foi concedido, faltava-lhe apenas dominar a natureza. Já no posto de imperador, manda os empregados construírem diques, para conter a força do mar, na tentativa de se tornar senhor das forças da natureza.

Como julgar o Doutor Fausto? Seus erros e pecados fazem-no merecedor da condenação ao fogo do inferno, como ensina a Bíblia. Outrossim, sua ânsia pelo conhecimento poderia amenizar o teor maléfico de seus atos. A responsabilidade de Fausto passará pelo embate entre as ideias da predestinação e a do perdão e misericórdia divinos, considerando-se que ele foi entregue por Deus a Satanás. O livre arbítrio deve ser considerado. O destino de sua alma está explicitamente declarado na tragédia, e pode surpreender a muita gente.

Marina Teixeira da Silva Canedo é poeta, cronista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.