Brasigóis Felício

Especial para o Jornal Opção

Todo esse tempo sabia que tinha algo que não deveria esquecer. Algo que me havia dito alguém. Mas eu esqueci. — Ingmar Bergman

Imerso na leitura de “Breve Segunda Vida de Uma Ideia”, apreciei o recente livro de contos do escritor Solemar Oliveira. O mestre é doutor em Física e crítico de cinema. Dessas duas áreas não direi nada — é conhecida e provada sua competência. Sou neófito em tais assuntos. Falarei de sua produção literária, e disso entendo um pouco — venho de algumas jornadas.

Na obra contística “Breve Segunda Vida de Uma Ideia”, o escritor começa por nos intrigar ao não revelar ao leitor qual teria sido a primeira. Mas o livro é dele, o autor. Está ele no direito de ocultar, ou não revelar o que, permanecendo em zona cinzenta, tem o condão de despertar a imaginação de quem esteja mergulhado em seu devaneio.

A primeira coisa a ser dita é: Solemar escreve muito bem (obrigação de todo escritor). Suas frases são bem construídas, carregadas de enigmas, com passagens interessantes de temas inerentes ao fazer profissional do autor como professor de física. Como na abertura do conto “Moto Perpétuo”: “Como é previsto por algumas mentes privilegiadas, e estudiosos raros, a Roda do Destino é periodicamente girada para que, baseados em probabilidades, os mais distintos eventos possam acontecer. A Roda, que é um objeto colossal, magnânimo, difícil de ser compreendido pela simplória visão humana, é uma peça cuja engenharia remonta a outros povos, outra realidade da Terra. À medida em que os destinos são sorteados, as vidas mudam”.

A frase está repleta da teoria quântica do princípio da incerteza de Heisenberg. Eternas ondas transformam o futuro em passado, continuamente. O tempo é a mera e passageira percepção veloz, que acontece quando estamos em situação de atenção desperta, ou iluminada. O resto é silêncio.

Em seu devaneio, o personagem do conto “Moto-Perpétuo” nos diz, em outras palavras, que o contínuo-espaço-tempo é a casa da memória. Isto só acontece enquanto ela (a memória) está viva, atuante e mutante. Depois que o memorial do tempo vivido é esquecido, tudo morre. O resto é silêncio.

Se a roda das possibilidades deixasse de fora, descartasse tudo o que é incerto e improvável, ou inesperado, seria um pouco (ou um tanto) mais fácil escapar das ciladas do destino. Assim como, se o indivíduo é comerciante, estar sediado em uma esquina da cidade pode constituir uma vantagem, pois se está à vista de potenciais fregueses compradores. Porém, isto pode ser desvantajoso, quando a vistosidade do lugar atrai a cobiça de malfeitores, que o assaltam, às horas silenciosas da noite.

O que também é verdadeiro quando o assaltado é um idoso escritor, a quem roubaram o laptop, onde estava tudo o que ele escrevera, em toda sua vida. Não adiantaria em nada lhe contarem a má notícia, uma vez que ele próprio havia perdido toda a sua memória. Não sabe mais quem é. Não sabe dizer nem seu nome.

O personagem explica o que pretende assinalar, com sua teoria da Roda do Destino: “Meu intuito é mostrar que na vida humana nada está decidido. O redemoinho das probabilidades, das situações nunca manifestadas, existe para cada situação futura distribuída em igual chance de acontecer, assim como outra qualquer, completamente oposta e distinta. De tempos em tempos, um Ser escolhido garante que a Roda gire e cumpra sua missão de fazer acontecer”.

O autor cita “o caso de um advogado de sucesso, que realizou seus estudos na melhor universidade do mundo e que, depois de trabalhar bastante em uma famosa empresa, teve seu nome associado aos fundadores, por conta de sua alta competência. Mas a Roda girou e seu carro chocou-se com outro, e ele perdeu a memória quando sua cabeça bateu contra o para-brisa em um choque extraordinário, de tamanha intensidade que o arremessou a uma grande distância. Perdeu tudo. E sua vida, agora que as possibilidades foram sorteadas, é outra completamente diferente. Ganha a vida trabalhando em uma fábrica, realizando uma tarefa manual que não exige acessar lembranças perdidas”. P.S. Aqui vem a calhar a citação da epígrafe que o autor escolheu para sua obra ficcional: “Todo esse tempo sabia que tinha algo que não deveria esquecer. Algo que me havia dito alguém. Mas eu esqueci” (Ingmar Bergman).

Falando em estilo autoral, minha percepção é a de que a narrativa egocentrada da maioria dos contos, e mesmo do texto de abertura do livro, tem confessada inspiração em autores preferidos do narrador. Seus preferidos são E.T.A. Hoffmann, Humberto de Campos, H.P. Lovecraft, Jorge Luis. Borges, Lygia Fagundes Telles, Silvina Ocampo, Edith Wharton, Edgar Allan Poe. E há outra influência, uma angústia narrativa assinaladamente presente nas “Memórias de um Homem do Subsolo”, de Fiódor Dostoiévski. O famoso autor russo, em especial nessa obra, de mergulho abissal, em introspecção existencialista, fundou essa linha filosófica, antes de Heidegger, Sartre e Albert Camus. Influenciou até a psicanálise de Freud.

Voltando ao livro do Solemar Oliveira: a linha moral (toda história ou estória tem uma moral, uma mensagem — se há obrigação em se ter alguma — contendo as crenças e a filosofia de vida do autor, refletida em seus personagens e em suas criações) é a do pessimismo filosófico remetendo a Schopenhauer, em especial nas “Dores do Mundo”.

Além do ceticismo filosófico e religioso, o que é assinalado pelas citações (epígrafes) que precedem os contos. Como as de Arthur Schopenhauer, ou a do Dr. John Watson: “A ignorância de Holmes era tão surpreendente quanto o seu conhecimento”. Assim, vemos que grandes cientistas, pessoas que estudaram a fundo, muitas realidades deste mundo, podem ser completamente ignorantes, em outras.

Autoridades acreditadas podem apresentar justificativas para revoluções estapafúrdias e grotescas, assim como criaturas quase invisíveis, vistas quase como mendigos, sapateiros do dia (a exemplo de Spinoza) podem ser gênios inovadores da filosofia metafísica. Isto o místico e filósofo Ralph Waldo Emerson já sabia: “Quando surge uma ideia autêntica ela mesma projeta sua evidência”.

Vai longa essa resenha, é hora de deixar aos leitores o prazer de auferir, conferir eles mesmos, o quanto são profundas, instigantes e valiosas, essas ideias e tramas urdidas pelo ótimo escritor Solemar Oliveira. Obra para ser lida, relida e meditada.

Brasigóis Felício é poeta e prosador.