Enfrentamento das novas inquietações do Sistema Capitalista
07 agosto 2022 às 00h12
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Por Salatiel Soares Correia, especial para o Jornal Opção
Antes de darmos andamento à resenha deste livro, esclareço que procurei, nestas linhas, relatar a importância do livro de Paulo Collier para o futuro do capitalismo. É bem verdade que não foram esgotados todos os aspectos contidos nesse trabalho seminal. Se assim o fizesse, necessitaríamos de umas 12 laudas. Ciente dessa limitação, optei por avaliar pontos importantes que relatassem a mensagem do autor da maneira mais precisa possível. Se o assunto contido neste espaço lhe convencer, não hesite em adquirir o livro. Valerá a pena. Se não lhe convencer, agradeço, desde já, por ter chegado a tal conclusão após a leitura desta resenha
Passados dez anos do ocorrido, lembro-me, como se hoje fosse, daquela imagem que tanto marcou a semana em que visitei o país mais desenvolvido do continente africano: a África do Sul. Tudo aconteceu quando retornávamos de um safári na cidade do Cabo. No jipe íamos eu, minha esposa, um casal da Inglaterra e o guia. De um lado a outro da estrada, margeava uma floresta e dela, repentinamente, saiu um macaco, que começou a caminhar no lado direito da estrada. O andar ereto e elegante daquele mamífero que mirava o horizonte me fez lembrar de um genuíno lorde inglês. Passados uns dois minutos, outro macaco repetiu o mesmo gesto de elegância do primeiro e, sabendo qual era o lugar dele, posicionou-se logo atrás do companheiro. E assim a cena se repetiu, três, quatro, cinco, dez… até o momento que deixei de contar. O guia, ao perceber minha perplexidade com a situação, informou, num inglês impecável: “o pessoal do governo passou uns dias por aqui contanto quantos macacos existiam naquela fila quilométrica”, ao dizer isso, o guia nos informou que a fila é composta por cerca de 972 macacos. Heureca, isso é que é comunidade! Cada mamífero desses se integrou num todo, em que cada um sabe o propósito ao qual se quer chegar. Nesse contexto, a solidez da comunidade se manifesta no forte sentimento de pertencimento que cada macaco tem de si no todo social em que convive.
A sociedade solidária perde muito de sua eficácia quando aparece um personagem de sentimentos diametralmente opostos à ideia de pertencimento explicitada no observar do comportamento dos macacos. Esse personagem é o “homem economico”. Mas quem é esse personagem? Essa pode ser a sua dúvida. Ele é, antes de tudo, um egoísta por natureza. Por essa razão, ele nutre sentimentos contrários aos observados na solidária sociedade dos macacos. A predominância do homem econômico construiu outro tipo de sociedade, em cujo contexto se enfraquecem os valores estabelecidos numa sociedade democrática.
Reflexões como as supra
Expostas evidenciam que o sistema capitalista vive hoje suas inquietações. Quem se atreve a dizer isso é o renomado autor do livro que nesta resenha nos propomos a discutir: “O Futuro do Capitalismo”, de autoria do ilustre professor da Universidade de Oxford Paul Collier.
O autor é alguém que, embora processe sua fé no capitalismo, está ciente de que esse sistema necessita de um banho de ética para se manter vivo. Para isso, seus escritos propõem uma mudança de rumo voltada para a construção de um capitalismo ético que, a seu ver, “atenda aos critérios fundados em nossos valores, refinados pelo raciocínio prático e reproduzidos pela própria sociedade”.
Gente de expressão carrega as tintas quando se trata de elogiar esse autor de renome. “É o trabalho mais revolucionário de ciência social desde Keynes”, afirma o economista ganhador do Prêmio Nobel de economia de 2001, George Akerlof. Outro respeitado formador de opinião, Bill Gates, avalia a obra de Paul Collier como sendo “um livro ambicioso, que faz pensar”.
Mervyn King, ex-presidente do Banco da Inglaterra, expõe com clareza o espírito do livro ora em comento. Vale a pena explicitar a opinião desse respeitado executivo. “Para moradores metropolitanos abastados, o capitalismo é a bênção sem fim, para outros, o capitalismo não está funcionando. O autor demonstra paixão, pragmatismo e aguçado conhecimento de economia em igual medida para esboçar uma alternativa para as cisões que estão dividindo tantos países do Ocidente.” Ante a opinião de seus pares, o autor é visto como um profeta que acredita que o capitalismo precisa ser administrado, e não derrotado.
Do estado do bem-estar social de Franklin Delano Roosevelt ao fracasso de Hillary Clinton
O período compreendido entre a presidência de Franklin Delano Roosevelt e a derrota da então candidata dos Estados Unidos Hillary Clinton coincidiu com o apogeu e o fracasso da chamada terceira via. Um experiente observador da conjuntura do mundo ocidental constata que a terra em transe da social-democracia entrou em crise nas mais significativas das economias do planeta.
Posto isso, passamos a uma sucinta avaliação acerca da construção do Estado Ético de que tanto nos fala o autor em seus escritos. Para isso, voltemos aos tempos do presidente Franklin Delano Roosevelt e de seus pares, que construíram, nos Estados Unidos e no resto do mundo ocidental, as bases do chamado Estado do Bem Social.
A nova realidade oriunda do mundo após a Segunda Guerra Mundial influenciou incisivamente a construção desse Estado que muito se assemelha ao mundo solidário da comunidade de macacos.
Desse modo, sob a liderança do então presidente da República dos Estados Unidos foram tomadas medidas tendo a solidariedade como reserva de valor. Nascia assim o chamado “New Deal” amplamente apoiado pela grande maioria de mentes e corações da população norte-americana.
Sobre esse assunto, Paul Collier relata ações governamentais que consolidaram o Estado Ético nos Estados Unidos: “da assistência médica durante a gravidez às pensões na velhice, as pessoas, contribuindo com a previdência gerida pelo Estado, protegiam-se mutuamente a ética que guiava a social-democracia comunitária”.
O ambiente criado pela relação de confiança entre governo e a sociedade resultou da confiança politicamente construída entre Estado e a sociedade. Eis aí a face visível do Estado Ético ao qual tanto se refere o autor em seus escritos. Do apogeu veio a crise e o consequente enfraquecimento da social-democracia mundo afora.
Sobre esse assunto, Paul Collier aponta, em seus escritos, para “a crise existencial” da social-democracia em importantes economias do mundo desenvolvido. onde “Os partidos social-democratas, na Noruega e Espanha, despencaram na crise existencial, e isso seria uma boa notícia para os políticos de centro-direita, mas, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, eles perderam o controle de seus partidos, enquanto, na Alemanha e na França, o apoio eleitoral desmoronou.” Eis aí o preço que os sociais-democratas de direita e esquerda pagaram por afastarem-se de suas origens alicerçadas na reciprocidade prática das comunidades. Nesse sentido, aqueles 972 macacos têm muito a ensinar às velhas raposas da social-democracia norte-americana. Estas não perceberam que o fisiologismo paternalista não atenderia às exigências educacionais tão necessárias para suprirem as necessidades do batalhão de desempregados que é vítima de uma nova ordem que se globalizava cada vez mais. As políticas públicas da terceira via mostraram ser insuficientes no combate ao desemprego.
Desse modo, os sociais-democratas, longe de fortalecerem o comunitarismo, incrementaram o paternalismo social, contribuindo assim para que cidadãos assumissem o papel menor de meros consumidores.
Hillary Clinton, ao direcionar seu discurso político para os vencedores da globalização, pagou o preço da derrota para Donald Trump. Este soube levar esperança àqueles cidadãos que se sentiam marginalizados pela nova ordem globalizada. Com discurso político direcionado às vítimas da globalização, Donald Trump demonstrou a Barack Obama que o apresentador do mais famoso talk show dos Estados Unidos, tão desdenhado por ele na campanha presidencial, poderia perfeitamente presidir a nação mais poderosa do mundo. Bastava, para isso, fazer o que ele de fato fez: conquistar mentes e corações dos perdedores da globalização localizados, por exemplo, na decadente região da indústria automobilística de Detroit.
Do capital que temos ao capitalismo ético que queremos
Desde a inovadora proposta de Keynes, nos anos de 1930, da entrada do Estado na atividade econômica como forma de combater a crise, o capitalismo não teve um novo profeta. O economista Paul Collier parece que se alçou a essa condição. Inúmeros economistas de respeito, como é o caso do ganhador do Prêmio Nobel de Economia George Akerlof, entendem que as pesquisas desse autor, voltadas para o enfrentamento das novas inquietudes do capitalismo, constituem-se “no trabalho mais revolucionário de ciência social desde Keynes”.
O que propõe Paul Collier procura fortalecer nossa tribo de macacos, para tanto, considerando três narrativas previamente combinadas, quais sejam: o pertencimento a um mesmo grupo; obrigações recíprocas dentro do grupo; e, por fim, a necessária articulação entre o ato de agir visando ao bem-estar da coletividade. Resumindo: toda ação tem seu propósito vinculado ao bem-estar do grupo. Ante o exposto, uma dúvida nos parece evidente: quais desafios enfrentará o Estado brasileiro em sua busca incessante para integrar a ética na cultura de nossas organizações?
Creiam: os desafios são enormes. A começar pela nossa cultura política passar a ter uma longa relação fisiológica com a classe empresarial voltada não para formar o cidadão, mas, sim, para atendimento de clientelas; sendo assim, a mentalidade do mundo empresarial se atrela à velha máxima de privatizar os lucros e socializar os prejuízos.
Do Estado visto como organização indutora do desenvolvimento econômico-social, agora, passemos a considerar um outro tipo de organização privada focalizada em algo fundamental para que essa organização sobreviva: o lucro.
A partir desse objetivo, a ética se torna a fronteira que separa comportamentos tendo esse parâmetro como valor ou, caso contrário, a empresa adota o comportamento aético, que visa buscar o lucro a qualquer preço.
Em seus escritos, Paul Collier relata a importância de impor regras que controlem a voracidade do lucro. A empresa ética procura ser transparente nos seus propósitos, na sua missão e em seus objetivos claramente identificáveis.
Posto isso, creio ser oportuno reproduzir os danos que comportamentos não éticos acarretaram a um dos maiores bancos do mundo: o gigante alemão Deutsche Bank. Sobre esse assunto, reproduzo a história que nos conta o autor em seus escritos: “O Deutsche Bank contratou Edson Mitchell como diretor-executivo, que transformou a cultura do banco, substituindo cenários […] não se importava com a ética. Havia um vazio ético: nas sextas à noite, as equipes financeiras debandavam e iam assistir lubricamente aos shows de pole dancers; contratavam-se prostitutas para entreterem o pessoal de escalão mais alto durante as festas de Natal; e Mitchell sentia explícito desprezo pelas obrigações com a família. Aquela instituição, que logo inflou e se tornou o maior banco do mundo, era dirigida por gente de ética mais condizente com a administração de um bordel. Mitchell morreu num desastre aéreo; seu banco teve um destino semelhante.”
Quem não se lembra da absoluta falta de ética do ex-presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn. Após ter ele estuprado a camareira de um hotel em Nova York. Pagou esse Francês um alto preço na sua promissora carreira política. Além de ter sido demitido da presidência do FMI, ele foi obrigado a renunciar a candidatura da presidência da França.
Concluo estes escritos tendo em mente dois dos maiores templos do saber da academia mundial. Falo das universidades inglesas de Cambridge e Oxford. Essas foram decisivas nos momentos que o capitalismo entrou em crise. Na crise de 1929, quando parecia que esse sistema econômico não resistiria ao duro golpe e havia indícios de que o capitalismo estava com seus dias contados, surgiu a figura de um professor da Universidade Cambridge com a solução de que o Estado deveria entrar para regulamentar a atividade econômica. Por esse caminho, o capitalismo foi salvo e John Maynard Keynes se consagrou, com justiça, o maior economista do século vinte.
Nos dias atuais, as tensões vivenciadas pelo sistema capitalista foram identificadas como sendo “novas inquietações” pelo brilhante economista Paul Collier, que é professor de outro templo sagrado da academia mundial: a também inglesa Oxford. Ainda é cedo para afirmar se as ideias do professor Paul Collier elevá-lo-ão ao mesmo patamar do grande John Maynard Keynes. Entretanto, considerando as repercussões de seu “O Futuro do Capitalismo”, nestes tempos turbulentos da globalização, a voz de Paul Collier será das mais respeitadas.
Cambridge e Oxford continuam a ser o que sempre foram: dois templos sagrados da academia mundial. Verdadeiras fábricas produtoras de gênios. Portanto, se posso, caro leitor, dar-lhe um conselho, que seja este: leia “O Futuro do Capitalismo” sempre se atendo a grande dúvida que os escritos de Paul Collier sucinta: em que momento, no transcorrer da sua história ,o capitalismo foi verdadeiramente ético?
Salatiel Soares Correia é Engenheiro, Administrador de Empresas, Mestre em Ciências pela Unicamp. É autor de sete livros, dentre estes, Cheiro de Biblioteca e a Construção de Goiás.