Escritor Nequito, professor da UFG: tempo e temporais rugindo na memória
20 novembro 2022 às 00h00
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Itaney Campos
Especial para o Jornal Opção
À guisa de discurso, a ser proferido — como proferiu — na sessão inaugural de sua integração à Academia Goiana de Letras ( AGL/GO), o professor Manoel Bueno de Brito, o Nequito, poeta de nomeada, constrói, ou reconstrói, não uma peça de retórica, mas um texto de surpreendente carga literária, a que dá o título de “Do tempo ao temporal”, reprisando nele, de certa forma, a intrigante beleza que deixara impregnada em “A Serra no Vão dos Rios”, narrativa “sui generis” publicada em 2019, às vésperas do abismo da pandemia que aterrorizou o mundo. Em “Do tempo ao temporal” o escritor mergulha no universo da sua infância de menino do interior, filho de pais humildes, rurícolas, mas esclarecidos e determinados, numa cidadezinha que respirava os valores da cultura rural, os hábitos da roça, os costumes da fazenda.
Nequito nos surpreende, uma vez mais, com uma narrativa de alta voltagem literária e difícil classificação em termos de gênero literário, por reunir poesia em prosa, considerações filosóficas instigantes e densa criação ficcional, com pitadas de ironia e argutas digressões, emocionando o leitor atento em face da fascinante e polissêmica teia literária que urde em seu livro. Aqui percorre o tempo, como um cavaleiro moderno, um Quixote de olhos bem abertos para o mundo, a quem dá estocadas de ironia, ora leves, ora acerbas, beirando o sarcástico, abrindo-lhe as feridas, com o claro intento de lancetá-las, a ferro e fogo.
Em outros momentos, no curso da narrativa de um episódio da humilde infância, transpõe-se, em lance quase mágico, proporcionado pelo absoluto domínio das palavras e seu conhecimento erudito, para uma passagem ou ocorrência inserida nas narrativas universais, criando um link que conecta fatos de sua meninice rural aos contos e cantos da literatura mundial.
Assim, o escritor transita entre poemas de Carlos Drummond de Andrade, citações de James Joyce, excertos de Poemas de Verlaine e versos de Tião Carreiro e Pardinho, Guilherme Arantes e Chitãozinho e Xororó.
A trama, centrada no registro de reminiscências, é entrelaçada de reflexões, observações, denúncias e considerações sobre a sociedade e o homem nela inserido, focando as contradições e perplexidades próprias da era contemporânea, sobremodo da realidade brasileira.
O tempo não é o cronológico, mas o subjetivo, e as propostas e relatos revestem-se às vezes de alta complexidade, porque engendradas sob o prisma filosófico e sociológico, sem prejuízo do fio das lembranças que as costura e insere no contexto geral da inusitada criação.
Nequito revisita no seu discurso a adolescência nos cafundós da roça, ressignificando as cenas, as relações, as atividades produtivas e o convívio social que marcaram o seu tempo de menino. Insere na categoria do maravilhoso episódios que sob uma ótica burocrática ou de ralo imaginário pareceriam banais ou rotineiros.
Assim é que reconstitui a memória dos objetos da manufatura cultural de Goiás dos anos 30/40 do século passado, como se confere nesta passagem: “Por falar em invenção primitiva, me veio à lembrança o carretão. A impressão que guardei, pela aparência, quando ovo pela primeiramente, foi a de que a roda acabava de ser inventada. Meu pai, sozinho no serviço de construir, ali, junto do córrego da Água Fria, a casa da primeira morada, recém-casado que era com Jordana, filha do meu avô, Vicente Rodrigues de Brito… (…) Arrastar, na bruta, as toras de aroeira dos esteios era judiar demais da junta de bois de estimação. O Ximango e o Ritinto. Não demorou até ele lavrar as peças, fazer as rodas e montar o carretão, precursor rudimentar de todos os carros, com o que chegou ao uso providencial da força mecânica, no lugar da força bruta”.
Depois, Nequito descreve, com graça e bonomia, reportando-se às impressões da infância, os primeiros empregos, como quando foi alçado à condição de bibliotecário, mas não apenasmente um auxiliar de biblioteca pública. É impressionante a carga de deliberadas associações, que fazem com que o escritor possa mover-se do local para o regional, do provincial para o universal, fluindo numa linguagem tecida com erudição, com absoluto domínio do vernáculo, desnudando as facetas das palavras, explorando-as em seu significante e seu significado, contextualizando-as, com diferentes matizes, e manipulando-as num jogo, ora lúdico, ora reflexivo, ora sarcástico, a exigir redobrada atenção do leitor para assimilar a extensão conceitual presente no texto.
Poderia ocorrer a alguém, que tivesse acesso ao relato, a impressão de que, pontualmente, se deflagrasse alguma desconexão interna na narrativa, apontando nesse aspecto o retalhamento dos episódios e o trânsito caótico das referências, ocasionando obscuridade, provocando dispersão da leitura.
Uma observação menos atenta apontaria prolixidade interna, decorrente do excesso de entrelinhas, de sinonímias, de duplo sentido e uso da ironia.
Pois o que aos demais possa causar perplexidade, confesso que a mim me provocou admiração, e espanto, pois ao longo do texto o autor destila a sua cultura erudita, marcada pela universalidade, humanismo e atemporalidade.
Aos fenômenos da hipocrisia, ele reserva o sarcasmo; ao fingimento, a ironia; e aos avatares da bondade e da arte, palavras de reverência, citações exemplares e metáforas primorosas.
Na sequidão que desponta, por vezes, em sua história pessoal, Nequito sabe regar a paisagem interior com as tintas do afeto e do reconhecimento, sabe agradecer e sorrir de suas aventuras juvenis e dos seus ímpetos verdolengos. E é interessante e lúdico o jogo que desenvolve, ao entrecruzar, por vezes no entrecho narrativo, cantos e excertos da alta poesia com trovas e versos dos repentistas e cantores do alto sertão, ou das periferias urbanas, sem resvalar para o mau gosto ou o farsesco.
Pode não ter sido o intuito mas o escritor deixa entrever que as manifestações culturais de quaisquer matizes merecem respeito e referências, inserindo-se na grande e trágica e fantástica trama do percurso do homem sobre a face do planeta, ao longo de gerações.
Às vezes, o narrador se nos afigura como um profeta bíblico, a lançar expressões coléricas sobre a (des)humanidade predatória, logo adiante, deparamo-nos com um poeta virgiliano a navegar pelos mares das reminiscências, contemplando-se como narciso à beira do lago remansoso da infância, em busca talvez do menino esperançoso e esforçado a debater-se nas profundezas da subjetividade.
Suas elucubrações sobre cultura estendem-se, de forma instigante e curiosa, por vários parágrafos, iniciando-se com a constatação de que “o nome que a alma recebe nas mais variadas formas de presença e expressão da humanidade é Cultura. Ou cultura é como se invoca o espectro (in)corpóreo, ou alma panorâmica, da humanidade, fenômeno em que se entretecem e se inteiram Saber (diverso, amplo, multiforme — de e em qualquer ordem), Técnica, Literatura, Ciências, História, Artes, Pensamento, Memória. Práticas vivenciais de subsistência, sobrevivência, coexistência e convivência: laborais, políticas, sociais. Dom. Crenças. Costumes, Ritos. Aptidão para (‘incrinação’, como sabido e pronunciado). Jeito de ser. Não se exibe, portanto, em pomposa ilustração, ou em vistosa erudição, embora seus respectivos substratos, quando oportunos, não se percam nem as desmereçam (…)”.
Nequito insere notas de bom humor, de afeto, em suas relembranças. Transcreve de forma literal a expressão oral dos seus conterrâneos e contemporâneos sertanejos, num corte marcante do texto, com o poder de surpreender o leitor, pois o que o escritor faz é dar à oralidade o status de expressão digna de registro livresco, despida do caráter folclórico ou vicioso que lhe atribuiu à literatura regional. Sua literatura se transveste, em certos momentos, de textos para os iniciados, tais as preciosidades que nela refulgem. Recortes linguísticos transportam o leitor para tempos antanhos, e ambientes rústicos, revelados nos diálogos com as marcas da linguagem “caipira”.
Não se trata de texto de fácil leitura. Pelo contrário. Sua apreensão demanda constante atenção e reflexão, por vezes, em certos momentos, exige dupla leitura para se apreender de forma apropriada a mensagem veiculada. Não é uma escrita de fácil urdidura, e nem uma leitura de leve realização. O texto corrido, inteiriço, sem subdivisões em capítulos ou títulos, o faz algo árido e, em certos momentos, uma pedreira. Mas de pedras é que se ergue uma catedral. Parece ter sido essa a intenção do escritor: lapidar o texto como se lavra um bloco de mármore até fazer brotar nele a obra de arte. A arte que supera a circunstância, a arte de permanência, a verdadeira produção artística. Literatura liberta da temporalidade, ainda que atravessada por temporais; literatura tecida com martírio, que martirizante é a trajetória humana ao longo do curto tempo de sua existência terrena (outra haverá?).
Itaney Campos é escritor e desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás. É colaborador do Jornal Opção.