Entre bandeiras e sombras: a jornada de “No Coração dos Deuses” e o enigma da memória nacional
27 novembro 2025 às 16h12

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A União Brasileira de Escritores, por seu presidente Ademir Luiz, abre as portas da Casa para um mostra de cinema de qualidade. Me lembro de ter assistido ao filme “No Coração dos Deuses”, dirigido e roteirizado por Geraldo Moraes e lançado em 1999, que permanece como uma obra singular dentro da cinematografia brasileira e que me veio à ideia de correlacionar com a visão de autores clássicos que estudei na Faculdade de História sobre o século XVII no Brasil.
Misturando aventura, fantasia histórica e mitologia, o filme apresenta uma narrativa que parte de um mapa daquele período, conduzindo um grupo de aventureiros contemporâneos à busca do lendário “Tesouro dos Martírios”, em meio a rios, florestas, povos originários e lendas que atravessam séculos. Nesse percurso, os personagens são conduzidos a uma experiência de deslocamento temporal, sendo transportados ao passado colonial brasileiro, onde entram em contato com bandeirantes, indígenas e com todo um imaginário histórico marcado por tensões, encontros e violências. O protagonista, interpretado por Antônio Fagundes, vive simultaneamente o colecionador Gaspar Corrêa e o bandeirante Fernão Dias, em um jogo entre passado e presente que reforça a ambiguidade da memória nacional e as sombras deixadas pelo desejo de conquista. Essa duplicidade — um mesmo ator habitando dois tempos e duas mentalidades — funciona como eixo simbólico da obra: em Gaspar Corrêa, colecionador fascinado por mapas, documentos e vestígios coloniais, ressoa a lógica da posse e da exploração que movia os bandeirantes; em Fernão Dias, materializa-se o passado violento e mítico que o Brasil insiste em revisitar. O filme, ao fazer esses dois polos coexistirem, mostra que a mentalidade colonial não desapareceu, mas sobrevive como imaginário, desejo e nostalgia, atravessando séculos.
Essa relação entre as personagens também permite aproximar o filme de textos fundadores da literatura colonial brasileira. A lógica de exploração, a visão utilitária da terra e a relação tensa com os povos originários que permeiam A Carta de Pero Vaz de Caminha, o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, as narrativas de Hans Staden e as ambiguidades político-religiosas do Padre Antônio Vieira constituem um pano de fundo ideológico que ainda ecoa na obra. Esses cronistas, ao descreverem o território, as riquezas naturais e as populações indígenas, deixaram registros que misturam fascínio, estranhamento e um olhar de posse sobre o Brasil. O filme recria esse mesmo universo, não de forma literal, mas ao atualizar seus imaginários: o território como promessa, o indígena como ponte para o sagrado ou para o desconhecido, o colonizador como aquele que busca dominar e nomear. Assim, a obra dialoga de modo coerente com essa tradição, operando uma crítica implícita ao modo como esses textos fundaram uma memória mítica e heroica do bandeirantismo — memória que o filme tensiona ao expor suas contradições internas.
A produção destaca-se não apenas pela proposta narrativa ousada, mas também pela trilha sonora de grande impacto, composta por André Moraes, com participações de Igor Cavalera e Andreas Kisser, além dos vocais de Mike Patton — revelando um diálogo raro entre cinema, rock e experimentações sonoras. A trilha recebeu o troféu Candango de Melhor Trilha Sonora no Festival de Brasília de 1999, e o filme foi também reconhecido em outros festivais nacionais, como Recife e Cuiabá. Embora não tenha alcançado grande repercussão de bilheteria, consolidou-se como uma obra de culto, apreciada por seu esforço em reinterpretar a história brasileira sob uma dimensão épico-mítica.
Entre os atores do elenco está Mauri de Castro, no papel de capelão — um artista cuja trajetória merece destaque. Nascido em 7 de dezembro de 1954, em Pires do Rio (Goiás), Mauri Fernandes de Castro trilhou um caminho diverso antes de se tornar ator: pensou em ingressar na vida religiosa como franciscano, serviu ao exército e chegou a jogar futebol pelo Anápolis Futebol Clube. Seu encontro com as artes cênicas ocorreu de forma decisiva após participar de um workshop de teatro. Desde então, construiu uma carreira sólida e multifacetada, atuando como ator, diretor de elenco, diretor teatral, dramaturgo, professor e poeta. Sua obra abrange mais de uma centena de espetáculos teatrais — entre direção e atuação — e sua presença no cinema inclui filmes como “O Tronco” (1999), “O Voo do Anjo” (2024) e “Mil Luas”. Mauri de Castro relata que o cinema impôs-lhe desafios iniciais: vindo do teatro, onde a expressividade se dá por gestos amplos e projeção vocal, precisou aprender a lidar com a sutileza da câmera. Em uma entrevista, afirmou que, no primeiro filme de que participou, sofreu para “reduzir” sua interpretação, já que, no cinema, quem se expande não é o corpo do ator, mas o zoom da lente. Ele também destaca o aprendizado intenso que teve ao contracenar com Antônio Fagundes, com quem trabalhou tanto em “No Coração dos Deuses” quanto em “O Tronco”. Além de ator, Mauri também se afirma como poeta, tendo sido reconhecido pela crítica goiana pelo diálogo entre o erudito e o popular em sua produção literária, conforme registrado em análise publicada no Jornal Opção.
A presença de Mauri de Castro no filme reforça o caráter híbrido da obra: um artista profundamente ligado ao teatro, à formação de novos atores e à cultura goiana, que, ao transpor-se para o cinema, contribui com sua carga expressiva e sua compreensão ampla de dramaturgia. O filme, por sua vez, articula lenda, história e ficção, convocando o espectador a revisitar o Brasil colonial com um olhar que exige imaginação, crítica e abertura para os limites entre mito e realidade. Apesar das limitações orçamentárias que marcavam o cinema nacional nos anos 1990 e que atingiram também esta produção, “No Coração dos Deuses” encontra um lugar importante na memória cultural brasileira, sobretudo por seu esforço em repensar a formação histórica do país por meio de uma estética ousada.
A exibição recente do filme no âmbito da programação cultural da União Brasileira de Escritores reafirma sua relevância contemporânea. A UBE, representada por seu dinâmico presidente, o professor Ademir Luiz, está promovendo uma série de eventos dentro da programação cultural da entidade, como parte da ocupação cultural do Centro de Goiânia, reunindo escritores, artistas, pesquisadores e a comunidade em torno de debates sobre literatura, cinema e memória cultural. A presença de Mauri de Castro comentando o filme cena por cena amplia a experiência do público e reaproxima a obra de novas gerações, num diálogo vivo com a formação artística goiana e brasileira. A sessão especial ocorrerá no dia 29 de novembro, às 9h, na sede da UBE Goiás, que fica na Rua 21, nº 262, Setor Central.
