Yuri Baiocchi

Especial para o Jornal Opção

Toda grande cidade tem um número razoável de retratistas: Goiânia não foge à regra.

 Em tempos de “grandes redescobertas”, em que o Sudeste resgata a lembrança de que se produz arte de qualidade em Goiás — há de se assinalar a vocação artística da capital goiana evocando as memórias, dentre outros, do professor José Edilberto da Veiga Jardim, fotógrafo e retratista fino.

Retrato de José Edilberto da Veiga Jardim por Amaury Menezes — de 1960

 José Edilberto da Veiga Jardim veio da antiga capital, onde nascera a 5 de janeiro de 1906. Artista visual autodidata, frequentara apenas o Liceu de Goiás — no qual cursou o equivalente ao atual Ensino Médio. Negro, descendia de um ramo adotivo da linhagem do grande santeiro goiano José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874), seu bisavô, nascido um século antes (veja só, arte em Goiás é coisa de antigamente).

 Zé Veiga, artista negro, esteve ligado a todos os primeiros movimentos culturais de Goiânia. Foi um dos fundadores da Escola Goiana de Belas Artes. Atuou como professor de desenho (geométrico e modelo vivo) e fotografia. Influenciou inúmeros alunos, que vez ou outra o citam: Ana Maria Pacheco (a que fez Londres descobrir arte em Goiânia antes que Sampa o fizesse), Jodete Sócrates (FAUUSP) e Amaury Menezes, que já o retratou e sobre o mestre escreveu: “Foi realmente um professor que me incentivou e marcou minha carreira nas artes”.

José Edilberto da Veiga Jardim por Luiz Mauro Vasconcelos

 Assim, Goiânia é uma cidade privilegiada por ter o seu nascimento registrado em fotos e desenhos. Mais ainda: todo o seu crescimento fora documentado. E se vimos perdendo cada vez mais do nosso patrimônio edificado e dos primeiros aspectos da cidade, resta-nos ao menos uma memória muitíssimo bem documentada de tudo o que somos.

 É claro que a pouca idade — quase 90 anos — da capital ajuda. No entanto, a vocação artística que inspirou a cidade desde a sua concepção urbanística e a influência cultural tamanha herdada da velha capital (verdadeiro celeiro de artistas) foram determinantes para a formação do caráter fortemente artístico, de modo que, além de fundada, Goiânia recebeu ainda um batismo cultural, em 1942. Pouco mais de uma década depois, em 1954, teve o sacramento e a vocação confirmados pela realização do I Congresso Brasileiro de Intelectuais.

Homens lendo jornais numa banca de revista por Amaury Menezes

E, como uma coisa chama outra, veio Brasília e não seria ufanismo dizer que Goiânia mais influenciara na construção da identidade da Novacap do que Brasília na capital goiana, que se consolidou precocemente.

O retratista Amaury Menezes

 Mas o objetivo aqui era falar dos retratistas. De como existem por aí, recorrentemente, em todos os tempos e lugares.

 Cada cidade tem o seu Amaury Menezes, o seu Juca de Lima, o seu fotógrafo Berto, o seu Caso Matteucci, seu Mauricinho Hippie, sua Daura Sabino, seu grande incêndio, seu patrimônio histórico caído, seu centro abandonado.

Café Central, em Goiânia, pintado por Amaury Menezes

 Tinha em mente que poucas, pouquíssimas, cidades tinham o seu Siron Franco, uma pianista como Belkiss Spenciéri, um gringo como Jesco von Puttkamer, uma tragédia como o Césio-137, um religioso como Padre Pelágio, uma antropóloga como Mari Baiocchi, um fundador como Pedro Ludovico.

 Achava, erroneamente, que a cidade e sua identidade cultural se manifestavam apenas nos casos atípicos. Esqueci-me que Siron, Belkiss, Jesco, Pelágio, Mari e Pedro certamente teriam as mesmas proporções, nascessem onde fosse, pois falamos de avis rara. De pessoas extraordinárias contra as quais o meio tem menor impacto e cujas sementes da genialidade já estão lá, pouco importando o rio, córrego ou oceano que as banhem.

Frei Nazareno Confaloni: o italiano que fez arte em Goiás

 Todos esses últimos citados têm algo maior e global em seus feitos. Sem dúvida, Goiás teve a sorte de que produzissem aqui. Estes são, independentemente de Goiás. Parecem ter uma pátria própria e mais alta. Pasárgada, talvez.

 Mas uma cidade não é feita apenas de avis rara. É preciso Antônios, Dirsos, Íris, Almerindas, Anas, Célias, Berenices… Se há quem saia da caixinha e faça algo totalmente novo, há por sua vez uma maioria que não só está dentro da razoabilidade como compartilha dos mesmos sentimentos pela “caixinha”.

Retrato de Venerando de Freitas Borges, primeiro prefeito de Goiânia, por Amaury Menezes

 É por isso que mesmo toda cidade tendo o seu Juca, o seu retratista como Amaury, a sua estilista e colunista social como Daura, o seu ícone como Mauricinho e etc., não nos faz uma cidade igual a outras. Se separadas, as nossas referências têm o mesmo peso das de outros lugares, juntas elas pesam exatamente a nossa identidade, o nosso sentimento de pertencimento à terra.

 E é preciso ter olhos apurados para isso, sob o risco de desconsiderar o que de fato não apenas faz parte da vida cotidiana como a alicerça.

Barraca de frutas em Goiânia por Amaury Menezes

 Há alguém que sempre teve olhos atentos à vida da cidade. Alguém que, melhor do que observar a cidade, habita-a. Vê as coisas por dentro: vai ao Liceu de Goiânia, joga basquete, nada no Lago das Rosas, calça tênis All Star, vai à feira, procura pequi, dá uma parada numa das bancas de revistas da Praça Tamandaré, trabalha, tira férias e vai ao Rio Araguaia.

 Diferentemente dos outros retratistas que abundam nas demais cidades, Amaury Menezes não pinta as coisas do lugar. Não é genérico. Amaury sequer retrata Goiânia. Amaury retrata o goiano, o goianiense, em seus hábitos, isto é, como nós somos, e apenas como quem vive aqui sabe que somos e aprende a ser conosco.

O homem do ouro e indivíduos lendo jornais na banca por Amaury Menezes

 Seja como fotógrafo ou pintor (como ele gosta de dizer), Amaury Menezes é um historiador da imagem. Um Debret ou Taunay do Planalto Central que, sem perceber, vem registrando todo um jeito de ser de uma gente num determinado tempo. Um cronista visual, como tão bem definiu a poetisa e ex-galerista Maria Lúcia Félix Bufáiçal. Não precisaremos esperar 100 anos para recorrer aos trabalhos de Amaury (fotografias, desenhos, aquarelas e telas) para redescobrir hábitos e paisagens já extintos da nossa capital.

Belkiss Spenciéri, pianista, por Amaury Menezes

 Amaury não é um pintor qualquer. É um pintor goiano. Pinta como goiano porque vê como goiano. Sua assinatura é artigo de goianidade. Fala para goianos e é entendido por nós, que somos seus conterrâneos, seus amigos e admiradores, que estivemos presentes ontem na abertura da exposição “Amaury de A a Z”, no Museu Frei Confaloni, sob curadoria de Px Silveira.

 Yuri Baiocchi é crítico e pesquisador. É colaborador do Jornal Opção