Entre intrigas palacianas no Império Romano e o proselitismo cristão
30 maio 2021 às 00h00
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Propaganda na Antiguidade: “Não bastava ao imperador propalar suas virtudes em prol da ordenação do Império. Precisava traduzir as virtudes em ações”
Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção
Ana Teresa Marques Gonçalves é uma das mais produtivas e conceituadas pesquisadoras da área de História Antiga no Brasil, autora de diversos artigos acadêmicos e do livro “A Noção de Propaganda e Sua Aplicação nos Estudos Clássicos — O Caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala” (2013). Graduou-se em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1991, defendeu na USP o mestrado em 1997 e o doutorado em 2002.
Professora titular de História Antiga na Universidade Federal de Goiás, é especialista em História Romana, com pesquisas sobre Antiguidade Tardia e dialogando com o período medieval, Ana Teresa Marques Gonçalves lançou em 2020 dois livros, que apresenta nesta entrevista. Cinéfila reconhecida e leitora incansável, também comenta sobre filmes e livros que se passam na Antiguidade Clássica e na Idade Média.
Qual o atual panorama dos estudos acadêmicos sobre História Antiga no Brasil?
Hoje contamos com especialistas em História Antiga em quase todas as instituições acadêmicas de ensino e pesquisa no país. Temos vários Programas de Pós-Graduação em História que estão promovendo a formação de novos especialistas. Contudo, as instituições de ensino e pesquisa públicas estão sendo sucateadas, os profissionais desvalorizados, as bolsas e demais fomentos cortados…Ou seja, estamos passando por um período difícil, em que cabe a nós demonstrarmos nossa importância social à comunidade brasileira. Não há futuro num país que desconhece seu passado. As pesquisas permitem que ampliemos nosso rol de conhecimentos, bem como ajudam a criar uma consciência crítica por parte expressiva de nossos jovens. Sempre me emociona ver o desenvolvimento cognitivo do aluno, quando ele realmente passa a compreender algo que até então ele simplesmente repetia como um saber introjetado.
A sra. foi (e é) uma das principais responsáveis por estabelecer uma base para pesquisas acadêmicas em História Antiga em Goiás, ensinando, pesquisando e orientando trabalhos na graduação e na pós-graduação ao longo de vinte e cinco anos. Como a senhora avalia esse cenário hoje? Quais as principais dificuldades enfrentadas durante o processo? Existe uma característica reconhecível para essa “escola” de pesquisa e ensino?
Comecei a lecionar na UFG em janeiro de 1995, ou seja, há mais de 25 anos. Ainda possuíamos um mestrado em História Agrária. Com a abertura de concursos e a vinda de novos professores, oriundos dos mais diversos rincões do país, conseguimos atrair especialistas em várias áreas, o que me permitiu começar como professora de História Antiga e Medieval e depois assumir somente atividades vinculadas à minha especialidade: os estudos clássicos. Com a implantação de novas linhas para o mestrado, incluindo estudos mais vinculados às Histórias Social e Cultural, e a implementação do doutorado, pudemos passar a formar alunos especialistas em Antiguidade. Sempre houve bastante procura pelos estudos clássicos, visto que gosto de ir formando os alunos desde a Graduação, com o desenvolvimento de pesquisas de iniciação científica e de monografias de final de curso. A vinda de discentes de outros Estados para se pós-graduarem na UFG também garantiu a troca de experiências com estudantes com outras formações acadêmicas, o que só abrilhanta o curso. Hoje a diminuição das bolsas de pesquisa dificulta o desenvolvimento dos estudos. Também temos recebidos cada vez menos verbas para aquisição de livros e de outros materiais de pesquisa. A especialização em História Antiga requereria ao menos um período de estágio no exterior, mas nem sempre este deslocamento tem sido possível. O que nos auxilia muito atualmente é o acesso virtual aos catálogos de inscrições epigráficas, aos catálogos numismáticos, aos documentos textuais em latim e/ou grego, mas nada substitui uma visita presencial a um sítio arqueológico…Fico realmente preocupada com o futuro de meus novos mestres e doutores e sua dificuldade cada vez maior de se encaixar numa instituição de ensino e pesquisa. Sempre me vi como uma multiplicadora de conhecimentos e de oportunidades, mais do que como construtora de uma “escola” aqui em Goiás. Acho fundamental que o aluno escolha seu objeto de pesquisa a partir de seu próprio interesse. Costumo apresentar um cardápio de opções de temas de pesquisa e deixar o aluno se encantar por algum…Por isso, acabo orientando em temas e autores tão diversos. Mas ao ensiná-los também aprendo muito! Adoro me dispor a pesquisar um autor clássico pouco conhecido! Tal empreitada sempre me estimula.
A sra. está lançando dois livros ao mesmo tempo pela Paco Editorial: “Formas de Oposição aos Imperadores Romanos Durante os Governos dos Severos — Uma Análise da Obra de Herodiano” e “A Arte Poética a Serviço do Proselitismo Cristão — Relendo os Poemas de Aurélio Prudêncio Clemente (séculos IV e V)”. O primeiro, sobre Antiguidade Clássica, é a esperada publicação de sua dissertação de mestrado defendida em 1996, enquanto o segundo, sobre Antiguidade Tardia, é o trabalho que apresentou para avaliação da banca de promoção ao cargo de professora titular de História Antiga na Universidade Federal de Goiás. É possível traçar um resumo da trajetória intelectual que a conduziu de uma pesquisa para outra?
Desde criança via minha mãe, também professora, montando aulas, corrigindo trabalhos de alunos. Sempre achei divertidíssimo ajudá-la. Nunca tive dúvidas de que também seria professora. Ganhei de meu avô materno uma enciclopédia chamada “Saga”, que contava a História do Brasil de forma bem simples e divertida, e, ao ler seus volumes como quem lê um romance, encontrei minha área de especialização. Em 1987, ingressei no curso de História na UFRJ (quatro anos de bacharelado mais um de licenciatura), no qual fui monitora de História Antiga II-Roma e produzi uma monografia de final de curso sobre os Breviários de Eutrópio e Aurélio Victor, formulados no IV século. Numa visita a um sebo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, comprei um livro antigo do Gaston Boissier em francês sobre a oposição aos imperadores romanos. Na realidade, ele defendia que não havia oposição organizada aos príncipes. Eu estava começando a planejar meu mestrado na USP e me lembrei que vários soberanos tinham sido assassinados. Algum tipo de oposição tinha que ter se formado. Assim achei meu tema de estudo, que gerou a dissertação publicada somente ano passado. Mas faltava refletir sobre quais estratégias permitiam que os imperadores permanecessem no poder, já que sua ascensão era oficialmente por aclamação e aceite comunitário, e eles eram magistrados a serviço do povo romano. A dissertação havia me possibilitado analisar as formas de se tirar um príncipe do poder de comando imperial; a tese me levou a estudar os sistemas que permitiam a permanência de um imperador no exercício do poder imperial. Nesta ocasião já havia me interessado pela dinastia do Principado romano menos estudada no Brasil: os Severos. A falta de traduções das obras sobre o período para o português havia limitado muito o desenvolvimento de estudos sobre os fatos ocorridos entre os séculos II e III d.C. E a dificuldade de acesso e a ausência de muitos estudos sempre foram afrodisíacos intelectuais para mim.
Seu livro mostra que a dinastia dos Severo foi marcada pela instabilidade política em grande parte motivada pela instabilidade nas relações familiares. Quais grupos sociais se opuserem à dinastia e como essa oposição era articulada?
Karl Galinsky, numa obra intitulada “Augustan Culture”, demonstra como o imperador nunca deixou de ser visto como um magistrado, que precisava do apoio de elementos vindos de vários estratos sociais para ascender ao comando imperial e para permanecer no poder. Não havia eleições como no mundo moderno. A formação de redes de apoio era fundamental para a manutenção do e no cargo. Precisava-se angariar apoios entre os senadores, os equestres, membros da plebe de Roma, elementos oriundos das forças armadas, das aristocracias provinciais. Esta rede de solidariedade era estabelecida e mantida por meio de trocas constantes de benesses. Com a expansão dos territórios administrados pelos romanos, tornou-se cada vez mais importante ter um comandante único que desse a palavra final sobre várias questões. Cabia ao imperador distribuir honras e cargos, definir comandos militares e expedições bélicas, propor novas leis e garantir o cumprimento das já existentes, definir tributos. A ordenação da administração garantia a manutenção da abundância. Interessava aos vários grupos sociais que constituíam a sociedade dos cidadãos romanos a existência de um soberano, de onde emanavam estas decisões. Sua retirada do cargo só podia ser feita por sua supressão capital, visto que como magistratura vitalícia, não havia outra forma de impedimento, por isso o uso do assassinato por meio de motins pretorianos, conspirações palacianas, entre outros expedientes, tornou-se tão frequente. O retorno à ordem se dava pela troca do Príncipe. E a ascensão e a supressão dos imperadores levavam à necessidade de elaboração e reelaboração de redes de apoio e de oposição frequentes. Como demonstra Paul Veyne, no capítulo sobre “O que é um imperador Romano?”, do livro “O Império Greco-Romano”, o inimigo de ontem podia se transformar no amigo de hoje, de acordo com as alianças que se estabeleciam conforme os interesses políticos e econômicos iam se cristalizando. O imperador escolhia alguns senadores e equestres para integrarem seu Concilium Principis, bem como contava com familiares e outros cortesãos no Palácio. Esperava-se que o Príncipe vigente fosse formando seus familiares para serem futuros imperadores, ao lhes atribuir várias funções e cargos públicos. O casamento entre membros de famílias aristocráticas formava mais uma rede de apoio ao soberano. No caso dos Severos, Septímio casou-se com Júlia Domna, filha de um grande sacerdote de Emesa, na rica Síria, porque, segundo Dion Cássio, na “História Romana”, seu horóscopo indicava que seria esposa de um soberano. Septímio nasceu de nobre família norte africana, especificamente de Leptis Magna, na atual Líbia, enquanto sua segunda esposa era oriunda de nobre família oriental. Assim se estabeleciam alianças entre aristocracias provinciais. Eles se conheceram enquanto Septímio rodava o Império em seu cursus honorum, recebendo cargos e funções que o obrigavam a viajar por vários territórios imperiais, conhecendo inúmeras províncias e estabelecendo alianças com membros dos mais diversos estratos sociais. Do casamento, surgiram dois herdeiros: Caracala e Geta, que foram sendo formados para serem imperadores. O problema é que os dois se detestavam, chegando a ocupar alas diferentes dentro do Palácio. Esta instabilidade na família imperial era ruim para o Império, visto que se formaram grupos de apoio e de oposição a ambos. A instabilidade era a mãe do conflito, e este era o pai da desordem. E desorganizar o ambiente público era abrir portas para a diminuição da abundância. Após a morte de Septímio em Eburacum, atual York, na Bretanha, os filhos não conseguiram dividir o poder e Geta acabou assassinado a mando de Caracala. Não bastava realizar obras públicas, expedições militares e\ou distribuir cargos e benesses; era fundamental divulgar estas concessões. Por isso, o estudo das formas de propaganda utilizadas pelos Príncipes para tornar conhecidos seus empreendimentos à frente do comando imperial tornou-se o tema de outro livro lançado em 2013, fruto de minha tese de doutorado.
Dos seis imperadores da dinastia dos Severos, apenas o primeiro, Lúcio Septímio Severo, morreu em função de uma doença. Todos os outros foram assassinados. A maioria em campanha ou vítimas de intrigas palacianas. Isso demonstra que, nestes casos, a oposição meramente política era pouco efetiva ou os opositores participaram de algum modo desses episódios?
Caracala, herdeiro de Septímio, foi assassinado a mando de um de seus prefeitos do Pretório, Opélio Macrino, atrás de uma moita, quando voltava de uma visita a um templo dedicado à deusa Cibele. Macrino acabou assassinado a mando de Júlia Mesa, irmã mais nova de Júlia Domna, que queria colocar seus netos Heliogábalo e Severo Alexandre no poder. O primeiro acabou assassinado por soldados que aclamaram em seguida seu primo, que também acabou morto por membros do exército. O próprio Septímio morreu de Gota na Bretanha, mas não sem antes quase ser suprimido pela ação de venenos e em batalhas contra os Partos. Eram os que mais tinham acesso ao soberano, como pretorianos, cortesãos, familiares e senadores, que conseguiam consumar os assassinatos. A oposição não era ao sistema político em vigor, mas a quem ocupava o cargo de Príncipe, por isso após a eliminação de um imperador, outro comandante era aclamado rapidamente, pois a vacância no poder poderia gerar instabilidade e esta ausência de concórdia era ruim para a administração imperial. Os grupos oposicionistas normalmente integravam membros de vários estratos sociais, que objetivavam ter mais acesso a benesses (cargos, funções, verbas, comandos militares, etc.) pela mudança do governante.
A origem do marketing político
O que hoje chamamos de “marketing político” teve origem na Antiguidade. Os exemplos são os mais diversos. Alexandre Magno espalhou seu rosto pelo império por meio da cunhagem de moedas, prática que se disseminou. Otávio Augusto encomendou o poema épico Eneida a Virgílio para celebrar seu próprio governo, como novo ponto de chegada da história de Roma. Qual era o papel da propaganda durante a dinastia dos Severo?
Não bastava ao imperador demonstrar e/ou propalar suas virtudes em prol da ordenação do Império e da administração das províncias. Ele precisava traduzir estas virtudes em ações, como a realização de construções públicas, de embates militares, de festas em honra às divindades, de viagens para conhecer as aristocracias provinciais etc. E estes empreendimentos deveriam ser conhecidos pelos cidadãos e demais moradores do território imperial. Esta divulgação das ações imperiais denominamos de propaganda. Como o poder do príncipe dependia de suas alianças políticas e econômicas, e estas, por sua vez, dependiam de uma boa imagem, de virtuoso e provedor, tornou-se fundamental que o soberano propagasse suas boas iniciativas à frente do Império e para isso usou-se todos os suportes disponíveis à época: a realização de festas; a construção de arcos do triunfo, entre outras obras públicas que visavam enaltecer a figura do imperador; a emissão de moedas, nas quais, no anverso temos a efígie do soberano, e no reverso a divulgação de um feito; a distribuição de epígrafes; dentre outras possibilidades. Todos os soberanos buscaram usar o que podiam para passarem aos súditos uma imagem positiva de seus governos, buscando garantir a manutenção das redes de apoio a suas gestões.
A dinastia dos Severos caracterizou-se pela presença de mulheres fortes, como Júlia Domna, Júlia Mesa, Júlia Soêmia e Júlia Avita Mamea. Qualquer uma delas poderia ser tão popular quanto Cleópatra. Qual papel elas desempenharam no cenário político da época e como foram descritas por Herodiano?
Temos vários livros dedicados às Júlias…Herodiano e Dion Cássio são alguns dos autores antigos que defendem que algumas delas chegaram a frequentar reuniões do Senado…Sabemos que as duas últimas morreram junto com os filhos e estavam ao lado deles nas tendas das campanhas militares. Domna também acompanhou Septímio em todas as viagens, inclusive nas contendas militares. Segundo Filóstrato, ele escreveu a vida de Apolônio de Tiana a seu pedido. Mesa organizou e financiou o assassinato de Macrino e de seu filho Diadumeno. O relato de Dion Cássio relativo ao assassinato de Geta, no seio de uma conspiração palaciana, no colo da mãe Júlia beira a confecção teatral. Essas mulheres pertenciam à elite síria e foram criadas no interior de uma domus romanizada. Todas se casaram com membros da elite e tiveram filhos e\ou netos que ascenderam ao imperium. Ou seja, antes de mais nada, eram vistas como filhas, mães, esposas de homens relevantes politicamente, e aprenderam a se virar no mundo da corte. Tinham muitas propriedades e souberam utilizar sua riqueza para estender suas alianças familiares/políticas. Cleópatra, além de grande estadista, soube usar todo o poder da sedução oriental, como aparece na “Vida de Júlio César”, na biografia dedicada a este na obra de Suetônio, “As Vidas dos Doze Césares”. As Júlias souberam utilizar todos os instrumentos que tinham a mão: casamentos, maternidade, alianças e riqueza para estabelecerem redes de sociabilidade capazes de lhes dar destaque e prestígio.
O proselitismo cristão dos primeiros séculos se dava, sobretudo, por meio de cartas enviadas a comunidades, como as escritas por São Paulo, ou narrativas em prosa, como os relatos dos Evangelhos. A opção de Aurélio Prudêncio Clemente por escrever o que chamava de “poemas prosaicos” representou uma evolução estética deliberada? Havia uma preocupação de escrever com “arte” para conseguir um melhor efeito de conversão?
A tese que produzi para promoção à professora titular de História Antiga na UFG em 2019 foi um retorno aos estudos de Antiguidade Tardia, que já havia exercido na monografia de final de curso na UFRJ. Conheci os poemas cristãos de Prudêncio ao orientar uma aluna no TCC. O uso de cânones clássicos nos assuntos tratados e nos formatos utilizados pelo poeta cristão me chamou muito a atenção. As referências aos deuses pagãos, a forma poética, a repetição de epítetos, entre outros elementos comuns à retórica clássica numa obra de divulgação dos princípios cristãos necessitava de uma análise. O fato de Prudêncio ser quase desconhecido no país e de sua obra ainda não ter sido traduzida para a língua pátria fomentaram minha vontade de estudá-lo. Da mesma forma como os imperadores romanos buscaram divulgar suas boas obras e suas imagens positivas, os convertidos ao Cristianismo intentavam convencer outros a aderirem à fé cristã e para tanto usaram todos os suportes disponíveis: pregações, cartas, festas, construções, homilias, poemas…Se converter ao Cristianismo era se ocupar com uma nova forma de vida, se dispor a novas práticas sociais e se abrir para um novo imaginário. Mas para conseguir a adesão de prosélitos era necessário usar as ferramentas que se dispunha à época: as línguas vigentes e o imaginário corrente. Para converter era fundamental convencer, e para convencer imprescindível falar a partir do que se conhecia, do que se entendia. Assi, como demonstrou Averil Cameron, a retórica cristã foi construída a partir da retórica clássica, que era compartilhada pelos habitantes do Império. E este novo ideário e as novas posturas deveriam ser propagandeados, divulgados por intermédio de todos os suportes disponíveis. Identificamos na obra prudentina, por exemplo, poemas longos para serem lidos e\ou ouvidos em momentos de lazer; poemas curtos para serem decorados e recitados em vários momentos do dia; pequenas legendas poéticas para imagens visuais. Deste modo, o poeta convertido se coloca como propagador da nova fé, usando sua arte, seu talento, sua técnica para elaborar poesias. Era uma forma de chamar a atenção dos ainda não convertidos e de fomentar a crença dos já conversos. Não se trata de uma evolução, mas da disposição de se usar todas as ferramentas disponíveis para se fazer a obra do Senhor, como eles acreditavam que deveria ser empreendida.
No poema “Peristephanon” ou “O Livro das Coroas”, Aurélio Prudêncio Clemente exalta o papel dos mártires cristãos, comparando-os com heróis pagãos. Como explicar essa aproximação? A imagem dos heróis pagãos ainda exercia muito fascínio e foram utilizadas como ferramenta de conversão? Como isso acontecia?
O herói clássico é antes de tudo um ser atormentado. Lembremos de Aquiles, irado após a morte de Pátroclo; Heitor vendo Tróia ser fustigada pelos Helenos; os trabalhos de Héracles; Odisseus (Ulisses) em seu retorno para Ítaca. Os cristãos também precisavam de exemplos de boas condutas e de contra-exemplos de más condutas a serem evitadas, visto que ainda se compreendiam a partir dos cânones clássicos, ainda vibravam a partir do imaginário latino. Desta forma, parece-nos natural que os escritores cristianizados procurassem criar heróis cristãos tomando como fôrma a retórica clássica. Os mártires acabaram ocupando este papel. Mas não só: percebemos como Eusébio de Cesaréia constrói o imperador Constantino, que permitiu liberdade de culto aos cristãos, como um herói cristão por excelência em sua biografia de Constantino, bem como Lactâncio, na obra Sobre a Morte dos Perseguidores, produz um rol de Príncipes que tiveram doenças e mortes terríveis ao perseguirem os que professavam o Cristianismo. O exemplo é uma arma pedagógica potente! Os mártires, ou seja, os que foram torturados e\ou mortos ao se oporem a negar a fé em Cristo, foram alçados à posição de exemplos de coragem, de determinação, de fé numa outra vida ao lado da divindade cristã. Nos poemas de Prudêncio e nas vidas dos mártires, como a Legenda Aurea, temos acesso a conjuntos de relatos de vidas de convertidos que morreram em prol de uma crença, que serviram de tema e mote para diversas homilias. Com o tempo, passou-se até mesmo a peregrinar para visitar as tumbas dos mártires. De igual maneira, foram se instituindo festejos em memória destes mártires. A recordação constante de sua coragem e prontidão, pois se morria com muita determinação, garantia a construção de uma memória de exemplos a serem seguidos. Não era uma fé suicida, mas colocar a vida a serviço do Senhor. As mártires femininas, por exemplo, tinham seus feitos comparados à coragem masculina e desse modo seu prestígio era renovado. Pertencer a uma família que possuía um martirizado era ter seu status aumentado no seio da comunidade cristã.
Por que a luta do bem contra o mal pela alma humana era considerada por Aurélio Prudêncio Clemente como “a conquista da última fronteira”?
Na poesia prudentina, a verdadeira luta épica se dava entre o Bem e o Mal pela gerência da alma humana. O mundo era um campo no qual os seres eram disputados pelas hostes divinas e satânicas. Não bastava vencer em número, formando uma grande comunidade de conversos, mas fazer com que a conversão fosse para sempre, visto que as tentações se sucediam e os combates eram diários e frequentes. Por isso a necessidade de oferecer aos convertidos imagens visuais e literárias dos verdadeiros princípios, para que os cristianizados se mantivessem no bom caminho. Era como o poder do imperador: não bastava ascender ao cargo, mas era imprescindível se manter no cargo. A propaganda, a divulgação dos bons feitos e das virtudes adequadas a um bom governo, era uma arma imprescindível para a instituição da soberania. De igual forma, a propagação do ideário cristão deveria ser constante e garantir a permanência do convertido no seio da comunidade. O converso tinha que introjetar certos valores, práticas e noções que o diferenciavam do pagão, e a reiteração destas ideias criava um imaginário que norteava as ações humanas. Estas ações deveriam reproduzir no mundo real o que se implementava na alma dos conversos: a adesão à nova fé. E conquistar de forma vitalícia a alma humana era manter o convertido no justo caminho em direção à salvação, por isso tal conquista se convertia na última fronteira para a expansão do Cristianismo entre os homens.
Filmes como instrumentos pedagógicos
A sra. é conhecida por ser cinéfila. É possível usar filmes como forma de ensinar História Antiga para além da mera ilustração? Quais filmes ou séries sobre o período recomenda?
Indubitavelmente, é possível usar filmes como instrumentos pedagógicos. Sempre indico “As Troianas” (do diretor Michael Cacoyannis), de 1971, com a atriz grega Irene Pappás como Helena de Tróia, ou “Gladiador” (Ridley Scott), de 2000, principalmente nas cenas de batalha, que tiveram consultoria da Universidade Yale, e na reconstrução do Coliseu. Mas faço questão de ressaltar que estes filmes não foram produzidos como fontes históricas, mas para conquistar bilheteria e como fonte de distração e lazer. Portanto, devem ser apresentados (diretor, data, produtora, atores etc) e analisados no que têm de bom e de ruim, de pertinente e de transgressor. Por exemplo, Cômodo não morreu na arena do Coliseu, como se mostra em “Gladiador”, mas dentro do Palácio, numa conspiração da qual fizeram parte familiares, senadores e pretorianos. Identifico os filmes como instrumentos para fomentar a curiosidade e o interesse dos discentes, e não se realiza o processo de ensino/aprendizagem sem a curiosidade dos alunos devidamente despertada. No filme “Tróia”, outro exemplo interessante, a concepção moderna de herói exige que a dramaturgia apresente um vilão que a ele se contraponha. Assim, Agamemnom e Menelau acabaram alçados a esta posição, em oposição a Aquiles e Páris, numa versão muito contemporânea da “Ilíada”. No filme “Hércules”, com Dwayne “The Rock” Johnson no papel principal, criaram um rol de amigos para o personagem em seus trabalhos e em suas batalhas, ressaltando um valor comunitário que é nosso e não dos gregos. Na série de televisão “Roma”, o que mais atraiu a atenção dos telespectadores foram as inúmeras cenas de sexo. Assim, apesar de cinéfila assumida e de citar vários filmes em sala de aula, sempre buscando ressaltar o que segue os cânones didáticos e o que foi aderido para vender ingressos e tornar a estória mais palatável pelo público atual, evito pesquisar ou escrever sobre o tema, pois acabo sempre assistindo aos filmes com temas históricos duas vezes: uma como historiadora profissional, observando todos os acertos e todos os defeitos, e outra como amante da sétima arte. E o prazer de me divertir com o audiovisual sempre supera o trabalho de me atentar aos equívocos.
Pesquisadores reconhecidos no cenário acadêmico se aventuram na literatura, enfocando a Antiguidade e a Idade Média. Umberto Eco e Christian Jacq são os exemplos mais famosos. A senhora considera que eles foram bem-sucedidos em transpor seus conhecimentos para a forma de narrativa de ficção ou não conseguiram escapar das armadilhas do anacronismo?
Gosto muito de um artigo de Nicole Loraux, intitulado “O Elogio do Anacronismo”, no qual defende que, ao traduzirmos uma fonte para a língua pátria, já estamos cometendo anacronismos; ao usar nossos conceitos para explicar um fato ocorrido no passado, para que se torne inteligível hoje, já produzimos anacronismos. Por isso, a autora defende que usemos os anacronismos de forma criativa e os controlemos, ao saber que eles acabam sendo inevitáveis na construção de uma narrativa contemporânea compreensível. Como não amar “O Nome da Rosa” (inclusive o filme com Sean Connery). Para conhecermos o mundo antigo, usamos amplamente vários gêneros literários: peças de teatro, poesias, cartas etc. Tenho certeza que as obras advindas da ficção histórica também servirão aos historiadores pósteros para nos conhecerem melhor.