Documentário expõe Joan Didion do vigor à fragilidade
25 novembro 2017 às 09h35
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Jornalista e escritora americana tem vida e obra narradas num belo filme, que dá um tom de passagem, uma mostra do tempo como artista da vida; laudatório, mas emocionante, íntimo, mas irradiador do universo sobre o qual ela escreveu
Este ano, a Netflix produziu um documentário horroroso sobre Lady Gaga. Para compensar, lançou “Joan Didion – The Center Will Not Hold”, um filme maravilhoso sobre a jornalista e escritora americana. Os fãs do gênero provavelmente discordam, porque se trata de uma peça laudatória.
É um documentário “sem controvérsias, em que os conflitos são evitados, mais próximo do retrato oficial do que de uma biografia elucidativa”, como disse Richard Brody, na revista The New Yorker. Mas é um filme bom de se ver.
As cenas de entrevista mais atuais, postas como fio condutor da narrativa, são especialmente tocantes. Nelas, acompanhamos os movimentos sofríveis e frágeis de uma mulher de 82 anos (fará 83 no dia 5 de dezembro), medindo 1,52m.
O modo como ela ergue as mãos – de pele fina e ossos quase à mostra, movendo-as sobre os ombros para buscar algo no fundo da memória – resulta num tipo de drama que causa ternura. Junto à magreza e fragilidade física, aparecem suas veias gordas saltadas como raízes extensas de uma árvore antiga.
Soprador de destinos
A gente não imagina escritores, artistas e pensadores na figura da velhice. Quando pensamos neles, a imagem que vem é a do vigor intelectual, da vida plena. Não pensamos em Sigmund Freud como o velhinho neurastênico de um vídeo que circula na internet. Jean-Paul Sartre é imaginado sempre como o pensador virtuoso e genial, com sua feiura altiva, e não como o sujeito cego e sofrendo de incontinência urinária, na antecâmara da morte.
Quem conhece a obra de Joan Didion e sua história de jornalista vigorosa em revistas como Vogue, The New Yorker, New York Review of Books, Life, imagina-a bela, inteligente, com um olhar incisivo, aqueles olhos castanhos-escuros e profundos das fotos. Ao vermos o documentário, o que temos é uma figura no prenúncio de um desaparecimento físico, embora completamente lúcida.
Isso dá ao filme um tom de passagem, uma mostra do tempo como artista da vida. Soprador de destinos. Quando Joan Didion surge velhinha na tela, as coisas parecem mais humanas, mais palpáveis. E não vemos no seu olhar nenhum rancor, nenhum medo, só ternura e vontade de contar sua história.
O leitor que acompanha a saga dos jornalistas escritores, volta e meia se depara com o nome de Joan Didion. Ela é um dos três que estão na capa do livro “A Turma Que Não Escrevia Direito: Wolfe, Thompson, Didion e a Revolução do Novo Jornalismo”, de Marc Weingarten (Record, 2010), justamente porque o autor a considera uma revolucionária da linguagem. “A prosa de Didion era econômica, afiada para cortar fino”, diz Weingarten em seu livro.
Resistência e amor
Muitos leitores brasileiros já leram “O Ano do Pensamento Mágico”, o livro mais emblemático de Didion, mais impactante e mais dolorido porque trata do luto pela morte do marido. Esse jogo entre a vida familiar e seu trabalho como escritora, o modo como ela apura sua escrita, é a tônica dominante do documentário, dirigido pelo sobrinho dela, Griffin Dunne.
Seu casamento com o também escritor John Gregory Dunne durou 40 anos, até a morte dele. Em muitas cenas recuperadas, lá estão os dois sendo entrevistados. Ele, ao lado dela, elogiando-a, relembrando fatos, costurando a memória. Neste sentido, o filme também narra uma história de amor, mesmo ela demonstrando delicadamente resistência à pieguice amorosa.
“Não sei o que significa se apaixonar, isso não faz parte do meu mundo”, diz ela com objetividade jornalística. Mas na metade do filme, vemo-la confirmar o depoimento de amigos, segundo os quais, ela e o marido estavam sempre juntos. John terminava as frases dela: “Ele não só atendia o telefone e terminava minhas frases, ele era o intermediário entre mim e o mundo em geral”, diz Joan. Isso é uma declaração de amor.
A vida dos dois se entrelaçava até nos nomes, Joan e John. Ele morreu em 2003. No documentário, Joan fala da morte do marido com a mesma dignidade demonstrada nos outros assuntos, sem sentimentalismo, embora algo de triste transpareça nos seus olhos. “Ela nunca deixa nenhum desconforto que esteja sentindo vir à tona”, diz o dramaturgo David Hare em seu depoimento sobre a amiga.
“A vida muda rápido”
Joan escreveu “O Ano do Pensamento Mágico”, em 2005, pouco antes de Quintana, a filha única do casal, morrer também, aos 39 anos. Esta morte a fez escrever o livro seguinte, “Noites Azuis”, para lidar com a mesma dor que agora se desdobrava. Os dois livros estão traduzidos no Brasil.
“O Ano do Pensamento Mágico” já traz no subtítulo da tradução brasileira uma lição, prenúncio do que o leitor encontrará por dentro: “A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.”
“Joan Didion – The Center Will Not Hold” é um documentário caseiro, por assim dizer, como o da Lady Gaga, mas, ao contrário deste, aquele é bem conduzido. Rachel Syme, do New York Times, diz que é uma carta de amor da família a Joan. O significado do título, “o centro não vai durar”, traduz a época de turbulência, quando Joan começou a escrever. O lugar das regras, o centro, estava desmoronando.
Seu primeiro livro de reportagens literárias, de 1968, que a ascendeu para a fama, foi “Slouching Towards Bethlehem” (“Aos trancos e barrancos rumo a Belém”, em tradução livre). Nele, Joan tratou da efervescência do mundo hippie em San Francisco, que estava sendo invadido pela violência. “O mundo como eu conhecia não existia mais”, diz. Foi quando ela começou a evidenciar a fragmentação e a desordem, e passou a ter uma predileção pelo extremo que a seguiu pela vida toda.