Escritor como personagem (29): Júlio Verne — Verne como um “Betta”, de Marcos Vinicius

01 novembro 2021 às 18h16

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Ter reencarnado como um simples Betta, apesar do choque inicial, se mostrou algo supreendentemente não tão entediante
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)
Júlio Verne — Verne como um “Betta”
Marcos Vinícius
Quando Júlio Verne morreu, diferentemente do que ele provavelmente conjecturara sobre, Sidarta Gautama, entre outros lamas, não o receberam no céu. Na verdade Julinho, pobre ocidental, nem chutava que o budismo era a verdade espiritual — apesar de seu fascínio pelo diferente. Errou em religião, um fato, infelizmente; mas sobre isso ele não tinha lá muito poder de decisão, é algo cultural afinal. Conquanto que não foi isso que o fez ser “mal-recebido” por “Buda”: na prática, o fato de ter se apegado demais ao mundo material, no caso através da fascinação pela ciência, que fez de fato o continuar castigado no ciclo eterno de renascimento.
Júlio Verne não se iluminou em vida, não meditou o suficiente; e pelo contrário, de sobremaneira exaltou o efêmero e falso mundo físico, viu gloria no domínio da intocável natureza e sonhou com um mundo de máquinas. Logo Verne, tão exaltado pelos humanos — equivocados — “mereceu”, negativamente, renascer; e ainda por cima como um mero simples peixe Betta doméstico. Basicamente, de um gênio da literatura faccionária, a um peixinho de aquário minúsculo.
Mas nem tudo são amarguras, embora os preconceitos nos cerquem. É segredo espiritual, mas verdade é que os Bettas pensam; e tem uma sociedade bem mais complexa e avançada que a humana; mesmo que tudo isso de maneira muda e intangível. Todo Betta aprende, desde tenra idade, através da transmissão de informações via alguma glândula especial, toda história de sua sociedade. Assim, o Betta Verne, ao mesmo tempo de sua senciência, se viu em conhecimento de tudo o que um dia foi e o que era. Portanto, ter reencarnado como um simples Betta, apesar do choque inicial, se mostrou algo supreendentemente não tão entediante.
Sobre a história deles: os Bettas, inicialmente em sua forma selvagem, foram minis guerreiros aquáticos. Extremamente resilientes, foram capazes de sobreviver a ambientes severamente hostis através de especiações distintas e raras. Peixes incríveis: dotados da rara capacidade de “respirar fora d’água”; portadores de um comportamento estranhamente territorial; e reprodutores de um hábito sexual bem excêntrico. Tudo convergia então em prol a um orgulhoso sentimento de “nação guerreira Betta”. Porém, em um momento escuro dessa orgulhosa história inicial; o homem, essa raça cruel e vil, sem espírito e prodigiosamente ociosa, viu nos minis guerreirinhos aquáticos um hábito de diversão.
Os grandes antigos guerreiros foram aprisionados, selecionados artificialmente e enveredaram em duas dolorosas e desonrosas direções: ou feitos de galos de briga; ou ornamentados biologicamente para entreter esquisitos. Verne, infelizmente e para aumento de seu castigo, chegara justo nesse trágico ponto da história Betta. Era um peixe coloridinho, que habitava um aquário minúsculo, imperado por um estranho tirano que usava óculos, aparelho e passava horas de seu ocioso dia olhando peixinhos. Solitário aos olhos humanos, o que restava ao pobre Betta Verne era se comunicar através de seu biológico e não retirado complexo mecanismo de comunicação, que permitia o ter interações com outros indivíduos tais quais em todo o mundo. E assim seguiu a vida a pobre alma de Júlio Verne, num aquário solitário e minúsculo. se comunicando com todo um mundo invisível e mudo.
Nos meios Betta, diferentemente do que se pode pensar da inocência dos peixes, nada havia de pacífico e submisso. Os betas, durante todo esse momento de domínio, protestavam silenciosamente. Por isso acabaram por ganhar fama de agressivos na contemporaneidade; mas o que se passava de fato era um movimento de desobediência civil. Nesse meio revoltoso Verne cresceu e amadureceu. Como boa reencarnação, o peixe herdou o brilhantismo e a imaginação do homem, e adulto, o Betta Verne era um esplêndido pensador.
Um certo dia, entediado e revoltoso, Verne decide concretizar e sistematizar todo seu pensamento. Numa celebre data, que até hoje ressoa na historiografia Betta, o célebre peixe-reencarnação escreve e transmite o “manifesto naturalista”. Neste, ele basicamente revoga a posição original de sua espécie, e clama para que haja um movimento mais ostensivo para o enfim esperado retorno à natureza. Celebremente: “Os homens, complexados e impotentes, precisam de máquinas e tecnologia; nós Betta não, nascemos prontos para no estabelecer sem subterfúgios. Viva a natureza! E se for para viver sem ela, que nos matemos em cativeiro!”.
Pode parecer um pouco agressivo demais, mas desde tal publicação os Bettas confabulam planos estruturados em silêncio. Alguns de fato se mataram, diante a percepção consciente da desonra histórica em que vivem. Esse não era o objetivo de Betta Verne, sim um acidente esperado que ousou declarar. O real fim se faz a cada dia. Cada vez mais os peixes Bettas desaparecem misteriosamente. Aonde estão? O que planejam? São perguntas que só a mente revolucionária, antiprogressista e naturalista de Betta Verne poderia definir com precisão.
A efeito de “spoiler”, como tem circulado pelos meios não convencionais da informação, sabe-se que os fugitivos andam formando revoadas e algo grande está por vir. Steve Spielberg, em sua expedição ao Fosso das Marianas, até chegou a declarar algo interessante. Ele alega, extraoficialmente, ter visto um cardume de Bettas, ironicamente a 20 mil léguas submarinas. Será que, já em breve tempo, os Bettas dominarão o mundo e o “retornarão à natureza”?