Um pássaro-preto apenas

16 outubro 2025 às 16h53

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Quem teve o prazer de ler Cecília Meireles sabe que ela não brilhou somente como poeta. Também fez o mesmo como cronista. Em ambas modalidades de escrita, seus textos eram construídos com uma sensibilidade singular e esmero literário. Cecília apareceu na minha vida quando eu tinha 21 anos e cursava o segundo grau no Colégio Carlos Chagas em Campinas. Foi de uma crônica sua – “Um cão apenas” –, lida nessa época de estudante secundarista, que suguei o título para a minha.
Ela conta que se deparou com “um triste cãozinho doente” e sentiu vergonha em “haver interrompido seu sono”. Na frase final, justifica sua vergonha: “Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem…” O meu pássaro-preto estava em situação melhor que o cão: uma perna quebrada. E não vi nele um velhinho abandonado na rua como Cecília viu no cachorro e a este amou, segundo ela, “apenas com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta”.
Pior mesmo seria para esse pássaro-preto uma asa quebrada. Asa, afinal, é liberdade. Com ela, pode fugir do perigo, ir até o alimento. Já uma perna, ora, isso para ele não significou quase nada. A sobrevivência silenciou o incômodo. Embora manco, buscou a adaptação. Observei-o caminhando na beira do comedouro com quirela (instalado na chácara justamente para os pássaros), equilibrava-se como podia, pulava numa perna só. Ficar sem comer é que não podia acontecer. Inclusive já tive o prazer de ouvi-lo cantar, seu canto é melodioso. Seu bico superior, observei também, cresceu mais que o inferior. Porém nenhum impedimento de comer quirela e banana.
O pássaro-preto é também conhecido como graúna – nome vindo do tupi, na junção de “guira” (ave) e “una” (preta) -, chico-preto, melro entre outros nomes. Enquanto graúna, a ave já foi lembrada por alguns nomes da literatura e da Música Popular Brasileira. No romance “Iracema”, o escritor José de Alencar, ao falar da cor dos cabelos da heroína indígena, cita a ave: “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”.
Um trecho da frasse voou mais de um século para pousar na música “E que tudo mais vá para o céu”, do cantor Belchior, também é cearense como escritor, para resgatar essa mesma frase do romance alencariano. Luiz Gonzaga, o rei do baião, também lhe rendeu tributo na célebre música “Assum Preto”. Um tributo carregado de dor: “Talvez por ignorância / ou maldade das pior / furaram os olhos do assum preto / pra ele assim, ai, cantar melhor”.
De repente, essa história de cegar aves para elas cantarem melhor tem a ver com uma lenda vinda da Grécia antiga, que rezava que reis, movidos por ciúmes e posse, cegavam os poetas e assim impedi-los de irem para outros reinos. Essa cegueira lendária também está relacionada ao poeta Homero, autor de “Ilíada” e “Odisseia”, que são dois poemas épicos de grande importância da literatura universal, pelo fato de influenciarem gerações posteriores de escritores. E até inspirar o mundo do cinema.
A cegueira física, conforme a lenda, expandia a visão interior dos poetas e assim lhes ampliava a capacidade de enxergar o que os olhos externos não enxergam. Ainda bem que é lenda. Voltando ao meu pássaro-preto, ele vive tranquilamente, vive bem longe da situação de sofrimento do cão da crônica ceciliana. Na chácara do meu casal de amigos, não lhe falta comida. Nem só a ele, como a inúmeros outros da mesma espécie e também de espécies diferentes, como canário-da-terra, tico-tico-rei, chupim, gralha-cancã, avoante, sabiá, rolinha-roxa…
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza