Só podemos enfrentar o autoritarismo e o totalitarismo se criarmos uma ética arquetípica: a de que a vida deve ser tratada como sagrada

Carlos Russo Jr.

A história que contaremos é a do alemão Jürgen Stroop, um protótipo dos recalcados, desajustados, inúteis tanto para o trabalho manual quanto para o intelectual ou científico, que cultivavam a inveja e o ódio para com todos os demais seres humanos. E ele era um Ninguém.

No pós-Primeira Guerra Mundial, a Alemanha derrotada, com a economia asfixiada pelo Tratado de Versalhes, se enchera de revoltados e descontentes, muitos dos quais gastavam suas energias contra um mundo que eles eram incapazes de compreender e de enfrentar. De tal modo que os anos 1920 viram surgir uma geração de pessoas obscuras e insignificantes, verdadeiros Ninguéns.

Os Ninguéns nunca eram responsáveis por suas dificuldades, mas vítimas de uma conspiração do mundo contra os alemães. E à frente deste mundo que os tolhia os Ninguéns enxergavam os judeus e seus negócios, os intelectuais e suas ideias, os comunistas, os socialistas e os democratas.

Até que surgiu, na figura de Adolf Hitler, um líder carismático que os comandasse. Com o pouco que possuíam de personalidade e de compreensão da vida, entenderam que a única forma de sucesso para eles possível e e, quem sabe, ser Alguém eram moldarem sua sorte a do Nazismo.

Kazimierz-Moczarski e o carrasco Jürgen-Stroop | Foto: Reprodução

E os Ninguéns se tornaram nazistas.

Princípio dos anos 1930. Um novo status, e o uniforme marrom da primeira Milícia Nazista. Tudo o que eles tinham a fazer era exercer a força bruta, o mesmo tipo que já utilizavam nas esquinas, nos bares e em família. As forças da ordem e o Exército Alemão os acobertavam, fingiam que não os viam, quando não se incorporavam aos milicianos nas horas vagas.

Instintivamente, os Ninguéns também entenderam a única regra para o sucesso: a obediência absoluta. E como a moralidade não constituía problema algum, tudo se resumia à disciplina, às armas e à força bruta.

E as tropas nazistas acolheram malandros, bandidos, policiais fracassados e corruptos, militares decaídos, bêbados e drogados e os transformaram em heróis. Em troca, eles lhes deram absoluta obediência sem escrúpulos, remorsos ou conflitos de consciência, quer quando deveriam assassinar presuntivos ou reais inimigos do Partido, quer quando fosse o caso de destruir um comércio, uma Sinagoga, ou incendiarem o Parlamento.

E os nazistas fizeram o que Hitler prometera desde que se metera na política. A Alemanha quer pela expropriação das propriedades judaicas, quer pela exploração sem tréguas do trabalho escravo pelos grandes industriais, tornou-se poderosa e temida, tanto em termos bélicos quanto econômicos.

Kazimierz Moczarski sobreviveu ao horror do nazismo | Foto: Reprodução

Jürgen Stroop, o nazista

Jürgen Stroop, nascido Joseph, não desejava passar a vida num banco de sapateiro como seu pai, profissão que acumulava com a de “ganso” de polícia. Acontece que o jovem Stroop não era bom para coisa alguma. Sem nem ao menos concluir o curso elementar já era um desocupado, que vivia de pequenos furtos e empreitadas, tinha duas mulheres e três filhos, um dos quais viria a falecer vítima de violência doméstica.

E Jürgen Stroop juntou-se aos nazistas e, no processo, aprendeu muitas lições. Uma das mais importantes: os intelectuais, os democratas e os judeus eram “homens fracos”. Esposavam ideias nobres sobre as quais ele pouco entendia, mas que por elas não estavam dispostos a morrer. Logo, eram supérfluos e covardes. E ele poderia governá-los aterrorizando-os ou assassinando os mais resistentes.

Sobre os instrumentos de propaganda nazista, Stroop aprendeu que uma mentira repetida mil vezes, até mesmo para aqueles que sabiam que se tratava apenas de uma mentira, faria com que ela se transformasse em verdade.

Kazimierz Moczarski: viveu para contar a história de um carrasco nazista | Foto: Reprodução

E que a primorosa distorção dos fatos, era um excelente gerador das meias verdades. Que para a maioria das pessoas a verdade consiste apenas aquilo no que as pessoas querem crer, nada mais.

Enquanto participara das turbas da milícia nazista, a SA, a tropa de choque que aterrorizava as ruas de Munique, aprendeu que a prática de cada ato de violência sempre contava com a apatia dos homens livres. E isto lhe trazia a satisfação do cheiro do sangue vertido e Stroop descobriu que este cheiro viciava.

Uma vez desencadeada a Segunda Guerra de 1939, um dos primeiros países invadidos e o que por mais tempo foi ocupado pelos nazistas foi a Polônia, e o povo polonês, como anteriormente o próprio povo alemão, foi levado a compreender que “reserva” era a nova nomenclatura de gueto; que “despojo legítimo de guerra” eram os bens roubados ou confiscados aos judeus e aos inimigos políticos; que “contaminado” era o nome da propriedade a ser confiscada; “medidas sanitárias” significavam execuções em massa; que “abatido quando tentava escapar” era sinônimo de assassinato sob tortura na prisão; “reinstalação”, era confisco de propriedades; “trabalho voluntário”, igual a trabalho escravo; “sub-humanos” designava os judeus, os ciganos, presos políticos e homossexuais ( exceto os arianos); “mestiçagem” requeria execução para evitar a mistura de sangue sub-humano com o ariano; que “comunistas, especulador, belicista” era um cognome para judeus e que “dispensa de tratamento especial”, simbolizava o extermínio.

E Heinrich Himmler, o segundo em comando da Alemanha, entregou a Stroop, agora um general SS-Gruppenführer, o comando das SS e da polícia na cidade de Varsóvia. E ele comandou a repressão ao Levante do Gueto de Varsóvia, quando milhares de judeus poloneses se insurgiram de armas na mão contra as condições de fome, opressão e lento extermínio em que viviam.

A heroica luta judaica se estenderia por três meses. Esta foi uma epopeia da luta do homem por liberdade e dignidade. Um exército de algumas centenas de combatentes, sob o comando do ex-oficial do Exército Polonês Mordechaj Anielewicz, utilizando armas improvisadas, excetos aquelas tomadas ao próprio inimigo, fez frente e resistiu à mais poderosa potência militar que o mundo já conheceu.

Após o genocídio completado, Stroop foi transferido para a Grécia como comandante SS e chefe de polícia; no entanto, seus métodos eram tão violentos que a administração local pró-nazista o recusou e ele foi transferido para a área do Reno, onde ficou até o final da guerra.

Stroop foi preso pelos Aliados e transferido de volta para a Polônia, onde foi julgado e condenado como genocida e criminoso de guerra, sendo executado em Varsóvia em 1952.

Entretanto, enquanto esperava a execução na prisão, Stroop foi ironicamente colocado na mesma cela do corredor da morte em que estava Kazimierz Moczarski, jornalista e ex-combatente da resistência polonesa, que sobrevivera à guerra e que agora era prisioneiro político do governo comunista da Polônia. Os stalinistas acusavam falsamente Moczarski de ser colaborador nazista, e também o haviam condenado à morte.

Aquilo formatou um clima em que Stroop, que se negara a abrir a boca tanto durante a instrução e julgamento, relaxasse na presença do companheiro de corredor da morte, e tudo relatasse, sem subterfúgios ou meias palavras.

Ora, foi a partir das conversas entre os dois que Moczarski, dono de uma incrível memória, escreveria seis anos após o livro “Conversas com um Carrasco” (“Rozmowy z katem”). Foi este livro que nos permitiu esse relato, assim com o amplo conhecimento sócio-político dos Ninguéns tornados Assassinos de Estado.

Moczarski teve sua condenação à morte suspensa, mas permaneceu preso até o final do terror stalinista (1955), sendo novamente julgado e declarado inocente e reabilitado. Seu livro, entretanto, só foi liberado para publicação em 1976.

Quantas lições nos traz a história! Quantos Ninguéns assumiram e assumirão postos estratégicos na nossa República.

E cada vez se torna mais evidente de que somente poderemos enfrentar qualquer tipo de autoritarismo e de totalitarismo se criarmos uma nova ética arquetípica: a de que a vida humana deve ser tratada como sagrada.

Carlos Russo Jr. é crítico literário.