Ensaio de Manguel sobre Pinóquio mostra a necessidade de formar crianças que saibam pensar
15 abril 2023 às 21h00
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Edmar Monteiro Filho
Pinóquio, fábula criada pelo italiano Carlo Collodi, em 1883, é uma das histórias infantis mais conhecidas, muito por conta da animação musical produzida pelos estúdios Disney, em 1940. Produções mais recentes trouxeram de volta ao centro das atenções a história do boneco de madeira que sonha se tornar um menino. Em 2021, Matteo Garrone dirigiu um Pinóquio em live-action, mais sombrio que a produção da Disney. Outro remake, lançado pela própria Disney em 2022, com Tom Hanks no papel de Gepeto, fracassa na tentativa de acrescentar novos detalhes à trama. O Pinóquio mais recente, do diretor Guillermo del Toro, foi agraciado com o Oscar de animação. A ideia de transportar a história para a Itália durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é oportunidade para atacar o fascismo — infelizmente, tão em voga. O filme é muito interessante do ponto de vista estético, mas a tentativa de aprofundar as discussões contidas no enredo original de Collodi ficam pelo caminho.
O boneco Pinóquio de del Toro aproxima-se da criatura imaginada pelo italiano: modos bruscos, ingrato, indisciplinado, incapaz de praticar a delicadeza. Seu aprendizado do mundo real é marcado pelo trágico, mas o comportamento e o aspecto grotesco repelem toda simpatia. Certamente, essa versão agradaria mais ao escritor argentino-canadense Alberto Manguel, que deplora as modificações introduzidas pelo universo Disney no livro de Collodi. Em um dos textos que compõem a coletânea “Notas Para uma Definição do Leitor Ideal” (Sesc SP, 168 páginas, tradução de Rubia Goldoni e Sergio Molina), Manguel discute a fábula do boneco de madeira de forma bastante original, ao lado de um interessante conjunto de textos sobre leitores e leituras.
Descrença na palavra e apelo à emoção
Num elogio aos dicionários, Manguel aborda a “lei do bom vizinho”, segundo a qual, ao buscarmos um verbete, vamos estabelecendo percursos inusitados pelas palavras vizinhas, por páginas próximas. Pensando sobre “A República”, de Platão, o autor argentino conclui que o grande mérito dessa obra máxima da filosofia grega é justamente não oferecer soluções prontas para as questões que aborda, fazendo brotar dúvidas essenciais e transformando todo leitor num interlocutor. Ao defender o engajamento nas grandes causas do nosso tempo, Manguel afirma ser o século XXI a era da “descrença na palavra”, tendo em vista a predominância de um discurso baseado no apelo barato à emoção, na incoerência, em descrédito ao texto elaborado, maduro, características responsáveis pelo florescimento de fake news e mentiras públicas. Nesse sentido, necessário, segundo o autor, tornarmo-nos testemunhas críticas da realidade, fazendo a “opção inarredável entre falar ou calar”.
As capas, a censura, a originalidade são alguns dos assuntos abordados por Manguel em outros textos do livro, mas convém voltar a falar de Pinóquio.
Em “Como Pinóquio aprendeu a ler”, a fábula de Collodi aparece como uma discussão sobre a aprendizagem. Para se tornar parte da sociedade, Pinóquio precisa frequentar a escola e aprender a ler. Manguel aponta três instâncias do aprendizado das letras: o domínio do código de escrita, o aprendizado da sintaxe e por fim, a mais difícil, perigosa e poderosa, o conhecimento de como esse código permite dar forma às ideias, recriar experiências, transformar o mundo. Considera que essa terceira etapa é justamente aquela que Pinóquio não será capaz cumprir, já que os “mestres” que encontra pelo caminho, como o Grilo Falante e a Fada Azul, não são capazes de ensiná-lo a refletir sobre sua própria condição e de mostrar o significado de se tornar um “menino de verdade”, apontando apenas algumas regras a seguir.
Para Manguel, a finalidade — e o paradoxo — de todo sistema de ensino é formar cidadãos conhecedores das regras da sociedade, mas que sejam também capazes de questioná-las. A escola de Pinóquio apresenta-se como mera “iniciação ao mundo dos adultos, com suas convenções e exigências burocráticas”, ao invés de “campo de treino para a criança melhorar e se expandir”. O argentino, enfim, afirma que “educar é um processo lento e difícil, dois adjetivos que em nossa época deixaram de ser elogiosos e passaram a denotar falhas”. Por isso, tão complicado ensinar as virtudes do esforço da leitura.
“Notas Para uma Definição do Leitor Ideal” é mais um grande livro de autoria de Alberto Manguel. O ensaio sobre Pinóquio mostra a necessidade de ensinar a ler não de modo a formar crianças “obedientes e ajuizadas” — como deseja ser o boneco de madeira —, mas crianças que saibam pensar. Porque, sujeito a um sistema de ensino limitador, Pinóquio transforma-se num menino, mas continua a pensar como um boneco.
Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]