A cultura pop chamada James Joyce

11 junho 2016 às 11h11

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Embora tenha se transformado em cânone literário, o escritor irlandês teve (e ainda tem) suas obras mais cultuadas do que verdadeiramente lidas

“As vozes se misturam e se fundem no silêncio nebuloso: silêncio que é o infinito do espaço: e rapidamente, silenciosamente a alma é transportada para regiões de ciclos de gerações que já viveram (…).”
— James Joyce, “Ulysses” (tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro).
Márwio Câmara*
Especial para o Jornal Opção
Em 16 de junho de 1904, o jovem e ainda desconhecido escritor James Joyce selou o primeiro encontro amoroso com Nora Barnacle, uma camareira refugiada de Galway, na Irlanda, que viria a ser a sua futura esposa e companheira de toda uma vida. Mais tarde, a data seria escolhida para ilustrar toda a trama de Ulysses (1922), um dos maiores marcos da literatura moderna.
Bloomsday surge a partir daí, desta verdadeira revolução que o livro do escritor irlandês provoca no mundo literário, trazendo uma obra estilisticamente atípica e inovadora, que se desprende da tradição clássica do gênero romanesco e se notabiliza no grande apogeu da literatura de vanguarda. Protagonizado por Stephen Dedalus, Leopold Bloom e a sua esposa Molly, a narrativa gira em torno de eventos aparentemente banais, durante algumas horas na vida dos três personagens.
Nenhum outro livro antes fora tão ousado quanto esse, ao explorar diferentes técnicas literárias e discursivas, além de consubstanciar referências de cunho filosófico, teológico e idiomático, durante a tessitura do texto.

Tomando como base que o romance seja uma releitura da “Odisseia” de Homero, talvez Ulysses seja uma das mais contundentes obras a incorporar o espírito do homem moderno do início do século 20, com o boom da revolução industrial e do aparecimento do cinematógrafo. Este olhar urbano sobre o mundo e as suas transformações, tal como a própria mobilidade do tempo, são algumas das características fundamentais para analisar parte da engenharia polissêmica e vastamente complexa de Ulysses.
Mas é válido ressaltar que o interesse da crítica não surgiu da noite para o dia, já que a obra, inicialmente, fora considerada pornográfica, devido às passagens de natureza obscena apresentadas em alguns momentos. E, por isso, foi censurado nos Estados Unidos, onde iniciara a publicação em capítulos, na The Little Review.
Sylvia Beach, responsável pela tradicional livraria Shakespeare and Company, foi a primeira a publicá-lo integralmente, em Paris, no ano de 1922. Aliás, Sylvia Beach e o poeta norte-americano Ezra Pound possuem uma grande parcela de contribuição para que Joyce fosse efetivamente publicado e reconhecido por seus pares. Beach, pela ousadia em publicá-lo quando o mundo lhe dizia não; e Pound, por ajudar a promovê-lo no ciclo intelectual europeu, trabalhando como seu agente literário.

Decerto, a fama de Joyce, pouco a pouco, vinha se consolidando, antes mesmo da publicação de Ulysses. Seu primeiro romance, “Um Retrato do Artista Quando Jovem”, de 1916, recebeu prestígio da crítica, juntamente com “Exilados” (1918), único texto dramatúrgico de Joyce, inspirado no teatro de Ibsen, onde o autor se debruçou em temas que se tornariam uma constante em seus textos: o ciúme e a infidelidade. Certamente a peça fora influenciada na própria relação do escritor com a esposa Nora Barnacle, materializada em diferentes personagens femininas, entre elas: Molly Bloom, de Ulysses; e Anna Livia Plurabelle, do enigmático Finnegans Wake (1939).
O último e mais radical livro de James Joyce contou com a ajuda de seu grande pupilo, o escritor Samuel Beckett, que trabalhou na transcrição de diversas passagens do romance para o papel, enquanto o escritor as ditava. Nessa época, Joyce já se encontrava com a saúde ocular bastante comprometida. Ao longo da vida, o escritor se submeteu a inúmeros e dolorosos tratamentos com o objetivo de não perder a visão.
Bloomsday pelo Brasil
O dia de Bloom (em referência ao personagem judeu Leopold Bloom) foi promovido inicialmente pelos amigos do escritor ainda em vida. Eles se reuniam durante a data em bares e livrarias para celebrar a data registrada nas mais de 800 páginas do romance, mapeado em diferentes endereços de Dublin.
A comemoração permaneceu mesmo após a morte do escritor, tornando-se parte do calendário cultural irlandês e estendendo-se em diferentes cantos do mundo, incluindo o Brasil. O mais curioso é que este é o primeiro e único dia dedicado a um personagem da literatura. A programação do Bloomsday inclui desde leituras públicas, encenações teatrais a exposições e debates sobre a obra, o que demostra a verdadeira força do mito em torno de Ulysses e da figura de seu autêntico criador.
Embora Joyce tenha se transformado, para além do cânone literário, em parte da cultura popular, sua fama de hermético consolidou-se ao longo das décadas, fazendo com que seus livros fossem mais cultuados do que verdadeiramente lidos. Por outro lado, um massificado grupo de leitores, críticos e especialistas vem crescendo; todos dispostos a desbravar as lacunas nunca completamente preenchidas de sua obra.
No Brasil, o número de traduções e textos acadêmicos referentes ao trabalho do grande pai da prosa moderna vem crescendo de forma gradativa. E, agora, com toda a sua obra circulando em domínio público, a tendência é que novas edições sejam publicadas. Os Mortos, último conto presente no livro “Dublinenses” (1914), ganhou uma bela e caprichada edição bilíngue pela Editora Autêntica, com tradução de Tomaz Tadeu.
A narrativa, embora ausente ainda do método que caracterizaria seu trabalho, demonstra o total domínio técnico de Joyce ao traçar um rico painel de personagens, durante uma noite de natal no casarão das irmãs Morkan. Entre pequenas discussões acaloradas sobre política e nacionalismo entre os convidados, o grande triunfo da estória gira em torno do passado da senhora Gretta, a esposa de Gabriel. O conto traz uma grande reflexão de como os mortos ainda podem influenciar o mundo dos vivos.

Para a pesquisadora Dirce Waltrick do Amarante, autora dos ensaios “James Joyce e Seus Tradutores” e “Para Ler Finnegans Wake”, ambos publicados pela Iluminuras, toda nova tradução ajuda a aproximar leitor e livro: “Não acho que Joyce seja difícil; difícil é encontrar um leitor com paciência para ler seus textos. Acredito que o que poderia facilitar acaba dificultando a sua leitura: temos tanta informação sobre seus textos, tantas teorias sobre sua linguagem que entramos no texto joyceano tentando encontrar tudo isso e esquecemos o principal que é o prazer de ler seus textos”.
A mesma foi responsável por organizar e verter para o português, ao lado do companheiro Sérgio Medeiros, uma compilação de cartas trocadas entre Joyce e a sua esposa, ganhando o título de “Cartas a Nora”. Em breve mais um conjunto de cartas do escritor será publicado no Brasil: “Traduzimos recentemente as cartas dele para Harriet Weaver, sua mecena. Logo, começaremos a traduzir suas cartas para o irmão Stanislaus Joyce. Começamos pelas cartas a Nora, pois elas revelam um outro lado e um outro linguajar de Joyce, muito mais erótico e escrachado. Traduzimos também alguns fragmentos de cartas de Nora para Joyce”, revela Amarante.
Centenário
Em breve, o selo Penguin Companhia publicará uma nova tradução para “Um retrato do artista quando jovem”, em homenagem ao centenário do romance. A narrativa, que se debruça no desenvolvimento político, moral, psíquico e intelectual do personagem Stephen Dedalus, alter ego do escritor, apresenta as primeiras incursões inventivas de Joyce, ao trabalhar num bildungsroman, em que o leitor vai acompanhando a linguagem se maturar na medida em que o jovem vai crescendo. Entrelaçado na complexidade de seus próprios sentimentos, que passam a fervilhar dentro de si, em contraponto à ortodoxia ideológica da vida clerical, consequentemente Dedalus rompe os laços com a igreja, buscando construir sua verdadeira identidade como artista.
O professor Caetano Galindo, responsável pela nova tradução do livro, acredita que este tenha sido seu melhor trabalho como tradutor: “Produzimos uma versão ricamente anotada do texto e, de minha parte, ao menos nesse momento estou com a impressão de que escrevi a minha melhor tradução até aqui. Foi uma surpresa incrível mexer com o livro. Eu sempre comparo a tradução literária ao processo de se desmontar uma máquina para descobrir como ela funciona”, afirma.
Autor também do recente “Sim, eu digo, sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce”, Galindo garante que, após uma leitura aprofundada, durante o trabalho de tradução, concluiu que o primeiro romance do escritor já manteria a sua reputação mesmo se não houvesse Ulysses: “Nesse processo eu descobri todas as qualidades e toda a sofisticação de um romance que, caso nós não tivéssemos o Ulysses, teria bastado para garantir a reputação de Joyce até os dias de hoje. Me impressionei muito com o livro e, como sempre nesses casos, me forcei a dar aquele gás a mais na tradução, o que sempre garante resultados interessantes”.
Ainda que Joyce tenha escolhido se exilar de Dublin, definindo a capital como o “centro da paralisia”, nenhum outro escritor irlandês soube melhor reproduzir sua cidade como ele. Embora resignasse com o anacronismo ultraconservador irlandês, é fato que Dublin nunca saiu de dentro dele, o que é mostrado claramente em sua literatura.
Confira abaixo uma produção da então Revista BRAVO!, que convidou o ator Caco Ciocler para interpretar um trecho das cartas pornográficas do irlandês, publicadas em “Cartas à Nora”.
*Márwio Câmara é jornalista e pesquisador nas áreas de Literatura e Cinema. Mora no Rio de Janeiro.