A desilusão romântica segundo Philip Roth
29 julho 2017 às 11h24

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Em “O Professor do Desejo”, o sumiço da atração carnal confere à história narrada um clima de inadequação com as normas sociais revelado num pathos deveras trágico

J.C. Guimarães,
Especial para o Jornal Opção
O conto “A dama do cachorrinho”, de Tchekhov, termina com uma frase composta onde se lê: “o mais difícil e complexo apenas se iniciava.”, ou seja, a vida em comum entre Dmítri Gurov e Ana Sierguéievna, recém unidos pela paixão. Eis um possível ponto de partida para “O professor do desejo”, de Philip Roth. Roth é talvez o escritor norte-americano mais importante, ainda vivo (em minha opinião o outro nome que podemos cogitar é o de Cormac McCarthy).
Aos 84 anos de idade é lamentável que Roth tenha perdido a última edição do prêmio Nobel de Literatura para Bob Dylan: compreensível se o perdesse para Ian MacEwan, alguém que consegue ombreá-lo em seu próprio terreno e muito provavelmente seu equivalente na terra da rainha. Autor de vasta obra de ficção, quase toda composta de romances, Roth consolidou-se no circuito literário a partir de seu terceiro livro, “O complexo de Portnoy”, lançado em 1969, para muitos seu livro mais significativo. Pode ser, embora o leitor não precise concordar com o julgamento da crítica. Em obras seguintes Roth retomaria o tema do desejo sexual, porém de forma menos escrachada, menos explícita, menos agressiva; e também com mais ação e menos fluxo de consciência.
Sou dos que preferem, por exemplo, “O Professor do Desejo” (tradução de Jório Dauster), de 1977, obra composta de cinco núcleos dramáticos: a universidade e a descoberta da sexualidade, intensificada pelo relacionamento com uma certa Birgitta, na Suécia; o retorno para casa e o conhecimento de Helen Baird, futura esposa; o ocaso com Helen e as amizades do casal Schonbrunn e Ralph Baumgarten, além do terapeuta Klinger; por fim, o surgimento de Claire Orvington e um novo pacto matrimonial. Pararelamente a tais acontecimentos Kepesh descreve, desde a primeira linha, a própria infância e juventude e a decadência do negócio familiar, em sucessivos reencontros entre mãe, pai e filho, donos de um antigo hotel.
Outros leitores talvez concordem que no núcleo da trama está Helen – quando tem início a aventura conjugal – mas que o ponto alto é o relacionamento com a segunda esposa, Claire. É o momento em que Kepesh reincide no casamento e aprende as lições mais luminosas sobre a experiência conjugal, a partir da percepção masculina.
A meu ver a tensão está toda concentrada neste fato: o apetite sexual do protagonista não tem fim, mas o lastro matrimonial obriga-o a concentrá-lo apenas no objeto amoroso, algo que não resiste ao curso dos anos – ao menos de seu ponto de vista. O erotismo é um tema com o qual poucos autores lidam tão bem quanto Philip Roth, aqui e em obras como “Indignação”, “O animal agonizante” e “O teatro de sabbath”. O problema insolúvel é que o desejo acaba, ou, quando menos, requer sempre experiências diversas para se manter aceso, o que, no limite, inclui a perversão (a melhor terapia de casais conhecida, embora seja também a mais arriscada). Em “O Professor do Desejo”, o sumiço da atração carnal confere à história narrada um clima de inadequação com as normas sociais revelado num pathos deveras trágico.
Este diagnóstico aponta para a existência sim de uma literatura masculina e de uma literatura feminina, de sorte que traduziriam universos psíquico e emocionais claramente distintos. É natural que seja assim, que cada gênero enxergue a realidade em seus próprios termos, e aqui me valho de um exemplo também literário: o conto “A égua”, da chilena Marcela Serrano (em “Doce inimiga minha”, Alfaguara).
Vá lá que Ana María, a protagonista de Serrano, é uma senhora atormentada pelo fantasma da mulher jovem, ameaçando sua própria união, reconhecendo que “Ás vezes, em raríssimas ocasiões, se perguntava se na verdade era sexo o que na verdade lhe agrada ou se era Víctor dedicado ao sexo com ela.” Ou então, sobre o marido com tumor prostático: “sentiu que, por fim, tinha o controle da situação. Um marido impotente a gente controla.”
Já o ponto de vista de Roth sobre relacionamentos amorosos é eminentemente masculino, reforçando a ideia de que o que mais excita os homens por certo não é a vaidade, ao contrário das mulheres, e sim sexo puro e simples – o mesmo que Víctor, marido de Ana, busca em outra – a “égua” – ainda cheia de viço e fogo.
As situações criadas em “O professor do desejo” deixam muito claro a visão rothiana e quiçá dos homens em geral. Depois de casados e tendo superado a fase de descoberta, intensamente apaixonada (quando ambos “seriam capazes de arrancar pedaços do outro com mandíbulas canibalescas”, durante o êxtase), Kepesh confessa-nos o seguinte: “Estabilizando-se. O frenesi superaquecido se transmutando numa serena afeição física”, que, finalmente, escorrega “por um íngreme declive.” Para a mulher talvez baste a união desprovida de sexo para a vida em comum seguir bem o seu curso, mas não para o homem.
David Kepesh torna a felicidade conjugal uma quimera, a longo prazo. O protagonista conjuga liberdade e devassidão, representados por Birgitta: um aventura de solteiro que é, na verdade, um triângulo sexual entre ele e duas colegas de academia, transformado com os anos em fantasma recorrente, de algo perdido. Ninguém é dono de ninguém. Mas então surge Helen, e com Helen o amor, a variável fundamental que traz consigo o sofrimento: o que no começo é uma idolatria acaba no terapeuta. Depois de quase oito anos juntos, “nossas antipatias haviam se exacerbado tanto que cada um de nós se reduzira precisamente àquilo que o outro suspeitara de início”, oscilando por um período de recaídas, quando a ex- volta à condição de deusa.
A partir dessa separação Kepesh concentrará sua existência e suas energias em torno do casal Schonbrunn (amizade um tanto quanto conflituosa) e nas sessões de “cura” psicanalítica, intervalo em que somos apresentados também ao seu alter-ego, o poeta obsceno Ralph Baumgarten, sobre o qual projetaria suas “fantasias de agressão às mulheres”. (Lemos Roth, em grandes momentos, como testemunhas de uma sessão psicanalítica: é assim em “O Complexo de Portnoy”, e é assim também em “O Professor do Desejo”.)
Neste último livro, que é um rico universo de citações literárias que vão de Tostoi a Kafka, e deste a Tchekhov, sobretudo (principal objeto de estudos do professor Kepesh), Roth partilha com o leitor uma aula de interpretações textual, instrutiva para leitores e para aspirantes a escritor(a). Também a relação de Kepesh com Helen tem seus momentos de triângulo amoroso, onde sai ele em desvantagem, porque afinal Helen o abandona pelo outro. Apesar de, nos moldes de Tolstoi, identificar o amante da esposa com Sergey Kariênin, na verdade é ele o esposo traído, de sorte que Helen jamais esquece seu nada simpático Vronsky, para o qual tenta retornar.
Já a citação a Kafka, no romance, é de teor altamente erótico e concentra-se no segredo vital, que é o desejo. Assim é que, em Praga, o protagonista conhece a prostituta que atendia ao escritor tcheco. Embora seja uma velhinha enrugada e macilenta, a ex-garota de programa permite o contato visual de Kepesh com sua vagina, experiência que termina com uma frase que é praticamente um oximoro conceitual: “A polpa da fruta, ainda vermelha”. Esta imagem traduz a persistência da ânsia masculina fundamental. O fogo eterno, apesar da velhice, da decrepitude e da morte iminente, continua aceso.
Contudo, gostaria de destacar a última parte do enredo, onde Roth alcança a sublimidade em termos de realização estética. Aqui prevalece a lição de Tchekhov, com quem aprende a estudar “o tema da desilusão romântica”. Porque afinal é este o tema essencial de “O Professor do Desejo”, leitor percuciente de “A Dama do Cachorrinho”, o conto mais festejado do escritor russo. A cena definitiva, no epílogo, envolve Claire, Kepesh, seu pai e um amigo, os dois últimos em visita ao casal, durante um jantar muito simbólico, noturno e iluminado a velas, misturando emoções diversas e temas novos, como a transitoriedade da vida.
Claire, situada “entre as gravuras de Velhos Mestres dos dois homens iluminados pelas velas” remonta, de fato, a certas pinturas renomadas cujo tema é essa transitoriedade da vida, como “Retrato de um velho com seu neto”, de Domenico Ghirlandaio, ou “As três idades da mulher”, de Gustav Klimt. E então Kepesh se pergunta, angustiado: “Quanto tempo mais antes que eu me enjoe de tamanha inocência, quanto tempo mais antes que a encantadora insipidez da vida com Claire comece a me dar engulhos, a perder o sabor, e eu me veja outra vez lamentando o que perdi e buscando um novo caminho?”
Contudo, a ternura ganha terreno e supera esse sentimento único e mesquinho, sobre o qual Roth já havia jogado luz durante a relação de Helen com Kepesh. Kepesh agora transcende as próprias emoções e denota um novo ângulo de visão, já que “ela me parece mais preciosa do que nunca, mais do que nunca minha esposa de verdade, a mãe de meus filhos ainda não nascidos… e, no entanto, estou despojado de minha força, de minha esperança, de minha alegria”, tudo porque o tempo em seu sentido mais terrível fará não apenas com que seus sentimentos transmutem de amor em desprezo (como na relação com Helen), mas que eles próprios desapareçam, um dia, como desaparecem os velhos e como desaparece tudo.
Para finalizar cito um aforismo kafkiano plenamente contextualizado: “Psicologia, pela última vez!”. Porque, depois de reincidir, Kepesh reconhece que nenhuma terapia é capaz de contornar o desejo perdido, a paixão que tudo incendeia. Até mesmo o próprio amor.
J. C. Guimarães é escritor e crítico literário.