A morte estúpida de Gerson de Melo Machado, de 19 anos, mais conhecido como Vaqueirinho, foi o assunto que predominou entre dois homens enquanto eu tomava café numa lanchonete do Centro. Apenas um falava, o outro praticamente só ouvia. Na verdade, mais balançava a cabeça no sentido de estar concordando (ou fingindo) com o que ouvia. O tagarela insinuou que a morte do jovem por uma leoa de um zoológico de João Pessoa era algo merecido pelo fato de ele de ter muitas passagens pela polícia. “Pagou o preço”, disse num tom abominável. Alguns sites divulgaram o fato, mas já iniciando a notícia com as inúmeras passagens do jovem pela polícia, como que justificando que a leoa fez a justiça que cabia aos homens.

O homem loquaz, no entanto, não falou da hereditariedade de caos de Vaqueirinho: os sérios problemas mentais herdados de sua mãe e de sua avó materna. O palrador também não mencionou que, entre os cinco irmãos, Vaqueirinho foi o único a não a ser adotado justamente por seu problema de saúde mental. Não foi exatamente uma leoa que matou o jovem Vaqueirinho: um menino feito de fragilidade e tormenta por dentro. A notícia correu como correm as tragédias que encontram plateia> E isso de maneira rápida, distorcida e ávida por um mosntro de presas afiadas que simplifique o abismo do acontecimento.

Uma conselheira tutelar que cuidou de Vaqueirinho quando ele era menor de idade falou do seu sonho em ser domador de leões. No domingo, dia 30, em vez de ir ao jardim zoológico dar pipocas aos macacos como fazem as “pessoas normais”, resolveu dar início à realização de seu sonho. Escalou um muro de seis metros. Esses seis metros foram os primeiros degraus de seu sonho. Só isso. Mas, dentro de si, havia um bicho mordendo seu cérebro, e ele não se deu conta do perigo iminente e atravessou a fronteira que a razão estabelece, pois não estava lá pelos macacos. Chegou ao recinto da leoa, desprotegido, envolto no seu labirinto mental. A fera de dentro empurrou-o letalmente às presas e garras da fera de fora.

A imagem que fica não é da leoa, que fez o seu papel de bicho, mas a dele: um jovem em desajuste, arrastado por pensamentos que ninguém conseguia domar, carregando dentro de si um animal invisível que rugia mais alto que qualquer fera africana engaiolada para a nossa diversão. Houve silêncio social em relação ao bicho dentro dele. Enjaulado num abandono crônico desde a infância, Vaqueirinho deu de cara com a leoa, que o abocanhou antes mesmo que terminasse de concluir a descida da árvore (uma embaúba) que fica dentro do recinto do animal.

Sua tragédia não começou na beira da jaula. Começou muito antes, talvez no primeiro dia em que alguém percebeu que havia algo errado com o menino e não soube o que fazer. Ou simplesmente cruzou os braços diante do transtorno mental do jovem: um bicho miúdo que cresceu e o engoliu, digamos assim. Esse bicho é voraz: mastiga vidas, devagar, silenciosamente, até a explosão final. A leoa apenas viveu seu destino de leoa. O pobre Vaqueirinho morreu pelo destino de um país que ainda trata, de modo doente, sofrimento psíquico com fraqueza. Há até quem defina esse sofrimento psíquico como frescura, porém nunca como a fera miúda e poderosa que é.

A morte de Vaqueirinho não veio das presas e unhas da leoa. Existem mortes que não pertencem às presas que as provocam, mas às falhas que as antecedem. Vaqueirinho não morreu devorado por uma fera selvagem. Morreu devorado por um bicho minúsculo, invisível e diariamente ignorado: a doença que não se vê, mas ruge; que não tem garras, mas destroça, que não é leoa, mas que ainda assim mata. Vaqueirinho era um bicho que vivia abandonado dentro de um zoológico humano.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza