Elos da Mesma Corrente, um clássico literário goiano de Rosarita Fleury

21 junho 2025 às 21h01

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Mariza Santana
“A família é como uma corrente. Uma porção de elos presos uns aos outros. Em toda família esses elos deviam ser bem fortes, bem resistentes, bem rijos, de sorte a representar uma força capaz de se fazer respeitar e contra a qual ninguém pode abrir lutas.” Com essa declaração, o patriarca coronel Alfredo da Silva Prado Vilhem busca reforçar, junto aos seus numerosos filhos, como deve ser o relacionamento familiar no clássico literário goiano “Elos da Mesma Corrente”, da escritora Rosarita Fleury.
Esse sentimento de pertencimento a um clã familiar da antiga Vila Boa, hoje Cidade de Goiás, permeia toda a obra, publicada em 1958 e, no ano seguinte, laureada com o Prêmio Júlia Lopes de Almeida da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Elos da Mesma corrente” é um romance com cheiro de sertão, permeado de descrições das belezas naturais da Fazenda Santa Lúcia, onde os Vilhem moram a maior parte do tempo. É também um retrato detalhado da época. A narrativa começa no período da escravidão, passa pela Abolição dos escravos e se encerra em 1899, já no alvorecer dos anos 1900 e de um novo século que viria a seguir.
No início do romance, o coronel Alfredo se orgulha da prosperidade de sua fazenda e do fato de suas filhas estarem sendo educadas em colégio francês. Mas, no decorrer da narrativa, o leitor vai acompanhando os dramas de suas filhas, que, embora bem-educadas, são sinhazinhas voluntariosas e de personalidade forte. As moças, filhas de Alfredo e Ângela, seguem em busca de um bom marido nos eventos sociais, praticamente restritos aos bailes no Palácio Conde dos Arcos. No lado amoroso, são muitas as alegrias e desilusões, os desafios e as conquistas.
O filho mais velho, Ernesto, traz consigo uma maldade intrínseca, que incomoda as irmãs, mas é tolerada pelos pais. Afinal, são todos “argolas de uma mesma corrente” e devem se proteger mutuamente.
O romance mostra como era a relação senhor-escravo, os costumes rígidos da época para as mulheres, que deviam ser recatadas, além da fartura de comidas, frutas e doces da fazenda. E descreve as dificuldades econômicas surgidas após a Abolição, por meio da luta para manter a propriedade produtiva ao não contar mais com a facilidade da mão-de-obra escrava.

Nesse contexto, emerge a personagem mais forte de “Elos da Mesma Corrente”: a filha mais velha Izabel que, após uma desilusão amorosa, se dedica à administração da Fazenda Santa Luzia ao lado do pai.
Apontada como “solteirona”, Izabel vai quebrando barreiras e impondo sua autoridade aos irmãos e irmãs, principalmente após a morte da mãe. Izabel é sinônimo da força da mulher goiana, mesmo em uma época adversa, o que mostra o pioneirismo de Rosarita Fleury ao abordar o tema do feminismo, ainda incipiente no Brasil Central naquele período.
Entre tantos problemas, porém, os Vilhem, exemplo de família goiana abastada de latifundiários do final do século XIX, se unem nos momentos de dificuldade. Afinal, são “argolas da mesma corrente”.
O romance traz um registro detalhado, das relações sociais e políticas, dos costumes e tradições do período, garantindo ao leitor sentir o cheiro do mato e se enveredar no cotidiano de uma cidade do interior do País. Por isso, mantém o frescor, apesar de ter sido publicado há quase 70 anos.
Na parte final do livro, o anúncio do fim do mundo feito por um astrônomo famoso no Rio de Janeiro, e marcado para o dia 13 de dezembro de 1899, causa alvoroço entre os integrantes da família Vilhem e também nos demais moradores da antiga Vila Boa.
A descrição da reação dos personagens é delicada, e ao mesmo tempo sensacional. Rosarita Fleury escreveu uma obra-prima, em cujas páginas é possível encontrar a verdadeira alma goiana.
Nascida em 1913 na cidade de Goiás, e falecida em 1993, no Dia da Poesia, Rosarita Fleury foi poeta, escritora e biógrafa. Após se mudar com a família para a nova capital, Goiânia, em 1936, participou da idealização da primeira biblioteca da cidade. Ela foi uma das idealizadoras da Academia Feminina de Letras e Artes (Aflag) e em 1969 ingressou na Academia Goiana de Letras (AGL).
Mariza Santana, jornalista e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.
[Email: [email protected]]