Escritor como personagem (26): James Joyce e eu, em boas companhias, de Valdivino Braz

01 novembro 2021 às 15h26

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Penso que Joyce chega a ser um desperdício, seja pelas limitações do nosso alcance, seja pelo excesso de talento joyceano, com uma linguagem possuída de si mesma
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)
James Joyce e eu, em boas companhias
Valdivino Braz
Minha história com o renomado escritor irlandês James Joyce é real, então não estarei aqui a mentir. Ainda que tarde, coube-me conhecê-lo pessoalmente, posso dizer assim. Nosso primeiro encontro, meio que por instância do acaso, recordo-me bem, se deu ainda lá nos anos 70. E onde foi que me encontrei com Joyce? Em Goiânia, acredite. Possa que isso, dizê-lo dessa forma, pareça surreal, ou espectral, posto que Joyce, que nasceu em 2 de fevereiro de 1882, em Dublin (Irlanda), faleceu em 13 de janeiro de 1941, em Zurique (Suíça); já eu nasci um ano e dez meses depois de sua morte, em novembro de 1942, quando o mundo se despedaçava em guerra, com a loucura do abominável Hitler.
Não sei se por conta ou possível influência dos abalos da guerra sobre mim, virem dizer, vez e outra, que sou louco; e não creio que eu tenha peças soltas chacoalhando na cachola, se bem que, vez em quando, ouço estranhos zumbidos. Certo é que alguns veem como loucos aos poetas, sendo voz corrente que uma tênue linha separa a lucidez da loucura. Eu, hein? Bato com os nós dos dedos na madeira. Isola! Bem pode que louco é quem me chama e se acha, a si mesmo, normal. Tem gente que “se acha”, pensa que é mas não é. Conquanto diferentes, com nossas diferenças e desavenças, somos todos iguais, ainda que não necessariamente os mesmos. Somos o que somos: a humanidade, todos nós, sem exceções.
Ocorre-me a cena em que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche — oriundo do vilarejo de Röcken, na então Prússia, hoje Alemanha —, abraçou chorando um cavalo que estava sendo espancado na rua; gesto esse, piedoso, de Nietzsche, visto como um claro indício de sua loucura. Então internaram-no, a ele que, de fato, morreu louco, aos cuidados de sua mãe, em Weimar, Alemanha. E o sábio Nietzsche não foi muito feliz com as mulheres, entre elas a russa Lou Salomé, filósofa, poeta, romancista, psicanalista, a quem Nietzsche, também poeta — que falava como falava Zaratustra —, declarou seu amor mas viu-se preterido em favor do amigo deles, Paul Rée. Nietzsche se apaixonou também por Cosima, filha do pianista húngaro Franz Liszt, que era casada com o compositor Richard Wagner. Não desejarás a mulher do próximo, admoesta, em vão, o nono mandamento.
Mas, sim, continuemos com James Joyce. Nosso inusitado encontro, eu dizia, se deu na capital goiana — Joyce vir de tão longe para encontrar-se comigo! Foi na Livraria Cultura Goiânia, do livreiro e apicultor Paulo Araújo, instalada na Rua 7, próximo do então famoso Café Central. Bem ali, na referida livraria, o profícuo e prolífero encontro — proveitoso e fecundante, redunda dizer —, entre mim e Joyce, o gênio criador do romance moderno, posterior a Proust e outras sumidades literárias de época e de sempre.
Pois bem. Adentrei a Livraria Cultura Goiana e, olhando em volta, dei com os olhos em Joyce, ou melhor, no “Panaroma de Finnegans Wake”, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, enfeixando fragmentos da mais ousada — “ilegível” para muitos — obra de Joyce. Olhei, folheei, li um pouco dos textos escolhidos pelos irmãos Campos, me interessei e comprei. Começava ali minha panorâmica proximidade com James Joyce. Daí fui lendo tudo dele e sobre ele: os contos de “Dublinenses”, os romances “Retrato do Artista Quando Jovem” e “Ulisses”, a peça de teatro “Exilados”, os poemas de “Música de Câmara” e Pomas, um Tostão Cada”, e ainda “Giacomo Joyce”, tida como a “obra italiana” do autor. Neste livro, de cunho autobiográfico e considerado como “filho bastardo, fruto de um amor clandestino e de uma fantasia erótica”, Giacomo, professor maduro, expõe, de forma irônica, sua platônica e delirante paixão por uma jovem aluna judia/italiana, de Trieste.
Escrito em 1914, na mesma Trieste, “Giacomo Joyce” espelha um dos temas centrais de James Joyce, que vão do erotismo à fantasia sexual, infidelidade conjugal e sentimento de culpa. Atire a primeira pedra o homem isento de culpa, ou que não tenha apedrejado alguma prostituta, como apedrejada fora aquela citada na Bíblia e salva das pedras da turbamulta por Cristo. “Vá e não peques mais”, disse ele a ela. Simples assim, humana compaixão. Por outro lado, nosso Machado de Assis criou e imortalizou Capitu, “oblíqua e dissimulada, com olhos de ressaca”. Já o poeta Vinicius de Moraes encantou-se com Helô Pinheiro e cantou, no bom sentido musical, com Tom Jobim, a Garota de Ipanema.
À sombra das raparigas em flor, como dizia Proust, e assim como Nietzsche e tantos outros — diz-se que o próprio Cristo com Magdala —, Joyce também gravitou à roda de um rabo-de-saia, como se diz. Começo de seus começos, o seu encontro com a jovem irlandesa de Galway, Nora Barnacle, sua musa inspiradora, que ele conheceu em Dublin e com ela fugiu de sua (deles) terra natal, a Irlanda, e foram viver em outros países: Itália (Trieste e Roma), Suíça (Zurique) e França (Paris). Um felizardo Joyce “flânêur”, se podemos dizer assim, malgrado certas privações de ordem financeira.
Em cartas de amor endereçadas a Nora, vê-se um Joyce sem pudor, com intenso teor erótico e numa linguagem nua e crua — imoral, indecente, obscena, diriam casais hipócritas, do tipo “quem usa, cuida” ou “quem desdenha, quer comprar”. Joyce diz ali coisas cabeludas e sem cabelo. Cartas pelas quais o psicanalista Jacques Lacan lança a questão a saber se Joyce era louco; e o mesmo Lacan arrisca-se a dizer que tais cartas indicam uma relação sexual, ainda que não propriamente dita, mas (ele diz) “uma relação sexual bem esquisita”. Joyce com um palavreado excitado e excitante, diga-se de passagem.
Finalizando com Joyce, antes de vir a conhecê-lo — então eu já havia publicado meu verdolengo livro de contos, “Cavaleiro do Sol” (1977), e ainda não tinha lido nada do irlandês em foco, até me deparar com Finnegans Wake —, vinha eu ali pelos incipientes esboços de uma peça de teatro, intitulada como “A Festa do Morto”. A escrita ia-se escorreita, narrando a morte do personagem (de cujo nome não me recordo, falha-me a memória), após uma farra etílica com amigos e familiares. Consternação geral, e a festa se transforma num velório. Noite adentro, velam o corpo; chorosos lamentos de dor e pesar em torno do caixão. Eis que o morto ressuscita! Espanto, alvoroço e até começo de correria precedem os gritos de alegria. E a bebedeira da festa continua do ponto em que parou. A farra da vida em dobro. Senão quando, o festejado volta a morrer, agora morto de fato, escoiceado por súbito infarto do miocárdio, ou enfarte fulminante.
Minha peça ia terminando por aí, como de fato terminou, jogando por terra, pós-Joyce, meu frustrado intento de texto para teatro. Me dei conta do malogro de minha pobre peça teatral. Diz-se que as ideias estão no ar, que os temas literários se repetem, são sempre os mesmos, e que o que importa é a forma de cada um contar, por assim dizer, a mesma história. Exercitei ali, perante Joyce, minha primeira autocrítica. Então rasguei meus originais sobre a imaginária festa do morto. “Finnegans Wake”, marco da literatura experimental, narra a queda (moral e social), morte e ressurreição de Humphrey Chimpden Earwicker (o herói), dono de um pub em Dublin, após um encontro sexual em um parque da cidade. A heroína, emblemática figura feminina, é Anna Livia Plurabelle, geradora de vida e configurando a própria Irlanda, o Rio Liffey, que atravessa a cidade, e todos os rios, e todos os tipos de mulheres. As benditas mulheres, sem as quais nem haveria literatura que se preze.
Já uma vez escrevi e publiquei que “Finnegans Wake” é um artefato mental de Joyce, estilhaçando o trivial da literatura. Tamanha riqueza para tanta pobreza de leitura, ou de não-leitura, senão que de leitura nenhuma, essa coisa de se dizer que a obra é ilegível ou que não gosta de Joyce. Às vezes (como escrevi) penso que Joyce chega a ser um desperdício, seja pelas limitações do nosso alcance, seja pelo excesso de talento joyceano, com uma linguagem possuída de si mesma.
Valdivino Braz é jornalista, escritor e poeta.