Em busca da realidade de um sonho
24 julho 2022 às 00h00
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por Heloisa Helena de Campos Borges, especial para o Jornal Opção
Entre o Sonho e a Realidade é o nome do livro de memórias do médico e escritor Hélio Moreira. Trata-se de um mergulho que o autor faz em busca de importantes momentos da sua história de vida.
Mais que uma reunião de lembranças afetivas, Entre o Sonho e a Realidade é uma reflexão sobre o quanto os acontecimentos da sua juventude, muitos deles aleatórios, contribuíram para lhe assegurar determinação e capacidade de enfrentar futuras situações adversas.
Sempre com olhar observador ao que lhe era contíguo, ao que lhe parecia longínquo e, sobretudo, bastante atento aos próprios sentimentos, é interessante acompanhar a jornada do rapaz, vindo da pequenina Gaspar Lopes – Distrito de Alfenas, Minas Gerais, origem que ele jamais esqueceu, para realizar o desejo de se graduar médico.
Com irrefutável sinceridade, o autor se desdobra em narrador-personagem para recompor sua época de estudante, na cidade de Curitiba, nos anos1960.
Corajosamente, ele expõe suas fragilidades, incertezas, do mesmo modo que revela o quanto a constante e incontrolável movimentação da rotina cotidiana despertou nele a importância da realização individual, assim como a relevância das ações coletivas.
Sobre esse tipo mais abrangente de atividades, destaco o aflorar da sua capacidade de liderança e a efetivação do seu desejo inabalável de se profissionalizar na área da saúde, ambiente esse que lhe ensinou dar a devida relevância ao pesar dos que vivem em estado de carência.
Desse modo, o leitor de Entre o Sonho e a Realidade acompanha o processo de crescimento cultural do seu narrador-personagem, que, por meio de múltiplas atividades, incluindo novas leituras, discussões e ensinamentos, relata, fidedignamente, a sequência dos fatos, talvez os fundamentais, para a concretização dos diversos rumos que o destino ainda lhe ofereceria.
Entretanto, não seria honesto omitir a existência de uma força imperiosa e constante que o impulsionava, uma força antiga, creio, nutrida pelas palavras da sua mãe, que o encorajou a perseverar com os seus ideais, dizendo-lhe: “vá, meu filho, ao encontro de novas estrelas no seu firmamento”.
Como penso e acho que bem aprovaria Guimarães Rosa, digo ser, este livro, a história de uma travessia. E o resultado das travessias, com destaque as travessias relatadas por escrito, pode ser assustador.
Travessias possibilitam ao noticiador do seu processo de transformação interior rever experiências e refletir sobre os motivos que, de fato, influenciaram ou mudaram o seu modo de entender o que é ser e o que é estar no mundo.
Porém, o narrador-personagem de Entre o Sonho e a Realidade não se prende somente ao período dos anos 1950 e 1960. Concomitantemente, ele narra situações e expectativas vividas na Rússia, durante a sua curta permanência, na cidade de Moscou, no ano de1998, então, já respeitado profissional, em companhia de Marília, sua amada esposa e companheira de todas as horas.
Esta oportunidade aconteceu em consequência da sua viagem à cidade de Malmo (Suécia), para proferir o principal discurso do XIII Congresso Internacional Colon and Rectal Surgeons, Associação Internacional, naquele momento, presidida por ele.
As mudanças de tempo-espaço da narrativa, ora Rússia, ora Brasil, tornam sua narração bem interessante. Não apenas pela quebra da ambientação dos episódios, porém, sobretudo, porque ao justapor momentos importantes da vida do memorialista, anos 50, 60, 90 e 2000, esse contar não se satisfaz apenas em intercalar eventos acontecidos em tempos diversos.
Muito além, as mudanças espaço-temporais fazem com que, por meio delas, seja acompanhado o amadurecimento interno do jovem rapaz, considerando, principalmente, a movimentação cultural por ele vivida.
Para dar a necessária e intencional mobilidade que a narração pede para registrar, confortavelmente, as interrupções cronológicas, Hélio Moreira constrói sua narrativa, escrevendo-a em analepse, ou seja, com propositada suspensão da sequência temporal dos fatos, permitindo que o fluxo da história se movimente, ora para um passado longínquo, ora para outro mais recente, em vez de prosseguir a descrição dos acontecimentos, sucessivamente.
Tais deslocamentos causam, na arte de contar histórias, interessantes ‘desarrumações’, pois fogem das habituais sequências contínuas e dão valiosa maleabilidade ao processo narrativo para, simultaneamente, narrar fatos em tempos alternados, cumprindo o propósito do autor.
Desde o seu sumário, este livro exalta sua especial demarcação de tempo e de espaço:
Escandinávia 1998
Chegada em Moscou.
Alfenas
Abril de 1957.
Moscou, 1998.
Religião, o ópio do povo.
Curitiba
Tempos de aprendizado e de incertezas
Curitiba, 1959
O sonho começa a se tornar realidade
… e assim por diante.
Este livro de memórias finaliza a narração das suas lembranças com as revelações e despedidas em Moscou (1998), seguidas da tocante volta a Curitiba, no ano 2000.
Se, no primeiro capítulo – Chegada em Moscou -, o leitor acompanha o início da desconstrução, in loco, trinta anos depois, daquela crença estudantil sociopolítica ardentemente sonhada, sente-se igualmente explícito o desapontamento do narrador-personagem, causado pela sensação de mistério que envolve a não comprovação das mudanças sociais desejadas e enaltecidas por grande parte das juventudes universitárias brasileiras atuantes e ávidas por respeitosa equidade social.
Enfim, o narrador sofre com o não encontro da esperada realidade.
É longa a caminhada que o livro Entre o Sonho e a Realidade abriga, são profundas suas reflexões, seus significativos ensinamentos e o sincero propósito do memorialista de ser fiel ao revelar as emoções e os fatos vividos, tal como bem se pode perceber pelo instante transcrito abaixo, assim que ele chega a Curitiba:
Finalmente criei coragem, sentei-me na cama estreita, tentei abrir a mala
e uma sensação incrível de abandono e solidão se apoderou de mim; respirei
fundo e não me contive: chorei(…) Chorei copiosamente, choro soluçante e
amargo! (p.43)
O modo direto, minucioso, mesmo quando expõe sentimentos diversos, seja de surpresa, de solidão, receio ou perseverança, eles são descritos de maneira a prender o leitor, levando muitos a reconhecer ter vivido instantes semelhantes.
Tal aproximação do leitor com a narrativa é uma importante e temida característica dos textos literários, porque eles têm o poder de não restringir descobertas, erros e acertos somente às suas personagens.
Por isso, a literatura tem o poder de redimensionar objetivos e direções pessoais, porque ela é uma ardilosa e liberta maneira de ler e de compor universos vários. Vem daí, o temor da sua influência. Daí, o seu poder de causar transformações ingovernáveis e consequências sem medida.
Não é por acaso que Entre o Sonho e a Realidade faz o leitor conhecer ou reconhecer muito do que se passou na História do Brasil, muito do que foi sonhado, muito do que foi vivido, pela juventude e, também, a aflição revisitada do que sempre será atemorizador.
A demorada permanência do memorialista nos acontecimentos do passado se justifica, pois é por meio dessas lembranças que grandes amizades são revividas, amizades as mais importantes, talvez, da sua juventude, que se estenderam para a maturidade, pois contribuíram de modo indelével e inesquecível para o ampliação do seu entendimento político e cultural.
Foi a vivência desses momentos que lhe possibilitou descobrir novos valores, outros critérios, fazendo-o não apenas rever a história política e cultural tanto universal, quanto brasileira e, também, repensar a sua existência, como bem se vê na citação abaixo:
Discutíamos horas seguidas, às vezes até tarde da noite, realmente gostava
de ouví-lo; (Darci) era possuidor de uma cultura geral impressionante; na
sua presença, sentia o quanto eu não sabia. (p.51)
O acompanhamento dos detalhes que as narrativas grafam para mostrar a transformação das suas personagens é característica dos chamados romances de formação – Bildungsroman, um tipo de narrativa, cujo enredo expõe o processo de desenvolvimento, seja físico, moral, psicológico, estético, social ou político, das suas personagens.
Portanto, a descoberta de traços com este perfil no discurso do personagem-narrador faz com que o livro Entre o Sonho e a Realidade possa também ser classificado como da tipologia do Bildungsroman, pois, quando são revelados sentimentos que experimentou, discussões que o prepararam para passar de um estado de compreensão pueril para outro bem mais amadurecido, assim como as ‘lições’ que lhe proporcionaram bem mais e variados conhecimentos, provocando nele muitas outras indagações, essas são características dos relatos de formação.
Por ocuparem lugares importantíssimos para o seu amadurecimento e formação cultural, incluindo conhecimentos histórico e literário, alguns colegas são repetidamente citados: Darci, Sokolowsky, Barbosão, Gilberto, Herber, Vivaldo, Rafael, Péricles, Doc, Pe. Gustavo, além de muitos outros.
Exemplo da importância que os colegas e amigos exerceram na sua vida, é desta maneira o memorialista Hélio Moreira se refere a um deles:
Dr. Paulo, carinhosamente eu o chamava de Doc, foi a estrela-
guia da minha vida em Curitiba; foi ele quem me ajudou nos
primeiros tempos, em todos os tempos…foi meu pai, foi minha
mãe, foi meu irmão mais velho, foi meu amigo sincero. (p.39)
Inclusive, foi o Doc que, em um momento de drástica e necessária escolha, aconselhou-o assim:
– Você, como médico, terá oportunidade de exercer outro
tipo de liderança e continuar repercutindo suas ideias vida
afora. (p.244)
E assim se passou!
Agora, o último capítulo:
Curitiba 2000 – De volta ao passado!
Como todo epílogo, este também é de grande importância para colocar, de fato, o ponto final deste livro de memórias.
Os quarenta anos revividos podem ser vistos como um périplo interior, uma circum-navegação existencial que, para completar satisfatoriamente o ciclo revisitado, volta sempre ao seu ponto de partida.
Trata-se, pois, de uma viagem valentemente enfrentada para reencontrar, principalmente, traços da vida interior experimentada em um tempo passado, tempo que, todavia, não passou e está sempre à mão para ser rememorado.
Posso atestar a relevância das palavras que expressam esses instantes pela sinceridade com que são revelados, assim como também elas testemunham a preocupação social da juventude estudantil dos anos 1960, o momento difícil das escolhas juvenis, cujas consequências ecoariam fortemente nos dias futuros, mesmo que quarenta anos passados.
Portanto, este último capítulo descreve o desejo de reencontrar o passado, naquele momento presente. E, com tal intenção, o memorialista refaz todo o percurso diário que ele realizava, na cidade de Curitiba, em busca do que lhe faltava. E a constatação é sofrida. Tudo mudara! Apenas um funcionário daquele tempo continuava trabalhando: Alcebíades. E, com ele, foi feito o “roteiro da saudade”.
Muito foi lembrado, muito foi analisado para o memorialista chegar à conclusão de que os estudantes de curso superior daquele tempo tinham visão política muito mais aprofundada do que os dos tempos atuais, apesar da facilidade contemporânea de informações.
Foi muito interessante acompanhar o nosso narrador ser questionado por alunos do tempo presente se ele acreditava ter sido, aquele tempo passado, melhor. Ele, honestamente, respondeu não saber, porém completou seu pensamento dizendo achar impossível que alguém, principalmente sendo estudante universitário, não parasse para analisar ou se revoltar com tamanha e visível desigualdade social. (p.272)
E reforça essa opinião, escrevendo:
Não há ajuste financeiro capaz de se sustentar com a miséria de
milhões de desassistidos.
Chegando ao final da minha leitura, gostaria de enfatizar o importante alerta que o escritor Hélio Moreira faz para todos os leitores. E como suas palavras me causaram forte sentimento, prefiro repeti-las, tais como ele escreveu, para alcançar todos os que possuem a mesma vontade de fazer uma volta ao passado:
Não se arrisque a voltar ao passado se não estiver bem seguro dos
riscos que neste caminho irá enfrentar(…) Volte consciente de que a marcha
do tempo é irrecorrível(…) Volte devagar, pé ante pé, pise o chão com
cautela(…) Se você tiver vontade de chorar, não se acanhe, faça-o, porém
faça-o bem baixinho(…)(p. 278/279 )
Ainda apresentando uma última opinião, digo que a importância de um livro de memórias não se restringe em narrar lembranças ao acaso, a ‘passar a limpo’ experiências vividas.
Muito mais, um livro de memórias é um fascinante porta-voz da história de vida de um período de tempo, protegendo-o, singularmente, de um desaparecimento irrecuperável, pois as experiências narradas cumprem o desejo dos memorialistas que, mais que tudo, desejam trazê-las ao clarão da reflexão.
Além de que o exercício franco da rememoração e da meditação proporciona a todos que o praticam, uma melhor e precisa compreensão deles mesmos.
A partir deste viés, posso seguramente dizer que o livro Entre o Sonho e a Realidade é o resultado do mergulho profundo que o autor faz dentro de si, para reviver alguns dos mais importantes acontecimentos da sua vida, confirmando o quão eles o fortaleceram e o informaram nos universos histórico, cultural e pessoal.