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Nilson Gomes

Especial para o Jornal Opção

Grande parte dos povos originários em todo o planeta foi escravizada em alguma época. No Brasil, desde a chegada dos europeus, a servidão alcançou indígenas, italianos e japoneses, mas nada se compara ao horror imposto aos africanos. Oficialmente, a ignomínia maior na história de qualquer nação foi encerrada no Brasil em 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Sobre esse e outros documentos, a Livraria Resistência Cultural Editora está lançando neste maio a 4ª edição de “Escravidão e Leis no Brasil — Aproximações Jurídico-Históricas”, do professor Ibsen Noronha.

Noronha discute o tema tendo como base a História do Direito, matéria que leciona na Universidade de Coimbra, em Portugal. Foi o efeito de uma queda para o alto. Dava aulas da disciplina na Universidade de Brasília, a UnB. Como algumas de suas opiniões sobre o assunto desagradaram à esquerda, quase hegemônica na academia, sofreu perseguição implacável. Os partidários da ideologia traçaram o destino para seu desafeto perder o que chamam de lugar de fala e o tiro saiu pela cultura: Noronha foi para Portugal e tornou-se professor de Direito na quase milenar Universidade de Coimbra, uma das mais respeitadas do mundo – é o primeiro brasileiro a ocupar o posto desde a Independência, em 1822.

Mesmo com o distanciamento de dois séculos desde o grito de Pedro I montado numa pequena mula às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, há quem julgue o Brasil em estágio igual ao de pré-articulações da Imperatriz Leopoldina e José Bonifácio para libertar o Brasil de Portugal. Se ninguém é contra a independência e há esse estranhamento por parte de quem não estuda a História, imagine em algo tão polêmico como os efeitos da Lei Áurea… Noronha enfrentou a turba. Seu livro não aparenta ser redigido para agradar a militantes – é uma junção de tratados legais, sem tentativa de moldar nem maldar opiniões. Portanto, ainda que passados 135 anos, há quem julgue estar o Brasil na mesma fase de antes da abolição. Alguém mexeu no queijo que essa gente tem no lugar do cérebro. Não se trata de olhar vesgo, é cegueira total, um olho de 7 de setembro e outro do 13 de maio.

Fomentar a divisão do Brasil e censura no Senado

Noronha escreveu “Escravidão e leis no Brasil” em 2010, por ocasião dos debates acerca das cotas raciais nas universidades, a seu ver “opção por parte dos governos no sentido de fomentar divisões no mais profundo da nossa cultura”. Repete a desconfiança de Gilberto Freyre de “a luta de classes se tornar luta de raças”. Para Noronha, “a intuição foi certeira”. Um dos sinais efetivos antecede o conteúdo do livro na segunda tiragem feita em Portugal.

Em nota datada de 17 de fevereiro de 2017, António Carlos de Azeredo, da Editora Caminhos Romanos, informa que o livro havia sido censurado pelo Senado brasileiro. A prova está em ofício da Secretaria de Editoração e Publicações da Casa do parlamento com fac-símile no livro, afirmando o veto após “avaliação quanto ao conteúdo e à conveniência da publicação do livro”. A 19 de dezembro de 2016, o Senado informava que deixaria de editá-lo em suas coleções por “entendimento político de que o momento não é conveniente”. As conveniências dos políticos às vezes são sinônimo de indecências.

O eixo dos argumentos do Senado é atroz: a obra de Noronha seria “capaz de acirrar ainda mais os ânimos nas discussões políticas do país”. Pelo visto, “as instâncias de direção da Casa”, que barraram a luz à obra, não se deram o luxo de sua leitura. Se tivessem apreciado o “trabalho sério, rigoroso e desapaixonado”, como bem o classifica Azeredo, as tais instâncias de censura concluiriam que os textos levam exatamente à margem oposta: a obra combate a divisão. O momento era mais do que conveniente. E continua sendo.

A entrevista, a conferência e os três estudos que compõem a obra não deveriam atemorizar o lado do Congresso Nacional representante das unidades da federação. O que está ali foi inteiramente produzido pelo Legislativo brasileiro, por onde tramitaram as leis que evoluíram até a eclosão da assinada por Isabel a 13 de maio de 1888. Os censores do Senado certamente temiam o que hoje é chamado de lacração, a atividade exercida em bando por desocupados e marginais para conduzir, atrapalhar ou eliminar pessoas e pensamentos. No caso de Noronha, a perseguição fracassou. Assim como caiu para cima no calamitoso episódio em que lhe tolheram a semeadura do conhecimento (foi da falida UnB para a respeitada Coimbra), ganhou seguidas edições no Brasil e na Europa do livro suprimido pelo putrefacto Senado – o de então, como o atual.

Discriminação a quem cedeu trono pra libertar povo

Os tempos continuam terríveis. Na primeira quinzena de abril de 2023, o governo do presidente Lula Silva revogou a Medalha Princesa Isabel e criou o Prêmio Luiz Gama, em homenagem ao jornalista considerado um dos patronos da abolição da escravatura. Gama fez muito por merecer, porém Isabel está em idêntico patamar. Monarquistas e republicanos concordam em uma assertiva: a família imperial perdeu o trono brasileiro em consequência da Lei Áurea.

Noronha narra: “Ainda sob o entusiasmo da grande festa proporcionada pelo fim do cativeiro no Brasil, a filha de Dom Pedro II se encontrou com o Barão de Cotegipe, que votara contra a abolição. Dona Isabel não resistiu e disse-lhe: ‘Então, Sr. Cotegipe, a abolição se fez com flores e festas. Ganhei ou não a partida?’ E o barão: ‘É verdade. Vossa Alteza ganhou a partida, mas perdeu o trono”. Era verdade também.

Havia abolicionista igual a Isabel e seu pai, Pedro II; superior a eles, ninguém. Aliás, além de abolicionista no país escravagista em que imperava, Pedro II era republicano à frente de uma monarquia. Noronha conta que Isabel, segunda mulher a ser chefe de Estado no Brasil (a pioneira foi sua avó Leopoldina), “incentivou os defensores da Lei do Ventre Livre, preparou o ambiente para a Lei dos Sexagenários e assinou a Lei Áurea”, “preparou a vitória da libertação total dos escravos, embora sabendo dos riscos que tal atitude implicava”. Resultado, implicou pra valer: “O trono do Brasil não foi poupado”.

Ao lado de foto da princesa Isabel em página inteira na rica iconografia da obra, Noronha relata uma historieta de impossível apuração. Mas, como diz uma anedota do jornalismo, “quando a versão for melhor que o fato, fiquemos com ela”. Ela: “Membros da Família Imperial contam que a princesa, ao deixar a barra do Rio de Janeiro, olhando a capital do império após o golpe republicano, exclamou, pensando na premonição de Cotegipe: ‘Mil tronos houvera, mil tronos perderia para dar a liberdade ao meu povo!’”.

O mesmo Lula esteve no início deste maio na coroação do rei Charles III, da Inglaterra. Evidentemente, foi convidado pela relevância do país que administra, não por eventual porte de sua figura. O presidente se orgulha de jamais ter lido qualquer livro. Portanto, crê-se que não saiba do parentesco do filho da longeva Rainha Elizabeth II com a filha de Pedro II, maior estadista da História das Américas, celebrado (e até votado) ao redor do mundo, inclusive nos Estados Unidos.

Diferença dos estadistas da Monarquia e da República

Eis o debate do qual correm os que preferiram tirar o emprego de Noronha e a publicação de seu livro: comparado nome a nome, governo a governo, a monarquia goleia a república, a começar da coragem de combater as ignomínias impingidas a suas datas – e o livro é um bom exemplo.

Quando Cabral aportou na Bahia, Portugal já havia comprado ou capturado 150 mil escravos africanos. Em 1455, ano em que o Papa Nicolau (não, não é o do exame, batizado em homenagem a um patologista grego) liberou Portugal para escravizar os não-católicos entre a Índia e o Marrocos, os lusitanos já estavam no tráfico, leiloando seres humanos.

Chegaram ao Brasil 5 milhões de africanos que foram escravizados por brancos, negros e quem mais tivesse dinheiro para os adquirir. Uma inefável desumanidade. Zumbi dos Palmares comprou dezenas. O violonista Francisco Paulo de Almeida, Barão de Guaraciaba (por ser negro, era chamado pelos racistas de Barão de Chocolate), serviu-se de mais de 200. Xica da Silva? Tinha também. Enquanto isso, o imperador pagava pela liberdade de diversos escravizados, libertava os de sua família e só não estendia o benefício aos da Coroa porque eram propriedade do Estado, não dele.

Outra monstruosidade, a eugenia

Após a Lei Áurea, os golpistas que derrubaram Pedro II botaram em seu lugar uma fila de ditadores, alguns deles traíras que pouco antes juravam fidelidade ao imperador. Em seguida, começaram o “branqueamento” da população, uma monstruosidade eugênica, usando os recém-chegados asiáticos, sugerindo casamentos com os recém-alforriados. Se Pedro II ou sua sucessora Isabel estivessem no poder, seria a oportunidade de continuarem a implementar medidas para a ascensão dos negros, que discordariam de seus parentes do século XXI quanto ao conceito da família real. A quase totalidade adorava a princesa Isabel.

Noronha perdeu a batalha quanto às cotas raciais, mas a reedição do livro prova que não perdeu a guerra. Há méritos em ambos, a obra e seu autor. Fui atrás de outras fontes para checar as informações contidas em “Escravidão e leis no Brasil”. Nenhum senão. Divirja-se de Noronha, não dos dados. Na obra, cita frase que diz ter ouvido na Universidade de Coimbra quando fazia pesquisas sobre o Brasil Colônia:

“Deixe qualquer ideologia no momento da busca por fontes. Se não o fizer, acabará por deixar de ver muito do que interessa para a sua investigação”.

Parece ter seguido o conselho, principalmente na versão que contou no “Contributo para a audiência pública no STF acerca das cotas raciais nas universidades brasileiras”:

“Na busca de fontes, deixe de lado todo o parti pris, seja ele idiossincrático, seja ideológico, sob pena de a pesquisa dar à luz um panfleto e você ficar cego para importantíssimas informações”.

A palavra do príncipe

Noronha obedeceu aos dois conselhos semelhantes e não gerou polêmica, somente expôs os frutos de pesquisa e sua interpretação. O prefaciador, Dom Bertrand de Orleans e Bragança, está mais incisivo que Noronha. E quem os monarquistas brasileiros chamam de S.A.I.R, Sua Alteza Imperial e Real, produz frases com lastro na realidade:

“[A Lei Áurea] veio coroar longo processo de debate político, popular e parlamentar”

“No carnaval, o povo descia do morro vestido de príncipe e princesa”

“Quando foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que tornou irremediável o fim do cativeiro no Brasil, houve uma chuva de flores sobre o plenário do Parlamento. O embaixador norte-americano James Rudolph Partridge se achava presente nas galerias e colheu algumas flores dizendo: ‘Vou mandar estas flores ao meu país para mostrar como aqui se fez, deste modo, uma lei que lá custou tanto sangue”.

Óbvio, a legislação brasileira também obrigou seus beneficiários a pagarem na pele e na mente, porque saía sempre com atraso – o Brasil foi um dos últimos países livres oficialmente da servidão humana. Apesar disso, Dom Bertrand lembra:

“Fica claro [pelos documentos legais exibidos na obra de Noronha] o desejo dos legisladores do Império em defender o elemento servil e criar as condições para processivamente libertá-los na sociedade. O êxito dessa política encontrou no fato admirável de que uma parte considerável da população livre no Brasil às vésperas da Abolição era negra ou mestiça, enquanto nos Estados Unidos somente 6% de sua população era ‘de cor’”. Pô, príncipe, “elemento servil” é gente como a gente, tem o sangue vermelho igual a nós, já que azul só o da BIC do Jair Bolsonaro cantada pelo hit da caneta, Manoel Gomes.

Dom Bertrand diz que “a inclusão do negro na vida brasileira foi enormemente usual pela facilidade com que os escravos se tornavam homens livres. E depois proprietários de outros escravos”.

E deu uma de Mãe Dinah certeira: “As ONGs e os setores do governo mais comprometidos com tais organizações incentivam uma política de divisão e ódio racial ao procurarem destruir essa preciosa variedade e harmonia da índole brasileira. Até a figura da Princesa Isabel, a Redentora, vem sendo caluniada, ao mesmo tempo em que promovem enorme esforço para substituí-la pelo Zumbi”.

Disse isso ontem? Poderia, mas o ano da edição constante é 2019. Basta substituir Zumbi por Gama.

A seguir, Dom Bertrand compra briga com os fãs do líder negro:

“Zumbi, chefe tirano e escravocrata do Quilombo dos Palmares, onde está historicamente comprovado que mantinha a escravidão e espalhava terror, mesmo entre os negros”.

Não está mentindo, mas às vezes certas verdades são inconvenientes: os antepassados de Dom Bertrand não emitiam, ao menos não em público, críticas tão severas às lideranças quilombolas, mesmo as merecedoras.

Noronha transcreve texto de José Murilo de Carvalho: “Possuíam escravos não só os barões do açúcar e do café. Possuíam-nos também os pequenos fazendeiros de Minas Gerais, os pequenos comerciantes e burocratas das cidades, os padres seculares e as ordens religiosas. Mais ainda: possuíam-nos os libertos. Negros e mulatos que escapavam da escravidão compravam seu próprio escravo se para tal dispusessem de recursos. A penetração do escravismo ia ainda mais a fundo: há casos registrados de escravos que possuíam escravos”.

Os de Goiás do mesmo jeito, José Murilo.

Machado de Assis, o advogado

O livro tem peças maravilhosas, tanto pelo valor histórico quanto, ao menos em um caso, pela beleza literária. “É a faceta de um Machado de Assis jurisconsulto que se esconde nos trabalhos árduos no ramerrão do servidor público”, apresenta Noronha “o grande mago das nossas letras”.

Fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado era negro (ou “mulato”, para quem ainda não renega o termo) e coube-lhe dar “parecer que envolvia a matrícula de um escravo”, pois “a lei assegurava a liberdade dos escravos que não tivessem sua matrícula feita no prazo”. O texto de Machado é impecável e o resultado, idem: após argumentar com o teor dos artigos e o espírito da lei, que era, “primeiro que tudo, proclamar, promover e resguardar o interesse da liberdade”. Optou pela alforria. “Apreciado pela Seção de Justiça do Conselho de Estado, o parecer de Machado foi respeitado e seguido”.

Século 18: rei de Portugal mandar empossar procurador negro

A finalidade do livro de Noronha era alertar para a divisão do Brasil entre brancos e pretos, fãs de Isabel e Gama, censores e censurados, preguiçosos e pesquisadores. Conseguiu. Em nenhum momento alivia a consciência dos escravocratas, cujos descendentes estão entre nós, nos seus comércios, seus mandatos, suas fortunas iniciadas e fortalecidas em navios negreiros. Escorreito, Noronha repudia a servidão, como está claro na obra.

Fiz, recentemente, aqui no Jornal Opção a resenha do livro “Breve História da Advocacia Pública, do Ministério Público e da Advocacia de Estado — Uma Investigação Luso-Brasileira”, do procurador em Goiás Ronald Bicca, mestre em Direito por Coimbra, onde Noronha é professor. Na obra, Bicca recorda que uma das mais importantes funções de Estado era a de procurador da Coroa. Pois Dom João V, rei de Portugal, deu ordem para que o governador de Pernambuco, Duarte Pereira, empossasse no cargo um negro – era 9 de maio de 1731.

Noronha transcreve: “Sobre dar posse ao doutor Antônio Ferreira Castro do ofício de procurador da Coroa, pelo mulatismo lhe não servir de impedimento. Dom João por Graças de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves d’aquém e d’além mar, em África Senhor de Guiné &. Faço saber a vós Duarte Sodré Pereira, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco, que se viu a carta de vinte e um de Novembro do ano passado, em que me dá conta dos motivos, que tivestes para não cumprirdes a Provisão, que eu fui servido mandar passar ao Bacharel Formado Antonio Ferreira Castro de Procurador da Coroa d’essa Capitania por tempo de um ano, em cuja consideração me pareceu ordenar-vos que com efeito deis posse ao dito Antonio Ferreira Castro, cumprindo a minha Provisão de vinte e três de Agosto do ano passado, tendo entendido que não tivestes justa razão para replicardes a ela, porquanto o defeito, que dizeis haver no dito provido por este acidente excluísses um Bacharel Formado provido por mim para introduzirdes e conservares um homem, que não é formado, o qual nunca o podia ser pela Lei, havendo Bacharel Formado. El Rey, Nosso Senhor o mandou pelos Doutores Manoel Fernandes Varges, e Alexandre Metello de Souza e Menezes, Conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. Joam Tavares a fez em Lisboa occidental a 9 de Mayo de 1731 — O Secretário Manoel Caetano Lopes de Lovre a fez escrever — Manoel Fernandes Varges, e Alexandre Metello de Souza e Menezes — ”.

Nilson Gomes é advogado, escritor e jornalista. É colaborador do Jornal Opção