Em qualquer lugar e em qualquer circunstância: uma carta de Edward Lear
20 janeiro 2018 às 09h59
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Contista infantil, ilustrador e um dos grandes poetas do nonsense, escritor inglês do século 19 tem carta inédita em português publicada nesta edição, enviada em maio de 1859, de Roma, ao amigo Chichester Fortescue (parlamentar irlandês)
ANDRÉA BUCH BOHRER
Especial para o Jornal Opção
As cartas escritas por Edward Lear ao longo de sua vida são parte consideravelmente importante de sua obra. Lear viajou muito, conheceu vários lugares, e durante essas viagens escrevia aos amigos contando sobre o que conhecia: sua rotina, seu posicionamento acerca de questões políticas e religiosas e seus sentimentos.
Incluía desenhos feitos por ele, e, especialmente, ressaltava através de tudo isso que era de fato um senhor inglês vitoriano, cujo olhar permanecia permeado dessa característica quando retratava o outro.
As críticas que costumava fazer aos lugares que visitava, às pessoas que conhecia e às notícias que recebia sobre acontecimentos dentro e fora da Inglaterra deixam claro que carregava consigo a influência do poderio inglês. Tudo isso acompanhado do humor leariano sempre presente.
O primeiro livro publicado com as cartas de Lear é de 1907, e foi organizado por Lady Strachey: “Letters of Edward Lear” (T. Fisher Unwin). Lady Strachey era sobrinha de Frances Countess Waldegrave, conhecida por Lady Waldegrave, e esposa de Chichester Fortescue (mais tarde, Lorde Carlingford), o melhor amigo de Lear, para quem grande parte das cartas é destinada.
A carta a seguir foi destinada a Chichester Fortescue, escrita em Roma em 1º de maio de 1859:
(Introdução – por Lady Strachey)
“A guerra entre a França e a Áustria tinha estourado, mas terminou muito rapidamente. As dificuldades na Itália, no entanto, cresceram muito em vez de diminuir à medida que os italianos descobriram que Luís Napoleão não tinha a intenção de, literalmente, cumprir sua promessa de libertá-los da dependência da Áustria.
Os movimentos nacionais contra a supremacia estrangeira e as reivindicações temporais do Papa logo começaram a assumir proporções ameaçadoras sob a liderança de Garibaldi.”
Via Condotti, Roma, Itália
1º de maio de 1859
Aqui está um balaio de gatos, não? Todo mundo está tentando fugir, mas não consegue. As estradas ao longo da Toscana estão um tanto imprevisíveis e ninguém escolhe ir a cavalo, pois esses estão sendo tomados pelas tropas. Enquanto o mesmo pânico preenche todos os barcos em Nápoles e não se consegue um lugar em Civitavecchia, onde muitas centenas de ingleses estão hospedados, conforme boatos, como os pobres do tanque de Betesda. Os últimos três ou quatro dias foram repletos de temporais, e ninguém sabe o que vem a seguir.
(O Príncipe de Gales vai amanhã).
Quanto a mim, não sei qual caminho tomar. Caso a guerra continue, ou se espalhe por novas direções, é claro que nenhum estrangeiro virá para cá, e o local ficará completamente abominável. Ainda que eu tenha alugado quartos caros por dois anos e meio e tenha gasto cada centavo para equipá-los como uma casa de inverno. Possivelmente, se as coisas ficarem piores, eu volte à Inglaterra e publique alguns dos meus relatos de viagem, vivendo de forma obscura e econômica.
Em menos de 10 dias, espero enviar os quadros de Baring e outros também. Em seguida, faço os estudos para Gibbs, Heywood e os dos quadros de Stamfield na Campagna. Logo chegará junho, época de tomada de decisões.
Se um dia eu voltar à Inglaterra, devo vê-lo na Red House, mas eu tenho que, principalmente, dar uma volta em Londres e, portanto, preferiria não voltar este ano, ainda mais que a irmã N. Z. ficará por mais dois anos, e em questões familiares não sou bem-sucedido e, como tem havido muito aborrecimento ultimamente, tento ficar de fora dessas confusões. Embora eu tenha liberado 20 libras para os parentes amáveis aqui e ali, como é justo e adequado. Meus assuntos de dinheiro não são tão lucrativos: mas não vou desistir, vou persistir.
Espero que você não esteja muito incomodado com a eleição[1], mas, preferiria que você fizesse o trabalho, porque sei que isso te empolga e é da sua natureza, presumo isso de vez em quando. O discurso do Lorde Derby sobre os heróis da Índia foi bom, mas não acho que ele ou lorde Stanley em particular tenham agido bem com o Sr. Canning, cuja carreira tem enfrentado extremas dificuldades e a falta de generosidade amargurou-o ainda mais: o Condado e o elogio não coincidem com os despachos de Ellenborough Stanley.
Sim, de fato, eu me sinto “doente de tempo” aqui. Estou cada vez mais convencido disso: se você tem uma esposa ou está apaixonado por uma mulher (ambas as fases do mesmo estado de divisão pessoal, o único estado verdadeiro e próprio da vida neste mundo), se eu disser que essa é a sua condição, [2], então pode estar em qualquer lugar e em qualquer circunstância: é poupado da necessidade de comtemplar as malditas perturbações da pobreza ou súplicas por compaixão.
Mas se está absolutamente sozinho no mundo, e provavelmente assim estará, se mova continuamente e nunca fique parado. Por isso, acho que serei compelido, e mais especialmente pela aparência das coisas no horizonte, a ir ao Japão, Nova Iorque, ou ao Paraguai, ou a qualquer outro lugar pouco tempo depois.
Andréa Buch Bohrer traduziu e apresentou a carta de Edward Lear. Ela é formada em Letras Português/Inglês, é professora de Língua Inglesa no Instituto Federal do Paraná (IFPR) e mestre e doutoranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)