Nascido em 2 de fevereiro de 1915, José J. Veiga se fez eterno com suas obras; tanto que a Companhia das Letras, uma das maiores editoras do país, publicará o conjunto completo de seus escritos. A entrevista, abaixo, traz um pouco desse grande literato

Se todos cantam a sua ferra, o escritor goiano José J. Veiga optou por cantar a terra de todos, inventando mundos que moram na imaginação, mas teimam em ser um poético espelho a refletir as estranhezas que a realidade disfarça. Foto: Reprodução
Se todos cantam a sua ferra, o escritor goiano José J. Veiga optou por cantar a terra de todos, inventando mundos que moram na imaginação, mas teimam em ser um poético espelho a refletir as estranhezas que a realidade disfarça. Foto: Reprodução

José Maria e Silva

Atravessia do Paranaíba é um sonho comum à maioria dos escritores goianos. Concretizar a travessia do Atlântico foi a ousadia de José J. Veiga. Um dos escritores brasileiros mais traduzidos no exterior, Veiga, às vésperas dos 80 anos, que completa em fevereiro, continua produtivo — dedica-se a traduções e escreve seu novo romance, do qual procura fazer todo segredo possível, como é de seu feitio. O livro deve ser publicado ainda este ano, com o selo da Difel, o mesmo das outras obras do escritor.

Desde que se aposentou como redator na Fundação Getúlio Vargas, Veiga passou a escrever todos os dias, religiosamente. “Escrevo durante várias horas por dia”, conta ele. Antes, sua produção se limitava às madrugadas e fins de semana, quando não estava trabalhando. Ele confessa que tem suas manias. Uma delas é não escrever em computador — prefere a velha máquina de escrever. “Não posso confiar em um aparelho que não conheço”, brinca. Até a máquina às vezes o irrita: “Acho que ela está fazendo barulho demais, então passo para a caneta. Aí, a caneta pega a arranhar. Então, troco de caneta ou volto para a máquina”.

José J. Veiga demorou a publicar seu primeiro livro. Tinha 44 anos quando estreou, em 1959, com “Os Cavalinhos de Platiplanto”. A crítica, capitaneada por Wilson Martins, fez festa. Martins considerou a obra como um novo veio ficcional aberto na literatura brasileira. Murilo Rubião, com os contos de O Ex-Mágico, havia inaugurado o fantástico na literatura brasileira, em 1947, mas Veiga recriaria o fantástico à sua maneira. Um fantástico sem intelectualismos, simples e profundo como a natureza.

O sucesso de crítica veio acompanhado do sucesso de público, como demonstram as sucessivas edições de “Os Cavalinhos de Platiplanto”, “A Hora dos Ruminantes” e “Sombras de Reis Barbudos”. Veiga tomou-se o principal autor da Difel, espécie de carro-chefe da editora. “Todo mês chegam convites de outras editoras que querem publicar meus livros. Mas não saio da Difel. Estou nela há muitos anos. Criei uma relação de afetividade com a casa”, conta o escritor, que recebe cartas de leitores espalhados em todo o mundo. “Tenho cartas até de leitores tchecos”, diz ele, que se confessa emocionado cada vez que descobre a emoção de um distante leitor em face de um livro seu.

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Casado com Clérida, a quem dedicou “A Hora dos Ruminantes” (“com amor”, segundo reza a dedicatória na folha de rosto do livro), José J. Veiga conta que anda muito saudável. “Já fiz viagens recentes de carro a Goiás, eu mesmo dirigindo”, conta. “Só não tenho ido mais a Goiás com a mesma disposição porque a Clérida anda meio adoentada.” Clérida, ex-professora, tem 86 anos. Ela e Veiga, como Carolina Xavier de Novais e Machado de Assis, não tiveram filhos. “Mas não faço minhas as palavras finais das Memórias Póstumas de Brás Cubas. São muito pesadas”, brinca Veiga. Mas, ao contrário de Machado de Assis, que nunca ficou à vontade com personagens crianças e preferiu quase que bani-los de sua obra, engendrando personagens sem filhos ou com filho único, Veiga é um especialista em falar de meninos. Poucos como ele conseguem penetrar com tanta pertinência no mundo das crianças. “Talvez porque a literatura que faço, cheia de indagações a respeito da vida, precise de crianças para protagonizar esse questionamento. O adulto pergunta menos, acha que sabe muita coisa”, explica.

Veiga confessa que é um introvertido. Ao contrário do poeta João Cabral de Melo Neto, que considera “muito seco”, ele adora música: “Gosto de praticamente todos os gêneros musicais, mas tenho predileção pela música de câmara”. Diz que só não gosta de futebol e carnaval, porque (como Schopenhauer) detesta barulho.

Escreve sempre ouvindo música. “Gostava muito de ouvir a Opus 2, uma rádio aqui do Rio, mas ela acabou”, conta.

Tudo que escreve costuma passar por umas quatro ou cinco versões, antes da publicação. “Da primeira vez, escrevo com mais fluência, sem me preocupar muito com detalhes. A primeira versão é mais ara ocupar papel, demarcar espaço. Se uma frase não me agrada, limito-me a sublinhá-la e toco para a frente. Depois, volto cortando, remendando, até chegar ao acabamento, depois de urnas cinco versões”, revela.

Nesta entrevista ao Jornal Opção, que concedeu por telefone na tarde de segunda-feira, 16, José J. Veiga também falou de política, Plano Real e da literatura goiana e disse que, se continuar com a mesma disposição de agora, quer entrar o terceiro milênio produzindo.

Tinha 44 anos quando estreou na literatura, em 1959, com “Os Cavalinhos de Platiplanto”. Foto: Reprodução
Tinha 44 anos quando estreou na literatura, em 1959, com “Os Cavalinhos de Platiplanto”. Foto: Reprodução

O que o senhor está escrevendo?

Estou escrevendo um novo romance, que será publicado pela Difel. Mas não gosto de falar sobre o que estou escrevendo. Inclusive nunca mostro a ninguém meus originais. A não ser para minha mulher, que lê e, às vezes, dá algum palpite.

O senhor tem acompanhado a literatura goiana, o que se tem feito mais recentemente?

Tenho acompanhado, sim, mas muito, porque estou envolvido com o acabamento do meu livro. Acabei de ler há pouco um livro de poemas de Maria Lúcia Félix, “A Vida Dividida”, que achei muito bom. Ela escreve bem. Para mim foi uma grande revelação.

O senhor parece que também gosta dos contos da jornalista e escritora Eloí Calage.

Gosto. Ela escreve bem. Seu livro de contos, que ganhou um concurso no Paraná, é muito bem escrito.

Em sua última entrevista ao Jornal Opção, o senhor disse que está lendo “Sete Léguas de Paraíso”, de Antônio José de Moura. O que achou do livro?

Gostei. É um bom livro, bem escrito. Só acho que ficou goiano demais. Um pouco difícil de ser entendido por quem não é de Goiás e não conhece a história de Santa Dica.

O senhor conhece a ficção de Edival Lourenço e Itamar Pires, que têm conquistado espaço dentro e fora de Goiás?

Ainda não conheço a obra deles, não. Não tive oportunidade de ler nenhum livro deles.

O que o senhor achou da indicação de Bernardo Elis para a Fundação Pedro Ludovico, que poderá ser transformada em Secretaria da Cultura?

Para mim é uma novidade. Não sabia. Mas acho bom, apesar de ser meio avesso a esse negócio de Secretaria de Cultura. Confesso que não sei se a cultura precisa mesmo de um órgão governamental para cuidar dela.

O senhor já foi sondado pela Rede Globo para transformar alguma de suas obras em minissérie ou caso especial?

Não. Parece que minha obra ainda não chegou à Rede Globo. Já fui sondado duas vezes por um diretor de cinema, o Luís Sérgio Terson. Ele queria filmar “A Hora dos Ruminantes”, fizemos um contrato, mas a produtora faliu antes que fossem iniciadas as filmagens. Com isso o contrato venceu. Mas ele renovou o contrato para fazer o filme. Só que morreu num acidente automobilístico antes de começar.

O senhor já foi traduzido para quantos idiomas?

De cabeça assim, eu não me lembro, Mas foram muitos idiomas –– inglês, russo, servo-croata, tcheco, italiano, espanhol, sueco. Só nunca fui traduzido para o francês, não sei porquê.

O senhor fala ou lê em outros Idiomas?

Leio em inglês, francês e espanhol. Quando pego urna tradução de um livro meu em outro idioma, fico me indagando o que está escrito. A edição sueca de um dos meus livros é muito boa. A capa é muito bonita.

Algum de seus livros tem a sua predileção?

Sempre me fazem essa pergunta, principalmente quando vou a universidades. Mas ainda não deixei de gostar de nenhum deles. Gosto de todos. Cada um deles tem uma história, foram importantes num dado momento da minha vida. Agora, o público, sim. Esse parece que tem predileção por três livros meus: “A Hora dos Ruminantes”, “Os Cavalinhos de Platiplanto” e “Sombra de Reis Barbudos”.

Somando todas as edições de seus livros, quantos exemplares o senhor já vendeu?

Há uns dez anos, fiz essa conta. Deu cerca de 500 mil exemplares. De lá para cá, só “A Hora dos Ruminantes” já ultrapassou 20 edições. Acho que, somando tudo, se eu não tiver vendido um milhão de exemplares, estou perto disso.

Se o senhor tivesse ficado em Goiás, como ficaram Bernardo Elis, Carmo Bernardes e Eli Brasiliense, o senhor teria conquistado o prestígio nacional e internacional que conquistou?

Acho que seria mais difícil. Não me considero melhor escritor que eles, no entanto obtive um reconhecimento maior.

Com quantos anos o senhor saiu de Goiás?

Fui para o Rio de Janeiro com 20 anos. Ingressei na antiga Faculdade Nacional de Direito, me formei e passei a atuar na imprensa.

O que motivou sua ida para a Inglaterra?

Vi um anúncio em jornal informando que a BBC de Londres precisava de redator e tradutor para seus programas transmitidos em português. Fiz o teste, passei e fui para Londres. Quando cheguei lá, a guerra estava quase acabando. Tinha planos de ficar apenas um ano. A princípio só pensava em voltar. A vida numa Europa recém-saída da guerra era muito difícil. Mas acabei ficando cinco anos em Londres. Voltei em 1949 e retomei meu trabalho de jornalista.

Em quais jornais o senhor trabalhou?

O Globo foi o primeiro jornal em que trabalhei depois da minha volta. Fui, em seguida, para a Tribuna da Imprensa e, depois, para Seleções do Reader’s Diggest. Trabalhei em Seleções até 1971, quando sua edição em português deixou de ser feita no Brasil para ser feita em Portugal.

O senhor só publicou seu primeiro livro, “Os Cavalinhos de Platiplanto”, aos 44 anos. Quando que o senhor começou a escrever?

Desde muito jovem, quando ainda estudava no Lyceu, em Goiás. Na década de 50, cheguei a mandar três contos meus para uma revista. Eram contos regionalistas. Mas, depois que já tinha entregue os contos, me arrependi. Peguei os originais de volta, dizendo que precisava dar uns retoques importantes e destruí todos eles. Quando fui para o Rio, fiquei briquitando, como se diz aí em Goiás, lutando para ganhar a vida, e acabei adiando um pouco a literatura. Comecei a publicar só em 1958, num suplemento literário do Jornal do Brasil Publiquei alguns contos lá. No ano seguinte publiquei “Os Cavalinhos de Platiplanto”, pela Editora Nítida, que foi muito bem recebido pela crítica.

Quais os seus autores preferidos, principalmente durante seu período de formação?

Havia um gabinete literário em Goiás que me possibilitou travar contato com os clássicos da literatura. Li muito Machado de Assis. Entre os estrangeiros modernos, fiquei entusiasmado com J. D. Salinger. Li muito Guimarães Rosa, sem dúvida um grande criador, um gênio. Nem tanto por “Tutaméia”, que não me agrada muito, mas pelo “Grande Sertão: Veredas”, as novelas de “Corpo de Baile” e “Primeiras Estórias”.

Que avaliação o senhor faz da crítica literária no Brasil?

Acho que está faltando urna crítica atuante na imprensa. Quando comecei a escrever, havia grandes críticos que atuavam constantemente na imprensa, como Otto Maria Carpeaux, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Antônio Candido. Hoje, a crítica está mais restrita aos meios acadêmicos.

Em relação à crítica que é feita por professores universitários, o senhor não acha que, às vezes, ela é técnica demais e acaba se transformando em uma crítica de iniciados?

Concordo. A crítica universitária costuma, de fato, ser muito hermética, escrita numa linguagem para iniciados. Muitos professores ficam obcecados com essa coisa de significante e significado e se esquecem que, na literatura, o prazer é um princípio.

Essa crítica não pode acabar surtindo um efeito indesejado, fazendo com que os alunos dos cursos de letras percam o gosto pela leitura?

Acho, às vezes, que essa crítica muito esquemática dos cursos de letras pode até afugentar o aluno do convívio com a literatura. Muitos professores que se debruçaram sobre a minha obra encontram significados que nunca foram sequer imaginados por mim. Claro que algumas dessas interpretações procedem, mesmo não tendo origem numa intencionalidade do autor. Mas há aquelas que não se encaixam na obra. Há umas doze teses de mestrado sobre minha obra, em todo o Brasil. Uma das análises mais sutis que já fizeram dela é a de José Fernandes. Sempre que sou convidado a dar algum depoimento em universidades, dou uma lida nelas para explicar minha obra com as palavras dele.

O senhor já escreveu poesia?

Nunca escrevi poesia. Gosto apenas de ler Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles e, principalmente, Jorge de Lima. Entre os estrangeiros, leio -muito W. H. Auden. De T. S. Eliot não gosto muito, o hermetismo dele, cheio de citações, não me agrada.

O senhor não citou João Cabral de Melo Neto entre seus poetas prediletos. Parte da crítica o coloca ate mesmo acima de Drummond em qualidade.

Não concordo. Acho sua poesia muito seca. Prefiro a musicalidade de Jorge de Lima, que, para mim, é um dos maiores poetas que o Brasil já teve. Releio sempre “A Invenção de Orfeu”. É um grande livro.

Por que o senhor nunca quis entrar para a Academia Brasileira de Letras?

Não é do meu feitio. A Academia não me atrai. Entendo que há pessoas que gostam dela, respeito essas pessoas, já fui até sondado para entrar na Academia, mas nunca quis aceitar.

A vida literária não o agrada? O senhor não tem grandes amigos escritores?

Tenho grandes amigos que não são escritores. Entre os escritores, sou muito amigo de Autran Dourado, João Antônio e Antônio Callado. Nós nos encontramos sempre, para tomar um chope, conversar, mas literatura não é nosso assunto preferido. É um pouco chato falar de literatura. Preferimos comentar sobre política ou outros assuntos variados.

Em quem o senhor votou na última eleição?

Votei no Lula.

O senhor não acredita no Plano Real?

Tenho minhas desconfianças. E elas são alimentadas por pequenos detalhes. Por exemplo: as primeiras moedas de centavos que foram criadas eram praticamente idênticas às moedas antigas. Isso mostra que quem as criou não estava confiando no plano. Deve ter pensado: “Essa moeda vai ter o mesmo destino das outras, não vai durar muito. Então, não adianta eu me esforçar para criar uma moeda diferente”.

O que o senhor achou do ministério de Fernando Henrique Cardoso?

Espero que ele consiga contornar as influências do PFL. Mas não gostei da criação desse Ministério dos Esportes e da nomeação de Pelé. Foi uma atitude populista, desnecessária. Ele queria ter um negro no ministério, mas acabou sendo preconceituoso do mesmo jeito –– colocou o negro no Ministério dos Esportes.