Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Resenha do livro “Pergunte a Shakespeare — As respostas do dramaturgo mais famoso do mundo para os grandes desafios da vida cotidiana” (Leya, 296 páginas, tradução de Silvana Cobucci), de Cesare Catà

O dramaturgo William Shakespeare (1564-1616 — viveu 52 anos) vem mantendo, ao longo de quatro séculos, um título inédito no meio literário: o de ser considerado o maior escritor do mundo (o crítico Harold Bloom chegou a nomeá-lo como “inventor do homem moderno”). Quem convive nesse meio, repleto de competição, sabe que existe uma verdadeira fogueira de vaidades desses déspotas esclarecidos.

Até mesmo escritores de primeira grandeza, como os consagrados Miguel de Cervantes, com sua obra maior “Dom Quixote”, e Mario Vargas Llosa, com seu romance mais lido “Conversa no Catedral”, foram alvo de maus olhares de muitos dos seus colegas que ficaram incomodados com o sucesso deles. Eles praticaram um dos sete pecados capitais, a inveja, um sentimento menor do próprio do ser humano presente onde existir gente.

Há exatos vinte anos que leio e releio tudo que o autor de “Romeu e Julieta” e de “A Tempestade” escreveu. A cada releitura, aprendo a conhecer, cada vez mais profundamente, a alma humana. De uns tempos para cá, senti a necessidade de encontrar um livro que traduza a imensa sabedoria desse escritor para o cotidiano de nossas vidas. Minha incessante procura foi, de certa forma, em vão, pois tudo que chegava às minhas mãos não me satisfazia. Depois de anos procurando tal obra, desisti.

Quando viajo, tenho o hábito de percorrer livrarias em busca de novidades. Na semana passada, estive em Curitiba. Por volta das 17 horas, entrei em uma livraria de um shopping localizado no elegante bairro Batel. Após conferir as novidades, deparei-me com uma seção especializada em obras de Shakespeare. Comecei a conferir as novidades, mas não encontrei nada que me satisfizesse. Já cansado, a simpática vendedora que me atendia veio com um livro debaixo do braço e, sorrindo, disse: “Acabou de chegar este livro, talvez, o senhor encontre nele o que deseja”.

Bastou eu ler o título para me interessar pelo conteúdo. Após uma hora de pesquisa, voltei-me para a vendedora e disse-lhe: “Eureka! Tudo que venho procurando nesses últimos dez anos é uma obra como esta”.

Agradeci à livreira pelo achado e voltei para o hotel com aquele entusiasmo juvenil. Das 22 às 3 horas, li a metade do livro. O autor procurou, exatamente, atender à necessidade de que as obras de Shakespeare fossem úteis para as várias situações que passamos no dia a dia de nossas vidas. Posto isso, apresenta-se, a seguir, a capa e o autor.

Cesare Catà: dr. em Filosofia do Renascimento

“Pergunte a Shakespeare — Pergunte a Shakespeare: as respostas do dramaturgo mais famoso do mundo para os grandes desafios da vida cotidiana” (Leya, 296 páginas, tradução de Silvana Cobucci) é o título (bastante sugestivo) da obra escrita pelo pesquisador italiano Cesare Catà. Quem é o autor? Façamos as apresentações.

William Shakespeare: autor de “Rei Lear” e “Hamlet” | Foto: Reprodução

Cesare Catà é um doutor em Filosofia do Renascimento. Tem diversas publicações.

Como acadêmico, aprofundou seus conhecimentos em instituições como a Universidade do Havaí, em Honolulu, nos Estados Unidos, o Instituto Cusanus, em Trier, na Alemanha, a Escola Prática de Altos Estudos, em Paris, na França, e no Instituto Italiano da Cultura de Dublin, na Irlanda.

Antes de mergulharmos na obra do doutor Cesare Catà, reproduzo o convite do autor aos leitores.

“O seu problema é ansiedade? Tome uma dose reforçada de ‘Otelo’. Ainda se sentindo deslocado? ‘Hamlet’, sem moderação. Tem dificuldade para encontrar a pessoa certa? ‘Romeu e Julieta’ na veia. Está desiludido com a humanidade? Vá de ‘Macbeth’. A autoestima está lá embaixo? Henrique V pode dar um up”.

Depois de um convite desses, mergulharemos em algumas peças de Shakespeare, tendo o doutor Cesare Catà como anfitrião-guia.

Primeira Peça: Macbeth

“Se você não entende como um ser humano é capaz de [fazer] coisas tão terríveis você precisa ler ‘Macbeth’.” Assim o dr. Cesare convida os leitores. Avaliemos, de maneira sucinta, o conteúdo dessa grande peça.

Para início de conversa é oportuno situarmos o leitor que a peça foi ambientada na Escócia, país que tem um folclore repleto de coisas estranhas, tais como espíritos, criaturas demoníacas e bruxas. 

Foi em um ambiente como esse que o general Macbeth e seu companheiro de lutas, o general Banquo, atravessaram a região pantanosa da Escócia, repleta de escuridão. Certamente, a escuridão do pântano é uma simbologia própria do autor. Agindo assim, ele procura relacionar o pântano com a escuridão da mente humana. É lá que estão as imprevisibilidades do ser humano no tocante ao seu modo de reagir ante as tentações da vida.

Posto isso, vamos à história. Naquele momento de travessia pantanosa, aparecem três bruxas que se postam em frente ao cavalo do general Macbeth. Descobre-se, mais tarde, que essas três criaturas eram ligadas a Hécate (deusa da mitologia grega voltada para práticas da magia, da feitiçaria).

Cesare Catà: grande conhecedor da obra de Shakespeare | Foto: Reprodução

De acordo com o autor, vale ressaltar que, até então, Macbeth era “um general corajoso e soldado leal ao rei. Mas havia, no fundo, um lado oculto escondido nas profundezas do general; e esse lado era o reverso do outro. Lá habitava um assassino, traidor e carrasco de crianças”.

Diante do general Macbeth e do seu amigo Banquo, as bruxas saudaram o herói de batalhas das guerras da Escócia do seguinte modo: “Senhor de Glamis”, “Senhor de Cawdor” e “aquele que fatalmente será rei”.

O que se observa no modo de agir de Macbeth é a sua completa dependência do que lhe dizem as bruxas. Além disso, Lady Macbeth, sua mulher, conhecida por sua ambição sem fim, instiga seu marido a assassinar o rei Duncan.

O rei é assassinato; e Macbeth torna-se o senhor absoluto da Escócia. Um rei de alma atormentada pela ideia de que poderia ser assassinado. E, em um de seus momentos de elevada paranoia, manda eliminar seus rivais.

O primeiro deles foi seu companheiro de lutas na guerra, o general Banquo. Ele foi assassinado por dois motivos. Primeiro, atrela-se ao medo que tinha Macbeth de Banquo descobrir o assassino do rei. Segundo, relaciona-se à previsão das bruxas de que o general Banquo não seria rei, mas, sim, seus descendentes. Eliminar seu melhor amigo era a solução, pois ele representava perigo no momento da sucessão. De nada adiantou a morte de Banquo. Os fantasmas shakespearianos continuavam a perturbar aquela mente doentia.

O medo de ser assassinato levou o rei, novamente, a procurar as bruxas. Naquele momento, não existia mais o general valoroso, fiel ao rei da Escócia. O que de fato havia era um assassino em estado de aguda paranoia, repleto de inseguranças. Em meio à angústia, Macbeth recorreu às bruxas, e elas proferiram a última profecia — que selava de vez o destino do general Macbeth.

O doutor Cesare Catà assim descreve um dos pontos altos da peça: o momento em que Macbeth recorre a bruxas e elas emitem a última profecia que selaria o destino do assassino do rei Ducan. “Macbeth permanecerá firmemente no trono, enquanto o bosque de Birnnam não avançar sobre a colina Dunsinane. E não poderá ser morto exceto por um homem não nascido de uma mulher.” O rei da Escócia saiu da consulta com as bruxas tendo certeza de que não seria assassinado. Pois os bosques não andam. E todo homem que é vivo nasce do ventre de uma mulher.

Chegou aos ouvidos do rei que Macduff (nobre escocês leal ao legítimo rei) estava organizando um exército para matar Macbeth. A resposta do rei foi a mais sanguinária possível: Macbeth ordenou a morte da mulher e dos filhos de Macduff. Nesses momentos não existia mais aquele general valoroso, fiel ao rei Duncan. O criminoso sanguinário entra no castelo e assassina Macbeth. Lady Macbeth, por sua vez, enlouquece e morre. As bruxas enganaram-no. Veja-se o porquê.

MacBeth assassina Duncan | Foto: Reprodução

 Os exércitos de Macduff e Malcolm (filho mais velho do rei Duncan, legítimo herdeiro do trono escocês), acampados no bosque de Birnam, recebem ordem para se movimentarem atrás de galhos cortados das árvores. Estava assim satisfeita a primeira condição que ia ao encontro da premissa das bruxas, o bosque de Birnman pôde avançar, desse modo, sobre a coluna Dunsinane.

Ao encontrar o então rei da Escócia, Macduff disse-lhe que fora arrancado antes do tempo do ventre materno por um parto cesariano. As duas premissas conciliavam-se, assim, o rei da Escócia foi decapitado por seu maior inimigo: Macduff.

Encerro esse mergulho em uma das mais importantes peças de William Shakespeare relacionando-a com o cotidiano de minha vida.

Em primeiro lugar, no mundo do trabalho, em que eu, você e todos nós somos obrigados a conviver com gente de toda espécie, exerci minha profissão, por mais de três décadas, em uma empresa contaminada pela praga da corrupção. Nesse ambiente, vi de tudo: pessoas que se transformavam ao assumir cargos na estrutura interna — muitas delas subiam em um grão de areia, mas sentiam-se no cume do Himalaia —; vi também o culto à esperteza em obras e contratos superfaturados, bem como a ação dos aduladores que mudavam de lado de acordo com os ventos do poder.

A leitura de “Macbeth” trouxe-me a maturidade necessária para conviver em ambientes hostis sem me desesperar.

Em segundo lugar, a leitura de “Macbeth” ajudou-me a ser seletivo quanto às amizades. (Tal como o general, fiel e amigos do rei, Macbeth tornou-se um assassino sanguinário. Num contumaz assassino, pude perceber o lado fingidor de certas amizades. Aprendi que, dentro de uma organização, as pessoas são leais, mas também traem por fraqueza ou interesse.)

Por último, Macbeth possibilitou-me enxergar o lado invisível que a maioria de nós mortais não aprecia expor. Para isso, permita-me contar uma história.

O falecido Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) — que governou a Bahia e mandou na política local por vários anos (gostava de dizer que só era forte na corte quem era forte na província) — leu “Macbeth” de ponta a ponta. E, em uma das entrevistas concedidas a um órgão da imprensa televisiva, disse que sabia se era ou não bem-vindo quando visitava algum correligionário ou aliado político: “Eu procuro observar primeiramente como a criança irá me tratar. Se o tratamento é receptivo, sinal de que sou bem-vindo. Por outro lado, se a criança me hostilizar, fico com o pé atrás, pois há grandes chances de estar na casa de aduladores, aqueles que amam estar nos bastidores do poder, mas que, nos momentos de ostracismo, abandonam-nos”. Conhecido como “rei” da Bahia, ACM era médico e foi professor da Universidade Federal da Bahia

Concluindo: conhecer e saber entender as obras de Shakespeare aumentou minha capacidade de enxergar, no dia a dia, as partes no todo do ser humano. Muitos escondem o lado escuro de suas mentes de várias maneiras. Saber ser seletivo nas amizades foi algo que elevou muito a leveza de se estar com quem se gosta. De quem não se gosta, o melhor remédio é a impessoalidade. “Macbeth” ajudou-me a viver nesse mundo repleto de encontros e desencontros, em uma sociedade cuja leveza do ser não é sustentável. Afinal, como nos ensina essa memorável peça de Shakespeare, Macbeth, quando se torna rei, mandou matar seu melhor amigo de tantas batalhas, o general Banquo. Facada nas costas é algo que não levo desde que conheci essa magistral peça do mais luminoso escritor do mundo — gênio William Shakespeare.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.