De 1964 aos dias atuais: o quadro de um Brasil interiorano pintado pelo escritor Alaor Barbosa
17 outubro 2015 às 10h39
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Lembrado pelo crítico Wilson Martins como “ficcionista provincial”, o goiano Alaor Barbosa ainda é alçado entre Balzac, Dostoievski, Ramos e Verga
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
Foi o crítico Wilson Martins (1921-2010), autor da monumental “História da Inteligência Brasileira” (1976), sete volumes, mais de quatro mil páginas, quem alertou para o fato de que a crítica do Rio de Janeiro e São Paulo –– na época em que ainda havia suplementos culturais e crítica literária de respeito na grande imprensa –– nunca dera a atenção devida ao romance provincial brasileiro, que ele distinguia de “regional” ou “provinciano”. Como se sabe, se alguma coisa mudou neste sentido, foi para pior. Hoje, por exemplo, nenhuma das grandes editoras paulistas e cariocas ocupa o lugar da antiga Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, propulsora do lançamento de grandes ficcionistas brasileiros por mais de meio século –– pelo menos dos anos 1930 até o começo da década de 1980.
Entre esses “esquecidos” pela crítica, Wilson Martins colocava, em 1999, o romancista goiano Alaor Barbosa (1940), a propósito da resenha que fez de seu livro “Memórias do nego-dado Bertolino d´Abadia”; “memórias do singularmente aventuroso e desventurado goiano de Imbaúbas, anotadas pelo ilustre advogado Rafael Santoro Noronha”. E ainda o alçava como integrante de uma família literária que incluía nomes como Balzac (1799-1850), Thomas Hardy (1840-1928), Eça de Queiroz (1845-1900), Dostoievski (1821-1881), Graciliano Ramos (1892-1953) e Giovanni Verga (1840-1922). Muito poucos autores brasileiros mereceram tamanho elogio de um crítico extremamente exigente como Wilson Martins.
Pouco tempo depois, em 2000, um crítico da nova geração, mas igualmente exigente, Ronaldo Cagiano, também ficcionista e poeta, escreveu, a propósito do mesmo romance, que o autor goiano radicado em Brasília há mais de três décadas merece, como poucos, lugar de destaque na bibliografia nacional. “Sua obra não deve nada às melhores do gênero, mas por culpa e obra de uma perversa lógica editorial (que visa ao lucro, em detrimento da solidificação de obras de relevo), ainda não caiu nas graças da mídia, que prefere a subliteratura e o lixo literário estrangeiro em lugar dos bons escritores nacionais”, disse.
Self made man brasileiro
Dezesseis anos depois, período em que publicou mais três romances, um ensaio e um livro de contos e novelas, que reúne obras publicadas anteriormente, Alaor Barbosa lança “A solidão e a coragem de cada um” (Brasília, Editora Vila Bela, 2015), romance em que pinta mais um quadro do Brasil interiorano, que vai do início da ditadura civil-militar de 1964 até os dias de hoje de urbanização acelerada e transformação capitalista.
Como William Faulkner (1897-1962), que colocou a ação da maioria de sua obra no fictício condado de Yoknapatawpha, e Gabriel García Márquez (1927-2014), com sua Macondo, Alaor Barbosa faz da imaginária Imbaúbas uma réplica de sua natal Morrinhos, cidade ao Sul de Goiás. E, muitas vezes, recupera personagens de livros anteriores, como o advogado Rafael Santoro Noronha, de “Memórias do nego-dado Bertolino d´Abadia”, alter ego do autor, que reaparece em “A solidão e a coragem de cada um” e , ao final, sonha refazer sua vida em Imbaúbas.
É através da visão de Rafael que o leitor conhece a personagem principal deste romance, Ambrosino Porfírio de Andrade, mais conhecido como Peter Porfírio, protótipo de algumas figuras amorais que vicejaram no Brasil dos anos 70 –– e ainda vicejam por aí –– e fizeram fortuna a qualquer preço. No caso de Peter Porfírio, trata-se de um solteirão mulherengo, fazendeiro comprador e vendedor de gado e dono de empresas, um típico self made man brasileiro, de poucas luzes intelectuais, mas grande vivacidade para ganhar dinheiro que, finalmente, consegue ao abrir um pequeno banco –– um “tamborete”, como dizia ironicamente –– que, por algum tempo, expande-se com a abertura de agências em Goiânia, São Paulo, Belo Horizonte e outras grandes cidades brasileiras.
Pela força de seu poder financeiro, Porfírio acaba atraindo todo tipo de gente, tais como outros compradores e vendedores de gado, capatazes de suas fazendas, pilotos de avião e até um advogado idealista, como Rafael Santoro Noronha, além de mulheres aventureiras, algumas ingênuas, outras interesseiras, como aquela com quem acabaria por se casar com separação de bens, mas a quem daria 30% das ações de sua empresa mais rentável. Ao final, fica-se sabendo que, tempos depois, a mulher o abandonaria sem explicação e passaria a viver nos Estados Unidos.
Não teria voltado nem mesmo quando Porfírio morreu, depois que já passara para frente o grande empreendimento bancário, talvez por falta de capacidade individual para levá-lo mais adiante. Sua morte trágica, numa emboscada em curva de estrada em sua fazenda, teria sido ocasionada por divergências quanto à divisa entre a sua propriedade e a de um vizinho. O autor seria o filho de um fazendeiro assassinado por um peão, provavelmente a mando de Peter Porfírio.
Com estilo fluente e coloquial que procura recuperar algumas expressões típicas do linguajar popular goiano, mas sem cair na vulgaridade, Alaor Barbosa resgata “causos” dos rincões do Brasil, seguindo as pegadas de ficcionistas ilustres como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa (1908-1967), José Lins do Rego (1901-1957) e os seus conterrâneos Bernardo Élis (1915-1997) e José J. Veiga (1915-1999). Ainda que o autor deixe claro que esta é uma obra de ficção, muitas das passagens recuperadas nos diálogos que formam este romance são por demais semelhantes a acontecimentos e vidas que passaram pelo Brasil Central nos últimos 60 anos.
O autor
Advogado militante, Alaor Barbosa trabalhou quando jovem na redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Forçado pelas circunstâncias políticas, em 1964, abandonou o jornalismo e optou por um “exílio” voluntário, retornando ao interior de Goiás. É graduado em Direito pela Universidade Católica de Goiás e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília.
Em 1982, tornou-se procurador federal do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, mais tarde, assessor legislativo do Senado Federal, tendo-se aposentado em 1993.
Em 2015, publicou também “O menino que eu fui” (Goiânia, Editora Kelps), que reúne as suas lembranças do período de sua vida que vai dos dois aos dez anos de idade, destinado especialmente ao público infanto-juvenil, e “Mais histórias para ler e lembrar” (Goiânia, Editora Vila Bela, 2015), que abrange estórias inspiradas em sua época de adolescente no interior de Goiás e até um texto que leva todo o jeito de autobiográfico, mas devidamente anunciado como ficção, “A Revolução de 1962 (meu depoimento para a História)”, que rememora seus tempos de jovem jornalista no Rio de Janeiro que acompanhou passo a passo a degringolada do governo João Goulart e a ascensão daqueles que promoveriam a ditadura civil-militar de 1964.
É autor de mais quatro romances: “Memórias do nego-dado Bertolino d´Abadia” (Goiânia, AB Editora, 1999), “Uma lenda” (Brasília, LGE Editora, 2004), “Barulho e fúria em Imbaúbas: a morte de Cornélio Tabajara” (Brasília, Annabel Lee, 2011) e “Vasto mundo” (Brasília, Annabel Lee, 2011). E de “Contos e novelas reunidos: A espantosa realidade, Picumãs, Os rios da coragem, Gente de Imbaúbas” (Brasília, Projecto Editorial, 2006).
Publicou ainda “Um Cenáculo na Paulicéia” (Brasília, Projecto Editorial, 2002), originalmente tese de mestrado em Literatura Brasileira defendida em 1991 na Universidade de Brasília (UNB), que constitui estudo minucioso sobre um grupo de autores que se formou na cidade de São Paulo, nos primeiros anos do século XX, ao tempo em que seus integrantes eram estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, dentre os quais Monteiro Lobato (1882-1948) foi o único que se sobressaiu e, de fato, marcou um lugar nas letras nacionais.
É autor ainda de “Sinfonia de Minas Gerais – a vida e a literatura de João Guimarães Rosa” (Brasília, LGE Editora, 2007), ampliação do livro “A epopéia brasileira: para ler Guimarães Rosa”, editado em 1981 em Goiânia. Essee livro acabou tornando Alaor Barbosa conhecido nacionalmente, depois que Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor, e a Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, processaram a LGE Editora, por ter publicado o livro.
O biógrafo foi acusado de plagiar a obra “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, de autoria da filha do autor do romance “Grande sertão: veredas”. Mas a Justiça não constatou a existência de plágio e tampouco concluiu que a obra prejudicasse a imagem e a obra do escritor mineiro, liberando a biografia –– que ficou impedida de circular por algum tempo –– e, ao mesmo tempo, condenou Vilma Guimarães Rosa e a Nova Fronteira a pagar custas judiciais e indenizar o escritor por danos morais no valor de R$ 50 mil.
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Os vira-latas da madrugada” (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), “Gonzaga, um poeta do Iluminismo” (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), “Barcelona brasileira” (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), “Bocage – o perfil perdido” (Lisboa, Caminho, 2003), “Tomás Antônio Gonzaga” (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e “Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros.