Editora goiana que quer incentivar o surgimento de novos e jovens autores lança duas antologias e marca a entrada de 26 autores inéditos no mercado literário brasileiro

Antologias “As Dores de Josefa”, de contos, e “Os Olhos do Bilheteiro”, de poesias, trazem 26 autores nunca publicados | Foto: Divulgação
Antologias “As Dores de Josefa”, de contos, e “Os Olhos do Bilheteiro”, de poesias, trazem 26 autores nunca publicados | Foto: Ângela Macário/Reprodução

 

“Se a parte de mim se prostra
Se a outra parte tem asas
Quebro-me se fico ou passo
Parto-me.
Vou
E sigo aqui.

Avante, vou em pedaços
Envolta em braços ausentes
Carregando aquele olhar
Ora castanho
Ora verde-mar.”
Regina Magnabosco

Marcos Nunes Carreiro

São livros lindos. Foi a isso que se propôs Larissa Mundim quando deu vida a Nega Lilu Editora — “Fazemos livros lindos”. E lindos eles são também por dentro; basta adentrar aos universos de “Sem Pala­vras” e “Agora Eu Te Amo”, por exemplo, livros da própria Larissa, ou mesmo das antologias “Os Olhos do Bilheteiro” e “As Do­res de Josefa”, lançadas há pouco mais de uma semana. As publicações, que enlaçam 31 autores, marcam o lançamento de es­critores recém-chegados ao mundo da publicação, que tem lá seus pormenores. São 26 autores inéditos. Entre eles, está o editor do Opção Cultural, Yago Rodrigues Alvim. Nesta entrevista, Larissa fala da importância de apresentar novos autores ao público e de, parafraseando a epígrafe das obras, “fazer sem saber que era impossível”.

Quando surgiu a ideia de reunir novos autores em uma antologia?
Foi em 2014, enquanto eu ainda realizava um giro promocional de divulgação do meu primeiro romance de ficção, “Sem Palavras”. Percebi que, com o incentivo da Lei Goyazes, consegui produzir o livro e busquei formas de divulgá-lo. Assim, aquele caminho que eu estava percorrendo poderia também ser o caminho de muitos outros autores que iniciaram re­cen­temente, como eu, ou que desejariam iniciar uma trajetória literária.

Além de autora, tenho a Nega Lilu Editora, que está para além da produção de livro, e eu sempre a vi como uma editora que não atua como uma editora apenas, pois nos envolvemos em ações de estímulo à leitura, de busca de alternativas para circulação da produção literária e, ainda, o apoio a novos autores, o fomento à qualificação de novos autores. Considerando todos esses aspectos que compõem a cadeia da produção literária, iniciamos este trabalho, que não só produz um livro, como também estimula e qualifica novos escritores.

E como foi o processo até chegar ao lançamento?
Pensei, então, de que forma poderíamos fazer isto democraticamente, uma vez que eu poderia simplesmente convidar autores que eu conheço e admiro e reuni-los em uma publicação financiada ou, mesmo, buscar recurso público por meio dos incentivos. No entanto, eu queria realizá-lo de forma democratizada. Ainda em 2014, abrimos um edital que tinha como missão fazer seleção de poemas e contos para duas antologias: uma poética e outra de prosa.

Tivemos um número enorme de inscritos, o que confirmou a efervescência da produção entre novos autores. O edital visava alcançar autores inéditos ou com até cinco anos de experiência. Com procura e impacto grandes, realizamos um processo seletivo, a partir de um processo editorial que envolvia pessoas com trabalho reconhecido como o poeta e compositor Carlos Brandão, a jornalista e revisora Daniela Marcacini, o Coletivo Evoé, representado na ocasião por Giovana Belém Ogando, Ks Nir Baks e por mim.

Escolhemos, de forma anônima, os textos a partir da leitura e, com a pontuação dada, julgamos os diversos textos e selecionamos 40 “poéticos”, mas os de prosa não cumpriram o objetivo e, por isso, não fechamos um volume que não alcançasse determinada qualidade. Aguar­damos e, em 2015, quando reabrimos o edital, ampliando o escopo de participação de contos para contos e crônicas, reiniciamos o processo de seleção. Tivemos novamente um grande número de escritos e encontramos 15 novos textos que tinham qualidade, considerando inéditos e já editados. Foi assim que fechamos as duas antologias.

As antologias contam com o apoio de leis de incentivo. Qual a importância disso?
Optamos pelas leis de incentivo e tivemos o apoio para a publicação dos livros, que têm o público que essas leis desejam estimular, que é quem precisa de fomento — no caso, os novos autores. Aprovado o projeto pela Lei Municipal de Incentivo a Cultura, os textos foram editados, com um lançamento realizado no dia 12 de agosto, em um evento muito bem sucedido e com muitos participantes.

O projeto foi, de ponta a ponta, bem sucedido, pois, desde o momento que abrimos o edital, realizamos um programa permanente com atividades de qualificação dos novos autores e de outros autores, também iniciantes, que estão na cidade. Todos foram convidados a participarem de palestras, seminários, bate-pa­pos, cursos, oficinas, feiras — ao todo, fo­ram realizadas 54 atividades, entre 2014 e 2016.

Por mais que todos não tenham participado, os autores foram estimulados e quem esteve presente aproveitou o contato com outro autor, a conversa com escritores iniciantes, ou mesmo com os profissionais que ministravam os cursos e oficinas. Abriremos o edital novamente e ele permanecerá aberto por um período maior que o anterior, uma vez que o nosso novo desafio é sensibilizar autores e autoras também do interior de Goiás. Talvez, o edital siga aberto até novembro.

São duas antologias. Conte um pouco mais sobre elas.
As antologias foram compostas por autores selecionados e ainda alguns convidados que compuseram o conteúdo — estes também contemporâneos, cuja obra aborda o conteúdo dos novos autores e, assim, temos um diálogo muito produtivo. São escritores com características diversas, o que é a grande riqueza das antologias. Dentre as temáticas, estão a cidade, as humanidades, a cultura — os três grandes temas que temos discutidos de diversas formas, com narrativas, estilos e técnicas diversas. A cultura regional ainda é impactante na escolha de temas dos novos autores, por mais que sejam jovens de 20 e poucos anos. No entanto, em uma contagem, existe a prevalência do urbano nas narrativas.

Os trabalhos são ousados em termo de novas experiências de linguagem. A tentativa de uma produção de conteúdo que seja reconhecida pela qualidade, pelo conteúdo e pela estética contemporânea é bastante surpreendente. Talvez, por ser próprio do autor iniciante, e eu me coloco entre eles, com a preocupação de apresentarem uma escrita de qualidade que é muito bem-vinda e, até, um trampolim para saltos maiores.

Destacamos alguns autores que surgem de forma mais amadurecida e outros de formas mais criativas, mais ousadas e experimentais, como disse, o que é muito variável e nos deixa bastante satisfeitos por perceber que houve um trabalho de seleção para que conseguíssemos uma diversidade nas antologias.

Existe uma quantidade muito grande de poetas em atuação, estimulados pela oralidade dos poemas, estimulados por diversos projetos, com iniciativas de autores e grupos de poetas e coletivos. O número de poetas é grande e isso também é surpreendente. O resultado é o leitor quem vai dizer, mas me parece que, há muito tempo, em Goiás, não temos a oportunidade de reunir, em antologia, o que há de mais recente e em desenvolvimento na literatura que nessas obras — temos as antologias dos nossos medalhões da literatura, mas as dos novos, vemos com menor frequência.

Larissa Mundim: “Nossos livros têm um esforço enorme para que não sejam tradicionais” | Foto: Reprodução
Larissa Mundim: “Nossos livros têm um esforço enorme para que não sejam tradicionais” | Foto: Ângela Macário/Reprodução

As obras, então, refletem algo maior feito na literatura goiana e, consequentemente, nacional. Como percebe isso?
Nossa satisfação é de ver antologias de grande importância, em que reconhecemos uma responsabilidade maior, pois estamos oferecendo à sociedade um produto literário que é resultado de um projeto totalmente democratizado. É motivo de muito orgulho para gente. Certamente, dentre os novos autores, teremos muitos que começarão a lançar seus próprios livros, como Car­los Edu Bernardes e Dairan Lima, am­bos da antologia poética. Dairan é alguém que já precisava ter seu livro solo lançado; e, como autora selecionada pelo edital, a obra ganha visibilidade na Nega Lilu e juntamos, por fim, esforços para publicação do livro dela, por meio de leis de in­centivo.

Vejo, portanto, a antologia como um lugar que dá para verificar se o outro tem produção frequente ou de gaveta, se tem potencialidade para ter seus voos solos. A Dairan não é a única; nós temos conversado com outros autores para publicação de seus livros individuais.

Elas, as duas antologias integram a Coleção e/ou, que é uma coleção de novos autores, publicados pela Naduk, um selo da Nega Lilu voltado justamente para novos autores. Além da coleção, podem ser publicados pelo selo novos autores individualmente, como um livro do Yago Rodrigues Alvim [editor do Opção Cultural], que participa da antologia de contos, e de outros que tenham trabalhos ousados e queiram se lançar.
Quanto aos títulos das obras, de onde vieram?

“Os Olhos do Bilheteiro” vem do poema da Regina Magnabosco, que é um poema maduro e nos instiga nos campos das humanidades. Pelo valor do conjunto da obra da Regina e da intervenção que o poema é capaz de fazer no trabalho de coletânea, ao ponto que as pessoas em uma cadência de leitura, pela beleza e pelos signos contidos ali, queiram se deter ali, quisemos fazer este destaque. E é um ótimo destaque.

“As Dores de Josefa” é um dos contos mais ousados da antologia de prosa. Temos muitos textos bonitos, bem escritos e bem elaborados, mas “As Dores de Josefa” representa o início de uma produção bem-sucedida de uma autora muito jovem e talentosa, a Manuela Costa.
Ela o escreveu aos 17 anos e é um conto que trata de uma temática ousada, de um assunto tabu, como a masturbação feminina e ainda o incesto e a contemporaneidade dos assuntos em um ambiente rural, semiárido, com toda a precariedade de famílias que são submetidas a condições menos dignas de vida, e oferece, assim, a oportunidade de viagem até este lugar.
A escolha tem relação com o poder que enxergamos nesse conto, que tem todas essas características, com uma autora muito nova, mas com capacidade de ter sido escrito por um autor experimentado.

Quem está “por trás” da produção das antologias?
No trabalho das antologias, temos a autora de capa Beatriz Perini e um projeto gráfico de Luana Santa Brígida, que trouxe um aspecto bastante contemporâneo do trabalho, com uma ótima apropriação do trabalho artístico da Perini e ainda um trabalho de designer gráfico com a valorização de novos autores. Reparamo-nos um miolo constituído em dois papeis, um com papel sulfite, com os textos, e outro de papel jornal, no qual publicamos as minibios dos autores.

A produção gráfica é do Carlos Sena, pois a possibilidade que temos de produzir com excelente custo benefício e aproveitamento do recurso público, que chega por meio das leis, são graças ao trabalho dele. Já a coordenação editorial é minha, a partir do que aprendi fazendo os meus próprios livros.

A possiblidade de lançar mão de um projeto gráfico que seja mais livre é prerrogativa do selo, da editora Nega Lilu. A peça identifica um jeito diferente de fazer literatura e fazê-la circular. Nossos livros têm um esforço enorme para que não sejam caretas, para não que não sejam tradicionais, porque efetivamente eles não são. É um trabalho dedicado, sobretudo devido ao que temos hoje em Goiás, que é um trabalho de gráficas que se dizem editoras ou de editoras que não têm o interesse de produzir inovando. Por isso, desafiamo-nos a inovar.

Como você vê o mercado editorial literário?
Na cadeia produtiva tradicional, nós temos os diversos papeis sendo cumpridos de forma muito limitada, a exemplo de livrarias que cumprem unicamente o papel de livraria e, raramente, desenvolvem atividades de estímulo à leitura para ampliar e desenvolver seu público consumidor. Temos ainda as distribuidoras que não têm nenhum comprometimento com o autor ou com o leitor e atua apenas como mediador entre o autor e a livraria.

E, ainda, temos as editoras que, muitas vezes preocupadas com sua sustentação, estimulam algumas atividades de leitura, já que o contato com o público consumidor é muito importante. Porém, em muitos alguns casos, se o autor, que é a pessoa por trás da obra literária, deseja circular nacionalmente com sua obra, tem de se submeter a contratos abusivos, que, com seus papeis estratégicos, muitas vezes fazem uma proposta muito comprometedora no aspecto financeiro da cadeia produtiva, assim como fazem as livrarias. Esta é uma prática no mercado editorial tradicional do livro que vem do século 19.

De forma exemplificada, se um preço de capa é de R$ 100, o autor fica com, no máximo, R$ 7, e o restante é distribuído entre os outros três agentes da cadeia. Essa prática desfavorece o autor, que é protagonista do processo. Portanto, uma editora independente como a nossa, pequena e que não trabalha com distribuidoras formais, mas que busca alternativas de circulação do próprio produto, tem como essência o desejo de romper com este sistema estabelecido, buscando alternativas.

Quais alternativas?
Temos inciativas como a e-cêntrica, uma rede nacional que está em processo de ma­peamento e que irá traçar estratégias que minimizem a invisibilidade de autores que estão produzindo no Norte, Nordeste e no Brasil-Central. Temos também, como responsabilidade nossa, o desejo e o comprometimento de continuar promovendo ações permanentes de qualificação de novos autores, que são estes que iremos lançar e que irão arejar a cena literária do estado e participar do mapa literário do Brasil. E ainda temos como missão apoiar iniciativas que estimulem a leitura, afinal, precisamos qualificar o leitor para compreensão do trabalho que temos feito.

Se nos detivermos apenas no papel de editora, certamente seria insuficiente e insa­tis­fatório, uma vez que, se no principio a Ne­ga Lilu Editora surge no mercado editorial in­dependente, declarando-se uma editora que deseja ou que faz livros lindos, passada a etapa de conhecimento e know-how de produção destes livros, imediatamente de­pois, isso fica insuficiente. Por isso, nós nos envolvemos com ações que estão distribuí­das de forma ampliada na cadeia produtiva.

Buscamos inovar. Queremos não ter um distribuidor formal e buscar al­ter­nativas que, muitas vezes, não existem. Por isso, vamos fechando redes, a partir de no­vas tecnologias, principalmente, e de feiras de publicações independentes e outras redes dis­poníveis físicas e virtuais e formas de difusão do produto, estimulamos a circulação a par­tir da formação de leitores. Se mais editoras se preocupassem com esta nova postura, teríamos leitores mais motivados, autores produzindo mais e melhor e, assim, uma cultura mais difundida do consumo do livro, a partir de formas alternativas de circulação dele. l

 

Leia um trecho do conto “As Dores de Josefa”, de Manuela Costa, que dá nome à antologia de prosa recém-lançada pela Nega Lilu Editora:

“Josefa era uma menina mirradinha e atrevida que ninguém dava nada por ela. Era uma mulatinha magricela que não passava dos 16 anos, mas não se sabe ao certo, porque a mãe quando não estava grávida, estava parindo e há muito deixara de contar os filhos e acompanhar quando qual nascera. Vivia com a vasta família de sabe-se lá quantos irmãos e pais diferentes numa casinha de pau a pique onde a cada mês a relação de moradores mudava – era filho saindo e varão entrando o tempo todo. Sua mãe era uma matrona roliça e solta, que andava pra cima e pra baixo carregando o pesado corpo e mascando fumo. (…)
“Quando pequena, não largava do rabo de saia da mãe e sonhava em ser doceira de fruta cristalizada e figo em calda, mas conforme foi espichando e já podia sentar na porta da casinha dos avós quando caía a negritude do céu pipocado de luz, ficava sonhando em ser daquelas moças que pintavam unhas, bocas e olhos e usavam umas meias compridas e vazadas, percorrendo esquinas de terra em saltos carcomidos.”