Na atualidade, os estudos em torno da poética apresentam amplo leque semântico que une o universo da literatura ao da semiótica

“Interestelar”, de 2014, traz em seu roteiro o problema das incomensuráveis distâncias siderais e sua influência sobre a psiquê | Foto: Reprodução

Gismair Martins Teixeira
Especial para o Jornal Opção

No contexto da Teoria da Literatura, um dos nomes com que essa vasta área de estudos é conhecida é o termo “poética”. A palavra, no entanto, apresenta uma extensão semântica que a relaciona historicamente à poesia em particular e às demais formas de arte no geral. Daí, na atualidade, a preferência de alguns teóricos pela locução “teoria da literatura” quando pretendem referir-se ao conjunto epistemológico (teoria do conhecimento) próprio da arte da palavra, conforme a proposição aristotélica.

Do ponto de vista histórico, a relação entre a poética, a filosofia e a teologia se apresenta problemática. Na República, Platão sustenta que os poetas devem ficar de fora da cidade ideal para que não pervertam os seus cidadãos. Na Suma Teológica, obra em que São Tomás de Aquino discorre longamente sobre teologia e filosofia, a poética é abordada na Questão Primeira, Artigo Nono da Primeira Parte, que trata da conveniência ou não de a doutrina sagrada usar de metáforas em seus ensinamentos.

Nessa obra seminal da teologia católica romana, questões antinômicas são propostas a Tomás de Aquino, que as elucida segundo a dogmática de sua religião e os preceitos da escolástica, utilizando-se muitas vezes da teorização de Aristóteles, de quem era confesso admirador. O filósofo nascido em Estagira, por sua vez, apresentava visão diversa daquela defendida por Platão quanto à pertinência da poética, propondo, dentre outras, a função catártica da arte sobre os indivíduos.

São Tomás de Aquino: visão diversa de Platão sobre a pertinência da poética | Foto: Reprodução

O questionamento a que o doutor angélico – como era conhecido São Tomás de Aquino – responde sobre o tema é expresso nestes termos: “Parece não dever a doutrina sagrada usar de metáforas: 1. Pois o que é próprio de doutrina ínfima não pode convir a esta ciência, que ocupa, entre todas, o lugar supremo, como já se disse. Ora, proceder por comparações e representações é próprio da poética, ínfima entre todas as doutrinas. Logo, usar de tais comparações não convém a esta ciência”.

A estas observações pouco lisonjeiras à arte, Tomás de Aquino responde: “A poética usa de metáforas para representar, pois a representação é naturalmente deleitável ao homem. Ao passo que a doutrina sagrada dela usa por necessidade e utilidade, como se disse”. A resposta aquiniana ecoa a influência aristotélica sobre o tema a partir de sua clássica Arte Poética. Das palavras de Tomás de Aquino resulta, ainda, a perspectiva anagógica, que é um dos recursos interpretativos bíblicos da escolástica, de que Aquino é expoente máximo. A anagogia é o recurso exegético que permite passar do sentido literal ao místico e vice-versa em uma produção artística como, por exemplo, A Divina Comédia de Dante Alighieri.

Na atualidade, os estudos em torno da poética vão apresentar um amplo leque semântico que conjuga tanto o universo da literatura quanto o da semiologia, ou semiótica. Ambas têm em comum a linguagem, que funciona por meio de seus signos linguísticos e semióticos. A literatura é uma das vertentes escritas da linguagem; a semiótica, a vertente imagética que também se vincula ao processo comunicacional como um todo. Ao trabalhar com o roteiro e a imagem, o cinema integra a ambas em perfeito sinergismo, instaurando a intersemiose.

Os exemplos são infindáveis. Desde a chegada do homem à lua, em 1969, intensificaram-se as produções literárias e cinematográficas versando sobre a aventura humana para além da amplidão cerúlea. A massa crítica reunida em torno dessas narrativas já permite que se conceitue um novo gênero lítero-artístico, que poderia ser definido como gênero exopoético. A partir de uma analogia com as buscas atuais da ciência pela vida fora da Terra por meio da área científica da exobiologia, ou astrobiologia, é possível cunhar-se o análogo “exopoética”, ou “astropoética”, para toda e qualquer produção lítero-artística que trate da humanidade no espaço.

Embora conteúdos do gênero exopoético tenham tido precursores no tempo e no espaço, o grande marco artístico ocorreu praticamente simultâneo à conquista científica da ida à lua, em que pese as teorias da conspiração que a negam. Assim, no mês de abril do ano de 1968 chegava aos cinemas do mundo a versão para as telonas de 2001 – Uma Odisseia no Espaço. O filme dirigido por Stanley Kubrick teve roteiro assinado por Arthur C. Clark, que, ao mesmo tempo em que redigia a roteirização, escrevia o romance homônimo que tornaria célebre o pensamento de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”, o que foi citado por diversos roteiristas de ficção científica ao longo do tempo.

Nas cenas iniciais do filme, o diretor Kubrick, que também assina o roteiro, captou de maneira precisa a narrativa de Clark, que apresenta um grupo de hominídeos da pré-história humana em sua luta diária pela sobrevivência num ambiente árido e hostil. Em seus afazeres monótonos, os primatas humanos entram em contato com um estranho objeto, um monolito retangular preto, que capta a atenção extrema das mentes infantis daqueles antropopitecos.

A atenção galvanizada pelo estranho objeto faz com que novas sinapses se estabeleçam na intimidade cerebral daqueles homens pré-históricos. Novas conexões, novos conhecimentos e aos poucos eles passam a dominar a tecnologia para se protegerem de predadores e do ataque de grupos contrários. Uma das cenas mais emblemáticas do filme, remissiva às sutilezas da interpretação, ocorre quando o líder de um dos grupos se utiliza de um osso como arma para defender seu protoclã dos rivais.

Ao derrotar seus inimigos, o hominídeo primitivo joga o osso para o alto. Numa tomada de câmara bastante estilizada, o pedaço de esqueleto animal de forma oblonga é mostrado em slow motion ao som de Danúbio Azul, de Richard Strauss, transformando-se em uma nave espacial que voa tranquilamente rumo ao infinito. Do ponto de vista da exegese, tem-se uma perfeita síntese do trajeto da humanidade pelo conhecimento mediado pela intersemiose literária e cinematográfica.

O osso voando em “2001 – Uma Odisseia no Espaço” simboliza momento crucial da história humana, com a compreensão da lei física da gravidade | Foto: Reprodução

Naqueles breves segundos, encontram-se sintetizados todo o ethos humano no âmbito das Ciências Naturais e das Ciências Humanas. O osso simboliza o momento crucial da história humana, em que o ser humano finalmente consegue pôr em prática a sua compreensão da lei física da gravidade. A maçã que supostamente caíra na cabeça de Isaac Newton é o símile do fruto da árvore edênica do conhecimento do bem e do mal, já que o saber pode ser utilizado em ambas as perspectivas éticas.

O filme e o livro em intersemiose sugerem, pois, a maravilhosa aventura do saber, definidora de passado, presente e futuro, numa perspectiva que passa tanto pelo conhecimento científico, pela alteridade e pelo autoconhecimento, e que está presente também na angústia existencial do nada e no seu reverso, a esperança de que a vida se prolongue espacial e dimensionalmente. Ambas as possibilidades já foram exploradas na vasta exopoética que se seguiu a 2001 – Uma Odisseia no Espaço.

Astropoética e dicotomia existencial

No conjunto de produções astropoéticas que formam e enformam a história do cinema, um amplo leque de dramas existenciais já foi trabalhado. Em duas excelentes produções dos últimos sete anos, a dicotomia existencial entre o niilismo e a esperança, tendo o espaço cósmico como pano de fundo, esteve presente. No filme Ad Astra: Rumo Às Estrelas, de 2019, a angústia diante da constatação de que estamos sós no universo movimenta o roteiro.

Dirigido por James Gray e estrelado por Brad Pitt e Tommy Lee Jones, Ad Astra apresenta a missão de um astronauta autista, vivido por Pitt, que vai até os confins do sistema solar em busca de seu pai, vivido por Jones, também um astronauta que liderara uma missão às fronteiras do nosso sistema de planetas com a esperança de encontrar alguma forma de vida inteligente. Após encontrar o genitor, Roy McBride (Pitt) percebe que ele enlouquecera diante da realidade de que suas esperanças em torno da vida em outras paragens eram infrutíferas.

Em seu retorno para a Terra, abandonando o pai à própria loucura, McBride se vê diante de uma curiosa perspectiva. Sua condição de autista sempre o fizera preferir a solidão, representando o relacionamento com outras pessoas uma verdadeira tortura para ele. No entanto, contingências da missão fizeram com que tivesse de realizar a viagem de volta para casa sozinho. O longo tempo do percurso e a soledade tiveram sobre o personagem autista o curioso efeito de fazê-lo sentir falta do convívio de outras pessoas. Ou seja, tanto o pai quanto o filho vivenciaram de forma diferente a experiência esmagadora da sensação de estarem sozinhos, seja como indivíduo, seja como espécie.

Por sua vez, Interestelar, a aclamada produção dirigida e escrita por Christopher Nollan, que foi lançada em 2014, traz em seu roteiro também o problema das incomensuráveis distâncias siderais e sua influência sobre a psiquê humana. Num contexto narrativo em que a humanidade é obrigada a abandonar a Terra, que definha exaurida pelos desmandos humanos com a natureza, tem-se a presença do sobrenatural que sugere a existência de dimensões paralelas à humana, habitada por esta mesma humanidade que volta de outra dimensão para um autoauxílio como espécie.

A necessidade premente de conquistar outro lar faz com que problemas como a renúncia, a solidão e a existência de uma realidade paralela à condição biológica humana sejam postas em ação para que a esperança triunfe sobre os mais dramáticos problemas existenciais. Tanto Interestelar quanto Ad Astra trabalham em suas narrativas a realidade científica envolvendo as grandes distâncias e a incidência desse importante dado sobre a personalidade dos indivíduos.

Em ambos os filmes, a problemática ontológica (alusiva ao ser) se apresenta de maneira contundente, trazendo à reflexão do espectador a dimensão do que pode representar a aventura humana entre as estrelas. Tinha, portanto, razão a banda de rock dos anos 80, Nenhum de Nós, quando cantava ao som de guitarra, baixo e bateria que “no espaço a solidão é tão normal” em O Astronauta de Mármore, a versão em português para Starman, de David Bowie.

O que separa, no entanto, ambas as produções numa perspectiva humana que psiquicamente pode ser maior que as distâncias espaciais é a antinomia existencial marcada pela derrota psíquica diante do abismo do nada e a vitória sobre ele mediada pela esperança engastada na caixa de Pandora dos males com que a humanidade se vê a braços num ethos que agora chega às estrelas.

Na Suma Teológica, Tomás de Aquino trata do problema da existência de outros mundos com base nos parcos conhecimentos astronômicos de sua época, o século 13. Sua abordagem sobre o tema se encontra no Artigo Quarto da Questão 47 da Primeira Parte. Ali, o doutor angélico reitera a essencialidade humana como premissa mais importante a ser considerada no que diz respeito a outros mundos. A intersemiose fílmica e literária de nossos dias dialoga de maneira instigante com o pensamento do doutor angélico.

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Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG), pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO e professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.