Desconstruindo “Torto Arado”: crítica estrutural das suas fragilidades e defeitos

07 julho 2024 às 00h12

COMPARTILHAR
Carlos Augusto Silva
Especial para o Jornal Opção
Fui ao encontro de um romance que prometia muito mais do que entregava. Era como se o autor, ao tecer sua trama, tivesse tropeçado em obstáculos que impediam a história de fluir suavemente e capturar meu interesse por completo.
A partir dessa decepção quanto ao meu horizonte de expectativa, pensei nos motivos pelos quais um romance pode falhar, lembrando das teorias que estudei ao longo da vida. György Lukács falava da importância de personagens que refletem o espírito de uma época e cujas ações moldam o enredo de forma significativa. No entanto, os protagonistas deste romance pareciam mais caricaturas superficiais do que seres complexos e multifacetados. Faltava-lhes a profundidade psicológica e o desenvolvimento ao longo da história que o mestre húngaro tanto valorizava.

Enquanto folheava as páginas, ecoaram em minha mente as palavras de Gérard Genette sobre a narrativa. Ele nos ensinou que uma boa estrutura narrativa deve ser clara e coesa, guiando o leitor através de uma jornada emocionante e lógica, e mesmo quando opta pela fragmentação, esta deve ser consciente e madura. No entanto, neste romance, a narrativa se perdia em digressões confusas e saltos temporais que enfraqueciam a sua compreensão. Faltava a unidade narrativa que torna uma história envolvente e satisfatória.
Barthes, por sua vez, nos alertou sobre o perigo do excesso de metáforas e simbolismos. A beleza da linguagem deve servir à história, não a eclipsar. Aqui, a prosa, embora poética em alguns momentos, acabava por obscurecer os temas centrais e afastava o leitor da essência da história. Era como se o autor se esforçasse tanto para impressionar com sua escrita que se esquecesse de contar uma boa história.

E então me lembrei de Ian Watt, em seu livro “A Ascensão do Romance” (Companhia das Letras, 352 páginas, tradução de Hildegard Feist), que destacava a importância da originalidade e da inovação na construção de um romance duradouro. Um bom romance deve ir além dos clichês, explorar novas ideias, despertar curiosidade e provocar reflexões. Infelizmente, este romance parecia preso em convenções previsíveis, oferecendo pouco em termos de novidade ou insights profundos.
Assim, refleti sobre como um romance pode falhar quando não honra os princípios fundamentais da teoria literária. Desde personagens rasos até estruturas narrativas confusas, passando por uma linguagem que ofusca a história e uma falta de originalidade, os elementos essenciais para uma narrativa impactante estavam ausentes. Enquanto fechava o livro com uma pontada de decepção, pensei na importância de encontrar um equilíbrio entre teoria e prática, entre o conhecimento acadêmico e a arte de contar histórias que realmente ressoem com os leitores.
“Torto Arado” (Todavia, 264 páginas), obra de Itamar Vieira Junior, foi saudada por muitos como um mergulho profundo na cultura nordestina e nas complexidades sociais do Brasil rural. No entanto, a narrativa frequentemente se perde em uma tentativa excessiva de melodrama e na construção de personagens que, embora vibrantes, frequentemente caem em clichês previsíveis.

A trama, que gira em torno das irmãs Bibiana e Belonísia, começa promissora ao explorar temas como a luta pela terra, o feminismo e as raízes culturais. No entanto, o enredo se desgasta à medida que se entrega a reviravoltas melodramáticas que parecem forçadas e pouco orgânicas. Os momentos de tensão são muitas vezes exagerados, perdendo a oportunidade de explorar com profundidade questões sociais complexas em favor de um drama fácil.
Além disso, a prosa de Vieira Junior, embora poética em alguns momentos, tende a se perder em descrições excessivas e em um estilo que, por vezes, parece mais interessado em impressionar do que em comunicar efetivamente. Isso resulta em uma leitura que, apesar de suas intenções nobres, pode se tornar cansativa e desconectada da realidade que pretende representar. “Torto Arado” é uma obra que, embora tenha seus méritos na representação de temas importantes e na exploração de aspectos da cultura nordestina, falha em manter uma coerência narrativa e um ritmo que sustente o interesse do leitor ao longo de toda a história.
Em “Torto Arado” um problema evidente é a uniformidade das vozes narrativas, que, em vez de enriquecerem a obra, acabam por limitar sua profundidade e variedade. O romance é narrado principalmente pelas vozes das irmãs Bibiana e Belonísia, cujas perspectivas deveriam oferecer uma rica tapeçaria de experiências e pontos de vista. No entanto, ao longo da narrativa, essas vozes frequentemente se fundem em um tom homogêneo, perdendo a oportunidade de explorar plenamente as nuances individuais e as complexidades psicológicas de cada personagem.
A uniformidade das vozes narrativas pode ser atribuída em parte ao estilo de escrita do autor, que, embora poético e evocativo em certos momentos, às vezes falha em capturar a autenticidade e a singularidade de cada personagem. As distintas personalidades das protagonistas parecem diluídas pela narrativa, resultando em uma sensação de que suas vozes são, em última instância, indistinguíveis uma da outra.

Além disso, a uniformidade das vozes narrativas limita a capacidade do romance de explorar plenamente as diferentes camadas sociais, culturais e psicológicas que poderiam enriquecer a narrativa. A diversidade de perspectivas e experiências é essencial para a construção de um retrato multifacetado da sociedade representada, algo que “Torto Arado” poderia ter beneficiado grandemente se as vozes narrativas tivessem sido mais distintas e autênticas.
Enquanto “Torto Arado” oferece uma visão importante da vida rural no Brasil e aborda temas relevantes como a luta pela terra e a identidade feminina, a uniformidade das vozes narrativas representa uma limitação significativa que compromete sua capacidade de explorar plenamente a complexidade de seus personagens e de sua história.
No romance há uma crítica latente à banalização dos temas da terra e do Nordeste, onde a narrativa, embora inicialmente promissora ao abordar questões profundas como a luta pela posse da terra e a identidade cultural nordestina, eventualmente sucumbe a uma superficialidade que desvaloriza esses temas cruciais.
O romance inicia com uma promessa de explorar de maneira profunda e sensível as realidades complexas da vida rural no Brasil, especialmente no contexto do Nordeste, onde a terra é não apenas um recurso econômico, mas também um símbolo de identidade e de luta. No entanto, ao longo da narrativa, esses temas fundamentais são frequentemente reduzidos a clichês e a uma representação simplificada, que não consegue capturar a verdadeira profundidade das questões sociais e econômicas enfrentadas pelos personagens.
A banalização dos temas da terra e do Nordeste em “Torto Arado” pode ser atribuída em parte à maneira como são tratados de maneira episódica e ocasionalmente melodramática. A complexidade das relações de poder envolvidas na disputa pela terra e as consequências emocionais e psicológicas para aqueles que estão envolvidos nesse conflito são simplificadas, perdendo a chance de uma análise crítica e profunda.
Além disso, a representação do Nordeste e de sua cultura muitas vezes cai em estereótipos ou em uma visão idealizada, que não reflete completamente a diversidade e a riqueza da região. Isso pode resultar em uma percepção reducionista e simplificada do que significa ser nordestino e das complexidades das comunidades rurais da região.
“Torto Arado” apresenta um retrato importante da vida rural no Brasil e aborda temas relevantes como a luta pela terra e a identidade cultural. A banalização desses temas compromete sua capacidade de oferecer uma análise verdadeiramente reflexiva das questões sociais e culturais que pretende abordar.
Falta de clareza e fluidez
A estrutura de “Torto Arado” revela tanto pontos fortes quanto limitações significativas, que merecem uma crítica cuidadosa. O romance adota uma abordagem não linear, alternando entre diferentes períodos de tempo e perspectivas narrativas. Embora essa estratégia possa inicialmente parecer promissora para explorar as histórias entrelaçadas das personagens e os eventos que moldaram suas vidas, sua execução nem sempre atende às expectativas.
Um dos principais desafios da estrutura não linear de “Torto Arado” é a falta de clareza e fluidez na transição entre os diferentes tempos narrativos. A alternância abrupta entre passado e presente muitas vezes confunde o leitor, dificultando o acompanhamento da cronologia dos eventos e a compreensão do desenvolvimento dos personagens ao longo do tempo. Isso pode resultar em uma experiência de leitura fragmentada e em uma narrativa que não se sustenta de maneira coesa ao longo do romance.
Além disso, a estrutura de “Torto Arado” às vezes parece desigual na distribuição do foco narrativo entre as irmãs Bibiana e Belonísia. Enquanto Bibiana recebe uma atenção mais detalhada e uma exploração mais profunda de sua jornada pessoal e emocional, Belonísia, por outro lado, pode parecer menos desenvolvida como personagem principal, o que cria um desequilíbrio perceptível na narrativa.
Por outro lado, a estrutura não linear oferece oportunidades para revelações dramáticas e insights retrospectivos que podem enriquecer a compreensão dos temas centrais do romance, como a luta pela terra, a identidade cultural e as relações familiares. Esses momentos de revelação são frequentemente impactantes e contribuem para a profundidade emocional da história.
Em resumo, enquanto a estrutura não linear de “Torto Arado” possui potencial para explorar de maneira multifacetada os temas e personagens do romance, sua execução inconsistente e os desafios na transição entre os diferentes tempos narrativos resultam em uma obra que, embora ambiciosa, não alcança completamente suas metas narrativas e estruturais.
O estilo de escrita de Itamar é tanto uma faca de dois gumes quanto um reflexo de sua habilidade poética. O autor demonstra uma capacidade notável de criar imagens vívidas e atmosferas densas que capturam a vida rural do nordeste brasileiro com uma linguagem rica e evocativa. No entanto, essa mesma prosa poética às vezes pode se tornar excessiva, obscurecendo a clareza narrativa e dificultando a conexão emocional com os personagens e suas histórias.
Uma das características marcantes do estilo de Vieira Junior é sua habilidade em retratar detalhes sensoriais e culturais que dão vida ao cenário nordestino. Suas descrições dos ambientes, dos costumes locais e das tradições familiares são meticulosamente renderizadas, proporcionando uma sensação palpável de imersão na cultura e na paisagem da região. Isso enriquece a experiência de leitura ao transportar o leitor para um mundo vibrante e complexo.
No entanto, o estilo poético por vezes se torna um obstáculo, especialmente quando se trata da clareza da narrativa e da desenvoltura dos personagens. As metáforas e imagens poéticas, embora belas, podem obscurecer o entendimento direto dos eventos e das emoções das personagens, tornando algumas passagens difíceis de seguir e interpretar completamente. Isso pode resultar em uma experiência de leitura que exige um esforço extra por parte do leitor para desembaraçar os significados subjacentes.
Além disso, o estilo de escrita de Vieira Junior também é marcado por uma cadência rítmica e uma musicalidade que, embora cativante em certos momentos, pode parecer repetitiva ou monótona em outros. A escolha de estruturas narrativas não lineares e o uso frequente de flashbacks e analepses adicionam uma camada adicional de complexidade ao estilo, que pode não agradar a todos os leitores pela sua densidade e ritmo irregular.
O estilo é ao mesmo tempo seu maior trunfo e seu maior desafio. Enquanto suas habilidades poéticas enriquecem a ambientação e a atmosfera do romance, às vezes podem comprometer a clareza narrativa e a acessibilidade emocional dos personagens.
A maneira como o tempo e o espaço são explorados revela tanto pontos fortes quanto limitações significativas na narrativa. Ora, o romance se desenrola em um cenário rural do Nordeste brasileiro, onde a terra não é apenas um pano de fundo, mas um personagem vivo que influencia diretamente a vida das pessoas que a habitam. No entanto, a abordagem temporal e espacial nem sempre sustenta plenamente o potencial dramático e temático da história.
O espaço geográfico, embora ricamente descrito, por vezes parece limitado em sua exploração. Embora o ambiente rural seja vividamente evocado, há momentos em que a profundidade da exploração das paisagens e das comunidades locais poderia ser mais aprofundada. Isso poderia enriquecer a compreensão das dinâmicas sociais, culturais e econômicas que moldam a vida no nordeste brasileiro.
Outro aspecto é a intensidade emocional dos eventos e das relações entre os personagens, que muitas vezes não recebem o tempo e o espaço necessários para se desenvolverem plenamente. A urgência das circunstâncias enfrentadas pelas personagens, como as decisões sobre a terra e as consequências dessas escolhas poderiam se beneficiar de uma exploração mais profunda e prolongada ao longo do romance.
Enquanto “Torto Arado” oferece uma visão significativa da vida rural e das questões sociais no Nordeste brasileiro, a abordagem de tempo e espaço por vezes limita sua capacidade de explorar plenamente a complexidade dos temas e personagens. A não linearidade na narrativa e a profundidade variável na exploração do ambiente geográfico e emocional podem resultar em uma experiência de leitura que oscila entre momentos de impacto emocional e períodos de desconexão narrativa.
O enredo se propõe a explorar temas complexos como a luta pela terra, identidade cultural e relações familiares em um contexto rural do nordeste brasileiro, mas enquanto o romance apresenta uma premissa poderosa, sua execução muitas vezes se desvia em direções que comprometem a coerência e o impacto narrativo.
O enredo de “Torto Arado” por vezes parece depender excessivamente de reviravoltas melodramáticas e eventos trágicos para impulsionar a trama. Enquanto momentos de tensão são inevitáveis em uma narrativa que aborda temas como injustiça social e desigualdade, a forma como esses eventos são apresentados ocasionalmente pode parecer forçada ou manipulativa, diminuindo a autenticidade das experiências retratadas.
Embora “Torto Arado” aborde temas importantes e ofereça uma visão rica da vida rural e das questões sociais no Brasil, o enredo do romance pode ser visto como inconsistente em sua estrutura, dependente de elementos melodramáticos e desigual na exploração de suas personagens principais. Esses elementos juntos podem comprometer a coesão narrativa e a profundidade emocional da obra como um todo.
“Torto Arado” é uma obra que busca dar voz e representação a questões importantes e muitas vezes negligenciadas, seus pontos negativos evidenciam desafios significativos em sua execução, que podem impactar a experiência do leitor e a profundidade da reflexão sobre os temas apresentados.
Mas mesmo entre asas frágeis, há motivos que justificam o voo.
Este livro tece um manto de cores sobre a vida rural do Nordeste, desvendando lutas ancestrais pela terra, a essência da identidade cultural e os intricados laços familiares. Apesar de suas falhas, revela verdades que enriquecem nosso entendimento das realidades sociais e da diversidade brasileira.
As vozes das irmãs Bibiana e Belonísia ecoam como cânticos antigos, delineando as jornadas das mulheres dentro de uma sociedade dominada por valores patriarcais e desigualdades econômicas. É um convite à reflexão sobre a força e a resiliência feminina, um tema tecido delicadamente na trama.
Apesar das fragilidades estruturais, a prosa de Itamar Vieira Junior é um murmúrio melodioso que desperta os sentidos, pintando paisagens de uma beleza profunda e evocativa. Os temas de justiça, família e identidade transcendem fronteiras geográficas e culturais. “Torto Arado” desvela verdades universais, iluminando os caminhos tortuosos da condição humana e as lutas compartilhadas por comunidades ao redor do mundo.
Em suas páginas, emerge um convite à contemplação. Ao enfrentar suas fragilidades com olhos de águia, o leitor é conduzido a um voo de análise crítica, onde cada página se torna um espelho para examinar não apenas o romance, mas também nossa própria percepção da literatura contemporânea brasileira.
A despeito de seus problemas, “Torto Arado” é um caleidoscópio de cores e emoções, um convite à contemplação e à descoberta. Apesar de suas bases frágeis, ele nos convida a voar junto, explorando os mistérios da vida e os tesouros escondidos da alma humana.
Ainda que frágil, merece ser lido.
Carlos Augusto Silva, crítico literário, é também professor de Literatura e História da Arte. Bacharel em literatura pela UFG, licenciado em História e Língua Portuguesa pela Unijales-SP, especialista em História e Estética da Arte pelo Masp, mestre em Estudos Linguísticos e Literários pela UFG, doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Autor dos livros “Dicionário Proust”, “Opção Crítica” e “Proust e a História”. É colaborador do Jornal Opção.