Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Segunda e última parte da resenha do livro “30 Anos do Real — Crônicas no Calor do Momento” (História Real, 224 páginas), organizado por Gustavo Franco.

A implementação do Plano Real portou uma revolução nas empresas estatais de energia elétrica. Antes desse marco, vivíamos uma era em que os investimentos eram recompensados pelo seu valor total, independentemente da eficiência. Era um mundo em que números inflacionados disfarçavam a verdadeira situação financeira das empresas. No entanto, com o Plano Real, tudo mudou. De repente, os investimentos passaram a ser remunerados pela eficiência, e as empresas viram-se obrigadas a encarar uma nova realidade, na qual a matemática fria e implacável substituiu a contabilidade criativa que reinava soberana.

Além disso, a renegociação de dívidas, antes, uma prática comum e quase ritualística de empurrar os débitos para o futuro, foi radicalmente transformada. Keynes disse uma vez que “no longo prazo, todos estaremos mortos”. Porém, com o novo regime, o longo prazo deixou de ser uma opção viável, e as empresas foram forçadas a lidar com o presente – um presente em que os esqueletos financeiros, até então bem escondidos, começaram a emergir. Sem a receita inflacionária para mascarar suas ineficiências, as empresas desequilibraram-se, e o populismo que florescia com o dinheiro fácil desmoronou, revelando uma realidade bem menos glamourosa.

Foi nesse contexto que surgiu a ideia de vender uma das mais importantes usinas hidrelétricas. Com os cofres vazios e o desespero batendo à porta, tomou-se a decisão de liquidar ativos estratégicos. A usina foi colocada à venda, e apenas um interessado apareceu – uma empresa estrangeira. Não bastasse essa coincidência, a proposta exigia exclusividade no fornecimento de energia para a estatal. O contrato, assinado sob condições questionáveis, amarrava a empresa, por 15 anos, a comprar energia a um preço 53% mais alto do que o de outros fornecedores nacionais. O resultado foi que a empresa estrangeira não só adquiriu a usina, mas levou quase metade dela de graça, acumulando um prejuízo que ultrapassou os 200 milhões de reais.

Esses 200 milhões de reais em prejuízo representam mais do que apenas um número. Eles são a prova visível e incontestável do derretimento de uma empresa que, outrora, era um pilar de força e estabilidade. O que, antes, era um símbolo de prosperidade transformou-se em um exemplo clássico de como decisões malpensadas e acordos desastrosos podem corroer a estrutura de uma organização até a sua completa desintegração.

Curiosamente, aqueles responsáveis por assinar o contrato tinham, em teoria, formação técnica robusta e conhecimento profundo do setor. No entanto, ao invés de recusar assinar ou entregar seus cargos, optaram por seguir adiante. Talvez, o medo de perder suas posições tenha sido maior do que o senso de responsabilidade. E assim fica o reconhecimento por aqueles que, mesmo em meio a turbulências, conseguem manter-se firmes, adaptando-se a todas as mudanças, seja em uma empresa pública, seja em uma privatizada.

Ao finalizar, não posso deixar de recordar as palavras de Maquiavel em O Príncipe: “O príncipe que deseja manter seus principados deve ter apenas uma pessoa de confiança, que possa lhe dizer a verdade sem ser punida”. Entretanto o príncipe começa a perder seu principado no momento que se cerca de aduladores, que sempre estarão prontos para mostrar a realidade que o príncipe quer ver, e não a verdade nua e crua como ela é. O contrato desastroso que levou à privatização é um exemplo claro de como o Estado forte que favorecia perdeu, e o que emergiu foi o Estado fraco para transformar. Parabéns àqueles que, mesmo diante de tantas adversidades, continuam a navegar com impressionante habilidade em águas turvas, demonstrando que a sobrevivência em um ambiente mutável e repleto de desafios é, de fato, uma arte.

Trechos do livro

1

“Passados exatos dez anos, a sociedade brasileira considera que a relativa estabilidade de preços é uma conquista sua e deve ser preservada por qualquer governo,independentemente de sua ideologia ou coloração político-pardidária.Isso é um avanço extraordinário que deve ser comemorado em seu décimo aniversário”(Pedro Malan.Crônica escrita quando o Real completou 10 anos)

2

“O discurso e a prática aqui –aonde queremos chegar—deveria ser o da busca da eficiência,da qualidade do gasto,do combate ,sem desperdício,à fraude,à corrupção, corrupção e à demagogia no trato do tema(Pedro Malan—leia-se: Crise e Oportunidade”Crônica escrita quando o Real completou 15 anos)

3

“Na ausência de cortes de zeros, os brasileiros estariam fazendo compras na padaria utilizando carrinhos de mão para carregar as cédulas necessárias para o pagamento,como se observou na Alemanha de 1923.Sem falar nos congelamentos,confiscos e maldades que acompanharam diversas dessas reformas monetárias( Gustavo Franco —leia-se: “Sete Batalhas”—crônica escrita por Gustavo Franco quando o Real completou 15 anos)

4

“ O acordo político no Congresso que permitiu  a aprovação do Plano foi um verdadeiro pacto social.Nele, o PMDB defendeu os pontos de vista dos sindicatos dos trabalhadores já que o PT não quis negociar e simplesmente votou contra o Plano Real. “Acordos políticos e Riscos Econômicos”.Crônica escrita por Edmar Bacha quando o Real completou 28 anos)

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.